Direitos humanos e hipocrisia humanitária

Estamos longe de viver num contexto em que os discursos dos organismos de direitos humanos possam ser tomados como bússola moral incontestável.

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Estamos longe de viver num contexto em que os discursos dos organismos de direitos humanos possam ser tomados como bússola moral incontestável.

Por Idelber Avelar

No dia 14 de fevereiro de 2010, a Chanceler estadunidense e ícone feminista Hillary Clinton visitou a Arábia Saudita, país onde as mulheres vivem situação aterradora. No país, que mantém polpudos negócios petroleiros com os EUA, são os guardiães masculinos que decidem se a mulher pode trabalhar, casar-se ou viajar. Um tribunal de Unaiza, em março de 2009, recusou-se a anular o casamento de uma garota de 8 anos de idade com um homem adulto. Apedrejamentos de mulheres são acontecimento comum. Hillary Clinton foi recebida num palácio onde sequer é permitida a entrada de mulheres sauditas, bebericou chá com o Rei Abdullah e não consta que tenha feito qualquer declaração pública sobre a horrenda situação dos direitos das mulheres no reino saudita.

Em 18 de julho de 2008, o presidente Lula visitou a Colômbia para participar do encontro empresarial Colômbia-Brasil. O país vizinho é o recordista mundial de exilados internos: nada menos que 3 milhões de colombianos vivem deslocados de suas casas ou terras pela violência. Organismos de direitos humanos na Colômbia estimam que 80 membros da coalizão do presidente Uribe no Congresso são colaboradores de grupos paramilitares, que continuam operando com notável latitude, assassinando ou ameaçando sem preocupação com o Poder Judiciário. Não consta que o presidente Lula tenha dado declaração acerca dos direitos humanos na Colômbia nem que nada lhe tenha sido cobrado.

No entanto, quando o tema é Cuba, Irã ou Venezuela, as dondocas humanitárias se ouriçam com inaudita hipocrisia. Critica-se o presidente Lula por não receber uma comissão de dissidentes cubanos! Em Cuba! Como se o Itamaraty, alguma vez em sua história, tivesse conduzido política externa recebendo comissões de opositores em solo estrangeiro. No Observatório da Imprensa, Alberto Dines disse que “o presidente Lula atrapalhou-se ao explicar por que não atendera ao pedido dos dissidentes cubanos”. Na opinião desta coluna, é Alberto Dines quem se atrapalha ao confundir o papel do presidente da soberana República Federativa do Brasil, conduzindo negócios com a soberana República de Cuba, com o papel de um ativista de direitos humanos, sem sequer oferecer qualquer precedente histórico que autorizasse tão insólita confusão.

É inegável que os direitos humanos são regularmente desrespeitados em Cuba. São aproximadamente 200 presos políticos. É um número lamentável, que corresponde a quase 20% do número de camponeses e líderes sindicais assassinados por um chefe paramilitar colombiano, Ever Veloza (codinome H.H.), que confirmou o fuzilamento de pelo menos 6.000 pessoas pelos paramilitares, 90% das quais, segundo ele mesmo, não tinham qualquer ligação com as FARC (ver Washington Post, 19/08/2008). São conhecidos os vínculos de Veloza com o general Mario Montoya, condecorado em Washington e responsável pela administração das enormes quantidades de dinheiro enviadas pelos EUA aos militares colombianos.

Não é segredo nem para a gringuíssima Human Rights Watch que boa parte da ajuda militar estadunidense à Colômbia foi canalizada diretamente aos paramilitares. É o próprio agregado militar americano no país vizinho quem confirma que, a partir de 1996, a CIA e o Comando Sul das Forças Armadas americanas coordenaram redes secretas de civis sob liderança militar, atuando com impunidade e à margem da lei. Em bom português: os EUA financiam bandos de assassinos na Colômbia, mas inexplicavelmente as dondocas humanitárias não cobram do presidente Lula qualquer declaração sobre o fato quando este visita Washington. Segundo a tradição do Itamaraty, tal declaração seria muito mais justificada do que aquela que se cobrou de Lula em Cuba, posto que no caso colombiano trata-se de uma violação das leis internacionais.

Os blogueiros de esquerda que cobraram de Lula que se transformasse em ativista dos direitos humanos em Cuba deveriam ler a copiosa bibliografia que, nos últimos 15 anos, tem feito um balanço da crise por que passa o discurso dos direitos humanos. A coletânea Moral Imperialism, com excelente artigo do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, seria um bom começo. Desprendem-se dessa bibliografia algumas lições sobre as quais vale a pena refletir.

A primeira delas é clara: seres humanos podem ser sujeitos morais. Os Estados, não. Os Estados sempre farão política externa segundo seus interesses. O dever do presidente do Brasil é zelar pelos cidadãos brasileiros, fortalecer o país, cuidar da enorme dívida social legada pela história, reduzir a desigualdade e conduzir a política externa de forma a facilitar a conquista desses objetivos. Esperar que um Estado faça política externa movido por considerações morais—e, pior ainda, “decepcionar-se” quando um governo de esquerda não o faz — representa uma confusão entre moral e política, inaceitável para alguém que se diz de esquerda.

A segunda tem sido debatida abundantemente em livros e artigos, e merece atenção de quem fala em direitos humanos: as comissões e agências internacionais de direitos humanos passam pela pior crise de credibilidade de sua história. Não há dúvidas de que organismos como Human Rights Watch e Amnesty International realizam, muitas vezes, um trabalho louvável. Mas também já não restam dúvidas de que trazem consigo a perspectiva das sociedades nas quais foram criadas. No seu relatório de 2005, a HRW afirmou: “Posto que não havia nenhum genocídio acontecendo no Iraque em 2003, a HRW não tomou posição contra ou a favor da guerra”. A afirmativa é espantosa0. Ela pressupõe que a neutralidade ou o apoio à guerra eram as duas únicas posições possíveis, como se a própria invasão não representasse uma brutal violação dos direitos humanos dos iraquianos.

Estamos longe de viver num contexto em que os discursos dos organismos de direitos humanos possam ser tomados como bússola moral incontestável. Basta dizer que o mais ilustre desses organismos se recusou a condenar a mais brutal e ilegal invasão militar do nosso tempo. Isso não quer dizer, claro, que não se deva prestar atenção às suas denúncias. Mas esperar que o Brasil, justamente no momento em que se transforma em ator importante da política global, abandone seus interesses econômicos para virar paladino da moral em terras estrangeiras é, na melhor das hipóteses, uma ingenuidade. O presidente Lula está coberto de razão no caso cubano. Sua atuação foi condizente com as melhores tradições do Itamaraty, que jamais promoveu reunião com grupos de oposição, nem em países que nunca invadiram ninguém, como Irã e Cuba, nem em países que já acumulam mais de uma centena de invasões de território estrangeiro, como os EUA.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 84. Nas bancas.