Entre a esquerda sionista e teorias da conspiração: a tragédia de uma falsa militância pró-Palestina

Michel Gherman, Guilherme Cohen e James Green respondem o artigo 'A normalização de um crime: quando Duvivier, Bolsonaro, Wyllis e Crivella estão no mesmo campo', publicado originalmente no blog Arabizando; leia na íntegra.

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Michel Gherman, Guilherme Cohen e James Green respondem o artigo 'A normalização de um crime: quando Duvivier, Bolsonaro, Wyllis e Crivella estão no mesmo campo', publicado originalmente no blog Arabizando; leia na íntegra Por Michel Gherman, Guilherme Cohen e James Green * Nota do editor da Fórum: O texto a seguir é uma resposta ao último artigo publicado no Arabizando, blogue parceiro que, como os outros, tem total liberdade editorial. Isso não implica em concordância com todo o conteúdo publicado. Neste caso específico, por exemplo, conhecemos e respeitamos a história e o trabalho sério de alguns dos citados no texto do Arabizando e nunca os trataríamos da forma como ali foram mencionados. Em nome do bom debate, segue a réplica também em tom quente. Esperamos que depois disso as coisas voltem ao lugar do bom debate democrático, para que os interesses reais dessa discussão prevaleçam. Esses últimos dias foram estranhos para nós. Desde terça feira (14), passamos a receber mensagens de colegas, alunos, amigos e conhecidos. A grande maioria pretendia nos avisar que estávamos sendo relacionados a Bolsonaro e Crivella em um artigo. Fomos buscar a fonte, afinal, não é todo dia que somos acusados de termos contato com um político neofascista e com um bispo da Igreja Universal. Finalmente descobrimos o motivo de tanta gritaria. Havia uma matéria na Revista Fórum, onde dois autores, Arturo Hartmann e Bruno Huberman, faziam duros comentários sobre nós três e sobre mais meia dúzia de pessoas. O motivo central? Termos realizado conferências e seminários na Universidade Hebraica de Jerusalém. Solicitamos direito de resposta por conta das acusações feitas, que o editor da revista gentilmente nos concedeu. Aqui começa o nosso primeiro drama: O artigo é uma compilação de mentiras, informações erradas, suposições estapafúrdias e denúncias vazias. Ou seja, estamos falando de um texto típico dos dias atuais. O artigo é um excelente exemplo do que se convencionou chamar de “Pós Verdade”. Nesse contexto, informações não verificadas se juntam a denúncias mal formuladas e a um discurso, ao mesmo tempo falso, inquisitório e verborrágico. E, além disso, autores descomprometidos com a verdade citam nomes de gente famosa, acusando-as mentirosamente de terem conexões com Bolsonaros e Crivellas. duv1O tempo perfeito: Os autores decidem queimar algumas das poucas referências combativas da mídia brasileira Temos que convir, nada mais inadequado aos tempos que se seguem, do que detonar artistas e políticos de esquerda no Brasil, certo? Vocês querem alguns exemplos? Ok, vejam bem: o ator Gregório Duvivier, um dos poucos nomes abertamente de esquerda no humor brasileiro. No caso dele, é evidente que se trata de pessoa que bate de frente com Malafaias e Bolsonaros, que enfrenta o que há de mais reacionário no país. Pois, mesmo assim, ele foi detonado pelos autores. Hartmann e Huberman denunciaram que, na verdade, ele estava do lado de.... seus adversários. Secretamente, segundo eles, os interesses de Duvivier e Bolsonaro seriam exatamente os mesmos. Vocês estão entendendo? Hartmann e Huberman denunciam, nesse período de trevas, que gente progressista e intelectualmente honesta no mundo cultural brasileiro (convenhamos, não são muitos), são na verdade aliados de fascistas e reacionários. E a coisa só piora, pois, depois de Duvivier, vem Paulo Abrão, Presidente da Comissão da Anistia. Para os autores, Abrão, um dos maiores responsáveis pela recuperação da memória das vitimas da ditadura no país é acusado de ser aliado de Bolsonaro, um dos maiores defensores da ditadura no Brasil. Agora nada pior do que o que os autores fazem com o deputado Jean Wyllys, justamente no momento em que ele é ameaçado de cassação pela célebre cusparada em Bolsonaro, após aturar 6 anos de agressões homofóbicas. Hartmann e Huberman acusam o deputado de ser aliado de seu algoz. Em outras palavras, quem tentava cassar Jean Wyllys estaria, de fato, no campo do próprio deputado, segundo nossos perspicazes autores. Segundo o quadro traçado por Hartmann e Huberman, nos restam poucas opções pra entender os motivos para que professores (acrescente-se aqui o nome de Fernando Brancoli, da UFRJ, também citado pelos autores), tenham ido as conferências em Israel e na Palestina: Ou são perfeitos imbecis, que não entendem um palmo diante do nariz, ou são traidores, agentes duplos, membros da extrema direita brasileira. Nesse contexto, Hartmann e Huberman ou querem esclarecer pobres intelectuais, artistas e políticos brasileiros ou querem denunciá-los como membros do lobby sionista e aliados da extrema direita. Imbecis ou membros do Lobby Sionista, eis a questão duv2Claro, o timing para o artigo não é ruim somente no Brasil. Os autores erram (ou acertam) feio se entendermos o que acontece também fora daqui. Há um avanço da extrema direita no mundo inteiro. Brexit, eleições na Hungria, na Polônia e nos EUA são apenas alguns exemplos do que ocorreu apenas no último ano e meio. E que em breve pode ocorrer na França e mesmo no Brasil. Israel não tem uma situação diferente. O país vive sob um governo reacionário, que tem aliados grupos da extrema direita. Há avanço de leis racistas e aumento da construção de colônias em territórios Palestinos. Quem os autores decidem atacar? Justamente os que resistem nesse quadro. Os alvos de Hartmann e Huberman são, aqui também, os grupos, palestinos e israelenses, que lutam cotidianamente contra a ocupação. Qual a Justificativa agora? A mesma! Esses grupos que lutam contra a ocupação são, na verdade, falsos. São grupos que defendem a ocupação. São, segundo os autores, membros do famigerado lobby sionista (voltaremos a falar disso), ou, voltando a referência anterior, são imbecis mesmo. Assim, enquanto Trump enterrava, ao lado de Binyamin Netanyahu, o que restava da esperança de um acordo e adiava, sine die, o sonho de um Estado Palestino independente, Hartmann e Huberman atacavam a oposição a Bibi. Entenderam? Tudo na lógica da denúncia do lobby sionista. Não há possibilidade de estarmos falando a verdade, somos todos, Gregório Duvivier, Michel Gherman, Paulo Abrão, James Green, Guilherme Cohen, Mohamad Odeh, Guilherme Casarões, Ashraf Al Ajami, Yehuda Goodman, Jean Wyllys etc.... imbecis ou membros de uma conspiração, segundo Hartmann e Huberman. O drama de se escrever um artigo respondendo a um texto da pós verdade Voltemos ao nosso drama. A pergunta que fazemos agora é como fazer para escrever um artigo resposta a um texto típico da pós verdade? Outra questão vem dessa primeira pergunta: Seria necessário responder a um artigo que não tem compromisso algum com informações verdadeiras? Refletimos bastante, e chegamos a conclusão que sim. Apesar das dificuldades e do enjôo, deveríamos por a obra em marcha. Por quê? Simplesmente porque as pessoas lêem artigos mentirosos e formam opinião sobre eles. O mínimo que podemos fazer é dar informações alternativas e verdadeiras a elas. O artigo de Hartmann e Huberman é de propaganda, um texto de Hazbará. Tal qual inclusive aqueles feitos pela direita sionista. Para isso, lançam mão de mentiras, de simplificações e de falsas informações. No campo do marketing vale vender qualquer produto. Hartmann e Huberman querem vender a narrativa deles. Assim como Bibi Netanyahu faz quando diz que não há ocupação, os autores fazem parecido ao dizer que nós defendemos a ocupação. Simples. Hartmann e Huberman fazem Hasbará. Dividiremos nosso artigo em três pontos: a) as falsas informações no artigo de Hartmann e Huberman b) as informações sonegadas no artigo e c) e o ponto mais grave de todos: os pressupostos analíticos que perpassam todo o artigo. Mentira e desinformação: Arma da propaganda - A hasbará pró-palestina funciona da mesma maneira que as estratégias de hasbara pró-sionista: ambas jogam informações ao vento e pouquíssimo comprometidas com a verificação dos fatos, deixando os leitores com a impressão de que as informações (as vezes com dados e números específicos), são verdadeiras. A quantidade de mentiras, meias verdades e desinformação no artigo é enorme. Algumas mais graves que outras. Temos medo de chatear os leitores, portanto, apresentaremos apenas algumas delas: Já no início do artigo, os autores escrevem: “O ator (Duvivier) viajou a Israel à convite da Universidade Hebraica de Jerusalém, uma instituição que tem em seus pilares violações contra os palestinos.” Entenderam? A definição da universidade não poderia ser mais direta e original, “um de seus pilares é a violação contra os palestinos”. Claro que aqui há no mínimo uma simplificação extrema, mas não é somente isso. Se os autores não quiseram contar a história da Universidade, cujos pilares são bem distintos, valeria a eles perguntar por que chamamos Michael Karayanni para conversar com Duvivier. Claro, vocês não devem ter ideia de quem é Dr. Karayanni, o problema é que Huberman e Hartmann também não tinham. Ou se tinha, mentiram. Michael Mousa Karayanni, palestino com cidadania israelense, é ex-diretor do Centro Minerva de Direitos Humanos da Universidade Hebraica de Jerusalém. Crítico contundente das estratégias de ocupação judaica de Jerusalém, o professor conversou com Duvivier, justamente sobre a situação de Silwan (que fica ao lado da Universidade). Sabem por que Huberman e Hartmann? Ora, porque nós queremos denunciar a ocupação e não apoiá-la! Bom, há outras mentiras. Pequenas, mas que mostram a falta de compromisso dos autores com a verificação dos fatos. A primeira é a afiliação de Michel Gherman, uma visitinha ao Lattes permitiria ver que ele não é “docente da Universidade Hebraica”. A segunda chega a ser engraçada. Os autores acusam a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro de ter apoiado o programa. Ou são tolinhos ou mentirosos mesmo. Escondemos o quanto pudemos da FIERJ a viagem. O programa é todo concentrado na denúncia da ocupação, assim temíamos ser boicotados por eles. Não, é claro que a FIERJ não nos apoiou, nem pediríamos apoio e não temos dúvida de que ela não nos apoiaria. Mas essa informação não cabe na narrativa de você. Afinal, vocês acreditam no conceito de conspiração e de lobby, certo? Dizemos que somos contra a ocupação mas na verdade a defendemos. Nós e o palestino Dr. Michael Mousa Karayanni, especialista em direitos humanos e crítico ácido dos processos de judaização de Jerusalém oriental (voltaremos a esse ponto no final do artigo) . Informações sonegadas no artigo Muitas são as informações deliberadamente omitidas no artigo. Como em qualquer artigo de propaganda (hasbara), informações que desvirtuam a lógica dos autores são suprimidas. Como exemplo, os autores não explicaram que Jamil Qsas é um importante militante contra a ocupação na Cisjordânia. Transformam ele em um bobalhão que defende a coexistência, o que chega a ser desrespeitoso. Tudo bem, entendemos que o esforço de procurar referências (uma goolgada bastava) sobre o palestino não faz parte da agenda de Hartmann e Huberman, mas, convenhamos, que isso é lamentável. Os autores iriam descobrir que Jamil participa da Organização “Combatentes pela Paz” e que tem uma longa lista de atividades contra a ocupação e contra a construção do muro em sua cidade natal. Sim, no artigo publicado pelos autores a impressão é que nós justificamos o muro. Mais do que mentirosa, essa informação transformaria Jamil em um traidor de seus próprios interesses. Isso simplesmente não é honesto, nem justo. É errado. Mas tem coisa pior, muito pior. Em nenhum momento no artigo os autores explicam que o seminário organizado na Universidade Hebraica teve a participação de palestrantes palestinos. Aliás, esse era o sentido do seminário, discutir temas comuns a palestinos, israelenses e brasileiros. No caso, a relação entre religião e democracia. Há uma tendência de acusar palestinos que participam de atividades desse tipo de traidores, de colaboracionistas. Daí, o termo “normalização”, usado no titulo do artigo aqui discutido. Interessante notar que, aqui, brasileiros de São Paulo decidem o que palestinos podem ou não fazer. Esse debate moralista é estranho, mas os nomes dos participantes não deixam dúvidas: Os palestrantes palestinos não eram traidores. Ao contrário, eles são símbolos na luta pela libertação e participaram porque acharam importante. Abaixo, alguns nomes e cargos dessas pessoas: Elias Zananri, representante da Fatah no Comitê de Interação com Israelenses. Ashraf Al Ajami, militante histórico da Frente Popular de Libertação da Palestina e ex-ministro do governo palestino para assuntos de prisioneiros. Mohamad Odeh, representante da Fatah para a América Latina. Todos eles participaram da Conferência e foram, claro, unânimes, em denunciar a ocupação e nos receberam depois em Ramallah. É surpreendente essa informação ter sido suprimida do artigo de Hartmann e Huberman, não? Não, nada surpreendente. Essa desonestidade é típica de textos de propaganda. O artigo aqui criticado é de propaganda, portanto é desonesto. Pressupostos analíticos que perpassam todo o artigo: duvLegenda: nada é impossível a quem tudo se atreve Por fim, aqui falamos sobre o terceiro ponto. Ao nosso ver, o mais grave de todos. Esse ponto mereceria um artigo inteiro, esperamos poder contar com essa importante revista para publicá-lo posteriormente. Percebemos que há um pressuposto no texto de Huberman e Hartmann que acompanha sua escrita desde o início ao seu fim: A ideia de que não pode haver uma atividade como a nossa. A ideia de que uma atividade contra a ocupação feita por militantes da esquerda sionista é falsa. A noção de que uma atividade que busque criar encontros entre esquerdas nos três países, de fato, seria dirigida por um “lobby sionista”. O artigo de Huberman e Hartmann está baseado nisso: Nossa natureza não permite que sejamos o que dizemos que somos, então mentimos. Ou pior, somos membro de um lobby, de uma conspiração. Isso aparece em vários momentos do texto aqui discutido: Primeiro com a informação sobre a lei racista aprovada pelo governo de Israel (como se nós apoiássemos a lei), depois na ideia de que sonegávamos informação a Duvivier sobre o muro (aqui Jamil deveria fazer parte do complô sionista) e , por fim, quando compara nossa viagem (golpe de misericórdia) às viagens de Bolsonaro e Crivella. Preocupa a todos nós a sugestão de que não há divergência em Israel. Mais, nos preocupa a noção de que falamos de uma sociedade homogênea, com pequeno grau de fraturas. E acima de tudo, o que mais nos preocupa é a lógica por trás disso tudo: A noção de um complô. A ideia de que intelectuais, artistas e homens públicos estiveram todos enredados em um complô de propaganda sionista não é nova. A impossibilidade inerente de uma esquerda que combata a ocupação é parte de uma narrativa há muito conhecida. Nesse cenário, há um Lobby, um complô, do qual fariam parte Jean Wyllys, James Green e Jamil. Esse lobby seria responsável por tomar decisões, habitualmente espalharia mentiras , sempre fingindo ser o que não é. Se somos de esquerda, fazemos red washing. Se somos gays, pinkwashing. Absolutamente todas propostas fazem parte de um projeto, um projeto de controle, de conspiração, de propaganda. Ora, essa é a lógica da extrema-direita, a noção conspirativa da história é um clássico de grupos vinculados às piores memórias no Ocidente. Pois bem, essa é a lógica do artigo de Huberman e Hartmann. Tudo que falamos está baseado em um complô de um projeto. Corrompemos a todos. Sorte que há os bravos autores para nos denunciar, não?! Falamos contra a ocupação, nos manifestamos contra as colônias, somos contra o governo, mas, na verdade, segundo eles, é tudo ao contrário. Somos algo como funcionários do Lobby, membros de um “governo”. Conspiramos, compramos gente, enfim, estamos falando da narrativa de conspiração da história, que acompanha a extrema direita europeia, presente no integralismo brasileiro, e que só parece ter afetado setores da esquerda brasileira. Essa argumentação seria ridícula, se não fosse perniciosa e perigosa. Vocês estão no mesmo lugar que Trump e Bolsonaro. Vocês criam conspirações e acreditam nelas. Vocês, sim, estão no campo da extrema direita. Vocês e a propaganda “pró-palestina”, são uma ameaça ao povo palestino a esquerda judaica e a outras perspectivas progressistas. Mas vocês não estão sozinhos. O coro de vocês é grande, vocês estão juntos com Bibi, Trump e Bolsonaro. Queimando progressistas em Israel e na Palestina, vocês fortalecem a direita, a extrema direita que amanhã dará conta de todos nós. Ao artigo faltou informação , perspectiva histórica e honestidade, Mas não faltou mentiras, falta de informação e uma base ideológica clara: a denúncia de complôs e conspirações. Saibam, Hartmann e Huberman, essa tese defendida no artigo coloca vocês no mesmo campo que Bolsonaro, Crivella e tantos outros.