Entre março e abril de 2009, a definição da política de drogas nos próximos dez anos

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Luiz Paulo Guanabara é psicólogo e diretor-executivo da Psicotropicus, uma ONG dedicada à questão da droga. Opositor da guerra às drogas declarada em 1909 com a Comissão do Ópio de Xangai e reafirmada reiteradamente pelas Nações Unidas, ele expõe sua posição no debate e alerta: “Os órgãos da ONU são conservadores e recebem muito dinheiro dos Estados Unidos, por isso são influenciados pelo país que lidera a política totalitária de drogas”.

O mais importante é assegurar que os direitos humanos estejam acima dessa guerra. Ele defende ainda a adoção de políticas mais progressista internacionalmente, buscando a redução de danos e formas controladas de uso e cultivo.

A entrevista é parte da reportagem“A guerra que não deu certo”
publicada na edição 67 da Fórum. Leia a íntegra.


Fórum – Como o senhor avalia a política sobre drogas do governo brasileiro?
Luiz Paulo Guanabara –
O governo financia ações de redução de danos, programas comprovadamente eficazes, mas encontra resistência por causa de paradigma de que é “abistinência ou nada”, nenhum tratamento. É o que rege a mentalidade e muitos grupos profissionais de psiquiatras e psicólogos. Serviços de saúde do SUS é muito despreparado para receber a pessoa que usa drogas. Atualmente existem os Caps [Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas], há um avanço.

Fórum – Em 2006, houve modificações na legislação. As mudanças foram boas na sua visão?
Guanabara –
No campo da política e com nova lei de 2006, o avanço é tirar a aplicação de pena de prisão ao usuário. A prisão é das piores penas para uma pessoa cujo crime é muito contestável. O crime de usar uma substância em seu próprio corpo levanta também a questão de até que ponto o Estado manda no corpo de cada cidadão. Foi bom a lei avançar nesse sentido, porque também permitiu que pessoas pegas com quantidade de plantas tenham possibilidade de se defender. Tem uma garotada de 18 a 25 anos que, por estarem convencidos de que se comprarem no mercado negro vão contribuir para tráfico e a violência, optam por essa medida. Eles podem ser enquadrados como usuários.
Por outro lado, há retrocesso por conta do aumento de penas e desproporcionalidade. Sou psicólogo, não jurista, mas sei que a lei precisa prever penas proporcional. Pessoas pegas com pequenas quantidades têm o mesmo status de um Fernandinho Beira-Mar, se é uma mula (tráfico) com 100 reais ou se tem 10 milhões em drogas, são considerados traficantes. Pior é o caso dos camponeses, onde há plantio, também serem considerados traficantes. É complicado com o tipo de vida que ele leva ser criminoso. É o mesmo tipo de mecanismo que faz a guerra contra os cocaleiros nos Andes.

Fórum – Em relação a outros países, existem referências de políticas sobre drogas mais progressistas?
Guanabara –
A Europa Ocidental quase toda, com excessões, tem legislações bem mais avançadas na descriminalização do usuário. Um usuário nunca vai ter problema com a lei na Suíça, na Espanha, em Portugal ou na Alemanha. A França e a Suécia são mais repressiva. Holanda e Bélgica são mais avançadas, certos experimentos bem progressistas estão em andamento, como o sistema de uso controlado da cannabis nos coffeshops holandeses.

Fórum – Esse tipo de legalização o que ocorre na Holanda...
Guanabara –
A cannabis – maconha e haxixe – não é legalizada na Holanda, o que existe é uma tolerância. Aliás, o país tem um histórico de ser um povo tolerante. Mas existem regras rígidas para esse uso. O coffeshop é um dos estabelecimentos mais fiscalizados, tem de seguir à risca as normas de funcionamento. Pesquisas feitas mostram um percentual de jovens que fumam menor do que nos Estados Unidos onde há tanta repressão. O sistema permite que pessoas tenham acesso ao produto, mas faz uso se quiser. O fato de estar disponível não quer dizer que mais gente usou, são estatísticas que os holandeses gostam de citar... Na reunião das ONGs em Viena,
houve um debate acirrado sobre isso. Foi uma pergunta que o diretor do escritório de drogas e crime da ONU não pôde responder.
Mas para o Brasil, não sei se seria modelo aplicável. No resto do mundo, dever-se-ia incentivar o plantio caseiro. Hoje os Estados Unidos são auto-suficientes na produção de maconha. Na Holanda isso é normatizado, cada pessoa tem direito a plantar cinco pés.

Fórum – Em 2009, a Assembléia Geral da ONU vai se reunir para definir a política sobre drogas para os próximos anos, justamente quando se completam 100 anos da guerra às drogas promovida mundialmente. Quais as perspectivas para o encontro e o que ele pode significar para os países membros?
Guanabara –
O nó nas convenções das Nações Unidas é que elas não são mantidas rigorosamente, como se fossem uma bíblia. Os órgãos e escritórios formulam convenções e querem que os países signatários sigam aquela linha, mas o que ocorre é que tem países na Europa Ocidental com posturas progressistas, assim como o Uruguai, por exemplo. Na reunião da comissão de entorpecentes em março deste ano em Viena, o representante do país sul-americano apresentou, com o Chile e outros países da América Latina, uma declaração a favor dos direitos humanos. A proposta era que as medidas para o controle das drogas se pautassem pela defesa dos direitos humanos. A China, o Irã e os Estados Unidos que querem manter política fracassada de guerra às drogas chiaram, mas acabou a resolução passando. Meio alterada é verdade, buscou-se consenso e a maioria foi favorável com a alteração.
Essa é uma das questões para tentar reverter a reflexão na hora da revisão da Assembléia Geral da ONU de 1998. Quando colocaram na agenda “um mundo livre de drogas”, “com redução significativa de plantio de maconha, cocaína e papoula”. O plantio da coca reduziu 3% ou 4%, e a quantidade de cocaína aumentou. As fumigações são contrárias aos direitos humanos, porque a folha de coca é uma tradição milenar dos andinos.
Essa é outra reivindicações que surgiu na reunião passada, a Bolívia pedindo que a folha de coca fosse tirada da lista de drogas tão perigosa quanto a heroína e a cocaína. Está havendo reuniões intergovernamentais sobre temas definidos, alguns fundamentais, precursores, como lavagem de dinheiro, trabalho das ONGs presentes em Viena em 2009. Afinal, vai ser definida a política para próximos 10 anos. Os órgãos da ONU são conservadores e recebem muito dinheiro dos Estados Unidos, por isso são influenciados pelo país que lidera a política totalitária de drogas. E os Estados Unidos seguem com afinco controlando o mundo para que continue nessa direção.

Fórum – Qual o peso que as ONGs podem ter nesse momento?
Guanabara –
O que existe é uma política estabelecida, um status quo proibicionista, uma “lei seca” moderna que não criminaliza o álcool, mas uma série de outras substância a partir de critérios questionáveis. A mobilização global para mudar as coisas é uma tentativa de abrir as caixas pretas da comissão de entorpecentes, comissão de narcóticos e o escritório da ONU para crimes e drogas. Abrir essas caixas e fazer admitir que as metas de 1998 fracassaram. Está difícil de admitirem, não respondem, mudam de assunto, não querem aceitar que foi fracasso total. O que está se fazendo é formular estratégias para conseguir avanços. A comissão em que está envolvido Fernando Henrique Cardoso, a comissão de entorpecentes [Comission on Narcotics and Drugs] drogas e democracia vão receber documentos de muitos lados. A comissão vai ser mais progressista, apontando a barbárie que a guerra às drogas tem gerado nas últimas décadas. As ONGs estão com um documento pronto da reunião final de Viena, e várias delas vão apresentar documentos, ler declarações. Uma reunião ministerial, chamada de “alto nível”, vai ocorrer, e depois de todo o material processado é que vamos ver o que dá. Ninguém sabe ainda. Existe a tendência de manter tudo como está, porque muita gente que lucra com isso, com a violação de direitos humanos, em não seguir a orientação da OMS [Organização Mundial da Saúde], a carta de direitos humanos da ONU. Existem meios para mudar, para fazer com que órgãos proibicionistas anti-drogas mudem, porque os direitos humanos têm prevalência. Existem formas de pressionar para mudanças pontuais. A convenção única de 1961 estão ultrapassadas, o mundo mudou. Existem mais drogas sintéticas que são mais fáceis de fazer, não adianta acabar com plantações.

Fórum – E a posição do governo brasileiro para a Assembléia Geral da ONU?
Guanabara –
No Ministério da Saúde, tem um pessoal mais progressista, com certeza, algumas pessoas que estavam na reunião de entorpecentes em março passado apoiariam mudanças políticas bastante substanciais. Mas a Senad [Secretaria Nacional sobre Drogas] é dirigida por um general. A militarização do problema das drogas foi coisa que se vendeu, e o Fernando Henrique comprou, e acabou com Conselho Federal de Entorpecentes. Vou estar com essas instâncias, estamos com um projeto, vamos unir forças para buscar consensos e levar para as seções extraordinárias do ano que vem. O importante é o ano de reflexão, as seções extraordinárias. Entre março e abril de 2009 vai se definir a política para próximos dez anos.