Fernando Lara: cidade deveria ser sinônimo de coisa pública

Desde as Diretas Já e alguns comícios de Lula nos anos 1990, não tivemos mais eventos públicos com o mesmo grau de diversidade

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Desde as Diretas Já e alguns comícios de Lula nos anos 1990, não tivemos mais eventos públicos com o mesmo grau de diversidade Por Fernando Luiz Lara
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Faz uns 4 mil anos que a espécie humana resolveu viver em grandes grupos organizados num determinado espaço e inventou o que chamamos de cidade. Nos primeiros dois milênios, a cidade representou uma vantagem econômica e organizacional. A especialização fez aumentar a produtividade, e a passagem dos grandes clãs para uma sociedade mais complexa gerou todo tipo de avanço no conhecimento da época. Na maioria dos casos, as cidades da Antiguidade representavam apenas isto: uma eficiente engrenagem humana que conseguia produzir mais e se defender (ou atacar) melhor que seus vizinhos. [caption id="attachment_28282" align="alignright" width="336"] (Tarifazero.org)[/caption] É impossível não deixar de notar que a maioria das cidades da Antiguidade eram geridas por ditaduras sangrentas e movidas por trabalho escravo. De qualquer forma, foi na cidade, e não no campo, que surgiu a ideia de democracia representativa.  Da ágora dos gregos à res-pública de Alberti; dos bulevares de Hausmann à estrela-guia de Brasília, a cidade sempre serviu como representação máxima dos ideais humanos, e estes sempre tiveram um importante componente público. Interessante perguntar: Por que as utopias rurais obtiveram, no geral, resultados muito inferiores que os dos movimentos revolucionários urbanos? Existe na cidade um fator fundamental que a diferencia do mundo rural: a troca de informações se dá de forma muito mais acelerada e entre pessoas com maior grau de diversidade. Isso tem um impacto significativo na melhoria da qualidade de vida e na capacidade de adaptação das sociedades urbanas quando comparadas com sociedades rurais. Digo isso para debater o caráter iminentemente público desta “vantagem competitiva” das cidades.  Nos dias de hoje, em que o capitalismo ocupa quase todos os cantos do planeta, as cidades são, mais do que nunca, o último espaço realmente público existente. Com 25% de sua superfície feita de ruas e praças, a cidade é muito mais pública que qualquer espaço não urbano. Acontece que esses 25% são extremamente mal distribuídos pela cidade, e não é surpresa nenhuma perceber que as áreas onde vivem os mais pobres têm muito menos espaços públicos (e de baixíssima qualidade) que as áreas ricas. Se você nunca percebeu isso nos seus deslocamentos cotidianos, vale a pena dar um passeio pelo Google Earth e ver sua cidade (inteira) por cima. Os bairros de classe alta são arborizados, cheios de praças, parques ou praias maravilhosas, se você mora no litoral. Foram projetados assim, e o poder público se encarregou de construir e manter todos esses equipamentos. Nos bairros da classe trabalhadora, mesmo naqueles cujo loteamento foi devidamente aprovado pela prefeitura, os 35% de área pública obrigados por lei incluem as ruas (20% em média), e para as praças, escolas e qualquer outro equipamento público sobraram os piores terrenos: áreas alagáveis, terrenos muito inclinados ou de qualidade ambiental comprometida pela proximidade de uma rodovia ou ferrovia, quando não de um oleoduto ou linha de transmissão. Dos loteamentos ilegais e favelas, tratarei no próximo texto, neles não sobrou quase nada para ser usado como espaço público. Não gosto, por exemplo, da expressão “falta de planejamento”, usada indiscriminadamente no Brasil. Cada um desses espaços foi, sim, planejado por alguém, vendido por alguém e comprado por outrem.  A verdade é que o poder público foi, durante décadas, conivente ou omisso em relação à baixíssima qualidade desses espaços. Enquanto a periferia das cidades brasileiras era ocupada com esta lógica predatória de vender cada metro quadrado aproveitável, deixando para o público quase nada ou os piores terrenos, os centros foram suprindo as carências da população. A explosão urbana dos anos 1950 e 1960 criou forte pressão no uso dos espaços e equipamentos públicos. A modernização conservadora de Vargas, e posteriormente de JK, não dava mais conta de suprir as demandas por uma melhor distribuição de oportunidades. A resposta do governo militar foi reprimir os movimentos sociais para calar as demandas.  Mas a rua continuava razoavelmente pública, embora controlada pela polícia para evitar que a “malandragem” tomasse conta. As ruas, dormentes desde as últimas passeatas de 1968, voltaram a ocupar um papel de destaque na história política do País em 1984 e 1985, com o movimento Diretas Já. Mas usando Nelson Rodrigues como indispensável referência crítica (um direitismo necessário, eu diria), percebe-se a diferença entre os dois públicos. Nas ruas de 1968, estavam os intelectuais, os artistas e os universitários. Alguns milhares, talvez. Nas ruas de 1985, estavam milhões. Universitários e intelectuais sim, mas também garçons, eletricistas, costureiras, motoristas de ônibus, enfermeiras e balconistas. Reforço essa diferença para mostrar como o centro das cidades brasileiras mudou entre os anos 1960 e 1980. Antes um espaço da elite, o centro de 20 anos depois é efetivamente popular. Essa diferença é importante para perguntarmos: Para onde foi a elite brasileira? Ela basicamente não sai mais às ruas, vivendo do apartamento para o carro, daí para o estacionamento do shopping, onde estão a academia, a choperia, o cinema e até a universidade. O modelo adotado pela classe alta brasileira é o de privatização total dos espaços de convívio. O clube, por exemplo, essa entidade de fim de semana tão presente na nossa vida, é uma instituição bastante brasileira. Experimente explicar para um europeu, norte-americano ou japonês o funcionamento de um clube. Para usar uma piscina, uma quadra de tênis e um vestiário, você compra uma cota e ainda paga mensalidade? Mas as cidades não têm espaços para esportes? Claro que têm, mas, na quadra pública, estão os brasileiros comuns, e isso é o motor principal da proliferação dos clubes no Brasil. Pura e simples exclusão. De maneira um pouco menos explícita, os shopping centers funcionam da mesma forma. Estratificados por faixa de renda e classe social. Em Belo Horizonte, por exemplo (para citar uma cidade que conheço bem), existem milhares de pessoas que saem da Pampulha e dirigem 18 quilômetros num trânsito infernal para comprar no BH Shopping. Mas não existe shopping center na região da Pampulha? Claro que existe, mas não com o mesmo grau de homogeneidade (leia-se eficiência da exclusão) que o Diamond Mall ou o BH Shopping. Esse encastelamento da elite não deveria me incomodar muito, não fosse pelo fato de que perdemos todos quando o espaço público deixa de ser o lugar do encontro e da diversidade. Desde as Diretas Já e alguns comícios do Lula nos anos 1990, não tivemos mais eventos públicos com o mesmo grau de diversidade.  Pensando nos maiores eventos públicos deste início de século, fica evidente a fragmentação. A Parada Gay arrasta milhões para um lado, e os mega-cultos evangélicos lotam os estádios pelo outro.  Dois grupos que não se encontram e não trocam nada nem nas sessões da Comissão de Direitos Humanos do Congresso, nem em lugar nenhum. Cada vez mais fragmentados, conversando só com quem pensa parecido, vamos perdendo os últimos espaços e tempos públicos que nos restam: a cidade.  F Confira Urbanidades, blog de Fernando Luiz Lara. Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies