Incongruências no debate da Previdência social

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A Previdência Social é a maior política de seguridade social e a maior fonte de redistribuição de renda do Brasil. Discuti-la envolve pontos que vão além da mera questão fiscal, especialmente em um país que tem uma das maiores concentrações de renda e riqueza do mundo

Por Por Amir Khair   A despesa do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) é o montante gasto com aposentadorias, pensões e auxílios (doença, salário maternidade, salário família, acidente de trabalho, reclusão e reabilitação profissional). O RGPS cobre todos os eventos de trabalhadores que contribuem e que não estejam filiados a um regime próprio de previdência social no setor público. De forma geral, os sistemas previdenciários no mundo são complementados com recursos orçamentários, além das contribuições típicas do sistema. O Brasil não é exceção. A Constituição Federal integra a Previdência Social à saúde e à assistência social, em orçamento próprio que compõe o chamado orçamento da Seguridade Social, cujas receitas são compostas pelo INSS e por todas as contribuições sociais (PIS, Cofins, CSLL e outros), além da CPMF. A Carta Magna determina que esses recursos, somados aos orçamentários, devam atender o equilíbrio fiscal destas funções. A Previdência Social é a maior política de seguridade social e a maior fonte de redistribuição de renda do país. Discuti-la envolve, pois, o componente social e o fiscal, especialmente no Brasil, que tem uma das maiores concentrações de renda e riqueza do mundo. Apesar disso, a pressão pela reforma da Previdência foi o tema de maior destaque na mídia no ano passado, mas só sob o seu aspecto fiscal. A maior parte das análises sustentava que a reforma do RGPS seria a solução dos nossos problemas fiscais, uma vez que o “rombo” nas suas contas era crescente e inadministrável, agravado pela correção do salário mínimo sempre acima da inflação e pela maior longevidade da população. As análises só tratavam do RGPS, ou seja, daquele relativo aos trabalhadores vinculados à CLT, justamente os que ganham em sua maioria valores até um salário mínimo. Não trataram do sistema previdenciário dos servidores públicos que apresentam déficits mais elevados, com valores de aposentadoria bem superiores aos dos aposentados e pensionistas do RGPS. Tampouco era questionada a principal despesa do setor público, que são os juros causados pela política monetária, que beneficia as camadas de maior renda do país. O foco dessas análises foi responsabilizar pelo déficit nas contas públicas os que ganham menos e poupar os que ganham mais. Essa é a maior incongruência do debate sobre a Previdência Social. Nos últimos dez anos, em média, as despesas com o RGPS, incluindo os benefícios assistenciais rurais, foram de 6,5% do PIB e as relativas aos juros, de 8,8% do PIB. A crítica expressa nesse debate sofria de uma série de simplificações. Confundiam-se despesas de assistência social com as de previdência social; atribuíam isenções tributárias que são da competência do Tesouro Nacional como sendo do RGPS. Ignoravam: a) os efeitos do crescimento econômico sobre os resultados previdenciários; b) as possibilidades de melhorias na gestão das receitas e despesas; e c) alterações na legislação infraconstitucional e decretos que poderiam causar economias vultosas aos cofres previdenciários. Além disso, tais análises não se apoiavam em estudos atuariais com premissas para as receitas e despesas projetadas para as próximas décadas. A sua ênfase era o crescimento da porcentagem de idosos a serem atendidos pelo RGPS. Diante desses fatos, ficou evidente que, quando o debate fosse aprofundado, todas as questões acima apontadas teriam que ser consideradas e as previsões que alardeavam a quebra eminente do sistema teriam que ser reavaliadas. O conceito do “déficit” A discussão ganhou relevância quando o Ministério da Previdência Social questionou pela primeira vez o conceito de receitas, despesas e resultados adotados pela Secretaria do Tesouro Nacional, que atribuía ao INSS despesas de caráter assistencial e isenções tributárias que estavam indevidamente contabilizadas como sendo de previdência social. O quadro abaixo ilustra isso: De um “déficit” propalado de R$ 42,0 bilhões, a Previdência Social, após a conceituação adequada, apresentou déficit de R$ 3,8 bilhões, ou seja, dez vezes menor. Dos R$ 42,0 bilhões deviam ser abatidos R$ 28,6 bilhões que são despesas com assistência social direcionadas ao meio rural e R$ 9,7 bilhões de renúncias previdenciárias de responsabilidade do Tesouro Nacional. Outra questão importante ignorada pelas análises é o efeito do crescimento econômico sobre os resultados. Entre 1995 e 2005 o RGPS passou de um superávit de 0,05% do PIB para um déficit de 1,94%. Nesse período o PIB cresceu em média 2,4% ao ano. Se tivesse ocorrido um crescimento de 5%, o resultado seria superavitário em todos os anos, mesmo ocorrendo crescimento do número de benefícios, aumentos reais do salário mínimo, a assunção de “esqueletos” do Plano Real e a explosão de despesas com afastamentos por doença, muitos dos quais talvez desnecessários, avaliados por perícia médica terceirizada. As incongruências das análises não se limitaram aos fatores acima. Desconsideravam os impactos que poderiam ser causados por medidas de gestão nas receitas e despesas. As receitas do INSS estavam passando para a competência da Secretaria da Receita Federal para permitir uma fiscalização integrada, mais eficiente e com economias de pessoal e de recursos materiais. Os resultados já estão ocorrendo de forma expressiva. Quanto à gestão das despesas, o censo previdenciário foi iniciado em setembro de 2005, com conclusão prevista para julho de 2007. Na realidade, já deveria ter sido feito, conforme determina a lei, desde 1991. Em conseqüência do censo, já foram cancelados pagamentos indevidos e o cruzamento do novo cadastro do INSS com outros dados oficiais produzirá novas economias. Além disso, diversas ações estão em curso para a redução das despesas com auxílio doença, aposentadorias por invalidez e aposentadorias rurais injustificadas. Alguns projetos de lei, se aprovados, resultarão em fortes reduções de despesas, como, por exemplo, os afastamentos por auxílio-doença com benefícios superiores aos auferidos pelo trabalho, o que vem ocorrendo em mais da metade dos afastamentos. Recente decreto reviu as contribuições dos setores para o seguro de saúde, incentivando as empresas a prevenir acidentes do trabalho. Enfim, a Previdência Social foi descuidada em medidas básicas de gestão e regulação que, se adotadas, abrem espaços para a obtenção de resultados expressivos. Fator previdenciário A justificativa mais defendida para a reforma do RGPS é a falta do estabelecimento da idade mínima para requerer a aposentadoria. Muitos têm solicitado a aposentadoria por volta dos 50 anos ou pouco mais, quando ainda têm plena capacidade laboral, o que causaria um aumento nas despesas previdenciárias. Essa questão merece, contudo, maior reflexão. O sistema previdenciário brasileiro tem uma particularidade interessante ao diferenciar a aposentadoria do servidor público daquela do setor privado. No caso da aposentadoria no setor público é exigida a idade mínima de 60 anos para as mulheres e 65 anos para os homens e o valor da aposentadoria é calculado com base no salário. No caso da aposentadoria no setor privado é exigido um tempo mínimo de contribuição de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens e o valor da aposentadoria é calculado com base no salário corrigido pelo Fator Previdenciário (FP). Esse fator é crescente com a idade em que é requerida a aposentadoria e com o tempo de contribuição e decrescente com a expectativa de sobrevida (ES), que é calculada anualmente pelo IBGE. Exemplificando: se a idade de solicitação da aposentadoria for de 52 anos e o tempo de contribuição de 35 anos, o FP será de 0,6618 e a expectativa de sobrevida de 26,7 anos, ou seja, a probabilidade é de viver até os 78,7 anos. Se no futuro crescera ES em mais cinco anos, o FP será reduzido para 0,5574. Se o salário anual fosse de R$ 10 mil, no primeiro caso o aposentado estaria recebendo até o fim da vida R$ 176.920 (26,7 x 0,6618 x 10 mil) e no segundo caso os mesmos R$ 176.920 (31,7 x 0,5574 x 10 mil). Matematicamente se demonstra que, nas mesmas condições de tempo de contribuição e idade de solicitação de aposentadoria, a despesa total para a Previdência Social não se altera com o crescimento da sobrevida. Considerando, no entanto, que quanto maior a expectativa de sobrevida mais se dilui no tempo o pagamento da mesma soma de benefícios, financeiramente o INSS é beneficiado com o crescimento da ES. Os setores público e privado têm características bem distintas quanto aos seus trabalhadores. No primeiro há a estabilidade no emprego e os salários crescem com o tempo de serviço. No segundo ocorre normalmente o inverso. É comum a substituição de funcionários mais velhos pelos mais jovens, com salários mais baixos. O trabalhador mais velho encontra maior dificuldade de retorno ao mercado de trabalho e, quando consegue, muitas vezes aceita redução sobre o salário do último emprego. É comum trabalhadores ficarem excluídos do mercado formal de trabalho antes de atingirem os 50 anos, ou aceitarem reduções expressivas de salários. Isso pode levar a três conseqüências: suspender temporariamente suas contribuições ao INSS, contribuir como autônomo para a Previdência para contar no tempo de contribuição, ou aceitar salário menor para a aposentadoria, no caso de retorno ao mercado de trabalho. Em todos os casos sua aposentadoria corre o risco de ser rebaixada. Podem ser comuns situações nas quais, estando desempregados ou não conseguindo obter o necessário para suportar suas despesas como autônomos, ou mesmo como trabalhadores formais, pessoas sejam obrigadas a solicitar a aposentadoria precocemente. Assim, ao impor a idade mínima como pré-condição para a aposentadoria no setor privado, essa realidade deve ser considerada. A questão previdenciária é séria demais para ser politizada e o seu debate exige competência na análise e formulações, com premissas e correspondentes projeções atuariais para dimensionar o seu impacto para as próximas gerações e produzir propostas a serem debatidas no Fórum Nacional de Previdência Social e na sociedade de forma geral. F