Indústria do turismo sexual é resquício da ideologia do racismo e da colonização

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Notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo de 08/01/09 (leia íntegra abaixo) trata da ação na justiça da Embratur contra uma publicação direcionada a turistas estrangeiros intitulada Rio for Partners e que, em determinada parte, classifica parcela das mulheres brasileiras como “máquinas de fazer sexo bundudas”. A publicação classifica as mulheres em vários tipos, sempre tendo como referência a maior ou menor dificuldade delas “toparem” uma cantada e irem para a cama. Uma demonstração explícita de objetificação da mulher e de disseminação do turismo sexual. A postura da Embratur foi correta e chama a atenção a demora da Justiça brasileira em analisar o problema (não houve a mesma agilidade demonstrada pelo chefe supremo Gilmar Mendes em soltar Daniel Dantas).
O episódio não é um fato isolado. O Brasil surgiu no imaginário europeu desde os tempos da colonização como um lugar paradisíaco, não só pelas suas belezas naturais, mas pela existência aqui de seres humanos “sem alma” porque participantes de processos civilizatórios não marcados pela tradição judaico-cristã. Não tinham alma os indígenas e nem os africanos escravizados transplantados a força para cá. Eram seres humanos dotados de corpos usufruíveis porque sem alma, daí a idéia de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. As mulheres eram e são, no olhar dos colonizadores e neocolonizadores, “máquinas de fazer sexo bundudas” – chamo a atenção para o termo máquinas indicador maior da desumanização das mulheres brasileiras por parte desta visão.
Por serem máquinas, não podem reclamar e ter direitos. Não podem demonstrar qualquer sinal de humanidade, seja falar, expressar vontades, exigir autonomia. Desde quando máquinas podem reivindicar algo dos seus “operadores” a não ser os “insumos” que as fazem funcionar (leia-se dinheiro, comida, presentes etc.)? E estes “insumos”, os operadores têm de sobra.
Esta prática machista vai muito além das desigualdades sociais que beneficiam o capital. Tem um corte étnico – o referido guia é preciso ao separar as meninas brancas, “patricinhas”, chamadas de Britney Spears (portanto, referenciadas em uma mulher branca das culturas hegemônicas) que “não aceitam cantadas” e as “popozudas” que, embora sem mencionar explicitamente, são as mulheres negras que “pintam o cabelo de loiro” e são “bundudas”. É um machismo articulado com o racismo originário da desumanização dos não-brancos que se origina no período da colonização. Esta é a prática da tolerância opressiva de que fala Darcy Ribeiro – tolerar a existência do outro para poder reinar sobre os seus corpos e mentes. Enfim, a tolerância da existência dos não-brancos no Brasil tem a função de usufruir plenamente dos corpos destes “seres sem alma” – usar os corpos como máquinas de produzir e como máquinas de fazer sexo. É uma prática de opressão cotidiana, torturante, cruel que, no seu ápice, desemboca na agressão dos jovens de classe média na Barra da Tijuca contra uma mulher negra sob a alegação de que pensavam tratar-se de uma “prostituta” no ano de 2007.
As “maquinas de fazer sexo” são totalmente opostas a figura mitológica de Virgem Maria, mas sua existência é tolerada, apesar de algumas serem apedrejadas. Afinal, elas podem servir para divertir os discípulos de Cristo. O problema é que estas máquinas pensam, agem e são seres humanos não como Maria, a Virgem, ou Eva, a pecadora, mas como Iansã, a guerreira, dona plena de seu corpo e de suas vontades e desejos.

União quer proibir revista que chama brasileira de ?máquina de sexo?
A pedido da Embratur, a AGU acionou a Justiça Federal do Rio para tirar de circulação um guia turístico para estrangeiros FELIPE SELIGMAN
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A pedido da Embratur, a AGU (Advocacia-Geral da União) acionou a Justiça Federal do Rio para tirar de circulação um guia turístico para estrangeiros sobre a capital carioca. A publicação "Rio For Partiers" (Rio para festeiros) define parte das brasileiras como "máquina de sexo bunduda".
Segundo a Embratur, o guia "viola a dignidade humana e expõe o povo brasileiro a situação vexatória". A publicação, vendida pela internet, é editada em inglês pela Solcat Publishing Editora e está em sua 7ª edição.
De acordo com o site do guia, são vendidos cerca de 8.000 exemplares anualmente.
Segundo a ação da AGU, o guia classifica as mulheres brasileiras em quatro grupos: "Britney Spears", "popozuda", "hippie/raver" e "Balzac".
As primeiras seriam "as filhinhas de papai, se vestem como a Britney Spears, são maravilhosas, mas não deixam ninguém cantá-las. Pode esquecà ª-las a menos que seja apresentado a uma".
Já a "popozuda" é definida da seguinte forma: "Máquina de sexo bunduda (...). Bom para você investir seu tempo porque o motel é sempre uma possibilidade com essas maravilhas". Segundo o guia, "elas malham, usam calças apertadas enfiadas na bunda, pintam o cabelo de loiro e se esforçam ao máximo para aparecer".
As "hippies/ravers" são definidas como "garotas divertidas, fáceis de se aproximar, fáceis de conversar, difíceis de beijar, fáceis de ir para a balada". A "Balzac", por sua vez, seria a mulher que "quer se divertir, dançar, beber e beijar". O guia sugere ao estrangeiro para trata-la "como uma dama, que elas te tratarão como um rei, talvez não hoje a noite, mas amanhã com certeza".
Para a Embratur, no entanto, o guia estimula a prática de exploração sexual e utiliza em sua capa, sem autorização governamental, um selo do Ministério do Turismo -o Brazil Sensational-, criado em 2005 para esti mular a vinda de turistas estrangeiros ao Brasil.
A Embratur também afirma que o livro explicaria aos estrangeiros que os bailes de carnaval são "festas ao ar livre com atividades de semi-orgia (não tem sexo em público, mas é garantido quando você traz ele/ela de volta)".
A Folha tentou comprar o livro pela internet, mas não obteve sucesso. Também tentou falar com o autor da publicação, Cristiano Nogueira, que não atendeu o telefone até o fechamento desta edição.
A AGU cita a Lei de Imprensa para justificar o pedido, alegando que o guia pratica "abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação".
Também alega que "o teor da publicação viola os princípios da Política Nacional de Turismo e, em última instância, um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito- a dignidade da pessoa humana (...), tendo em vista a exposição vexatória do povo brasileiro com o intuito de promov er a exploração sexual".
Até o início da noite de ontem, a Justiça do Rio de Janeiro não havia analisado o caso.
(Folha de S. Paulo, 09/01/2009)