Justiça

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“Agora você chora, mas na hora de roubar, roubou”. O comentário, dirigido a um menor acusado de furto, não foi feito por um pomposo senhor conservador em algum rincão do país ou por um dos sempre alertas vigilantes da “moralidade”, que buscam garantir “direitos humanos apenas a humanos direitos”. A frase acima foi dita por um promotor de justiça da vara da Infância e Adolescência da maior cidade do país, São Paulo.

A conselheira tutelar de Vila Prudente, Marina de Lourdes Onofre, chegava ao Fórum do Piratininga acompanhando a família de um jovem de 16 anos acusado de furto que comparecia à sua primeira audiência com o promotor público, como manda a lei. Nervosa, a mãe do menino pediu que Marina acompanhasse o filho e o marido durante a audiência. Lá dentro, durante a conversa, o garoto começa a chorar, levando ao educado comentário do promotor. “Eu não fiz nada”, foi a resposta do menino, seguida de outro comentário do representante da Justiça: “É, vocês nunca fazem nada, a polícia é que tem mania de perseguir os pobres e oprimidos”. O pai tenta consolar o menino com um afago, o que leva o promotor a mais uma frase iluminada: “É por isso que fica assim, vocês ficam passando a mão na cabeça. Onde vocês estavam que não vêem ele fazendo essas coisas?” O pai, cabisbaixo, responde: “A gente não tem culpa”. Nesse momento, Marina percebeu que o promotor a tomava pela mãe do garoto e se identificou como conselheira. A partir daí, apesar de manter-se ríspido, o promotor cessou sua explanação edificante sobre o caso.

Esse caso ilustra um tipo de desrespeito bastante comum no estado de São Paulo em relação ao tratamento dispensado aos meninos e meninas que cometem infrações. “O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não tem sido aplicado, principalmente na fase de conhecimento”, acusa Ariel de Castro Alves, coordenador da OAB-SP para Criança e Adolescente e advogado da Fundação Travessia, que presta assistência para jovens e crianças carentes da cidade. Essa fase do processo é o momento em que o caso é levado até o promotor, que avaliará o caso e decidirá o encaminhamento dado ao jovem, que pode ser o arquivamento da denúncia por falta de provas, solicitação de investigações complementares e, no caso de infrações graves (crimes contra a vida), enviar o caso a um juiz e solicitar a custódia temporária. No entanto, a praxe de boa parte dos promotores parece pular a avaliação do crime cometido pelo menor e vai direto para seu encaminhamento para a punição.

“Na execução das penas, alguns juízes e promotores têm fiscalizado a Febem com afinco, mas entre os que atuam na fase de conhecimento a maioria não possui nenhuma compreensão do ECA”, completa. É curioso notar que, segundo Castro, a etapa da execução penal em São Paulo está sendo fiscalizada com maior dureza por representantes do Judiciário. A execução, na maioria dos casos, é realizada na Febem, conhecida nacionalmente como modelo do que não se deve fazer em matéria de ressocialização de crianças e adolescentes infratores. Os horrores de suas instalações, com menores agredidos e abusados cotidianamente, têm sido amplamente divulgados pela imprensa e o governo tucano já tentou diversas manobras para maquiar o caos que se transformou a Febem paulista. No entanto, o mesmo não acontece com abusos como o cometido pelo promotor denunciado por Marina de Lourdes. Escondidos em escritórios e temidos pela população menos informada, juízes e promotores o ECA e mesmo a Constituição, cuja estrita aplicação deveriam fiscalizar e promover.
“Todo o processo desrespeita a Constituição: Não há amplo direito à defesa, não há direito ao contraditório”, ataca Antonio Mafesoli, membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Condep). “Existe um absurdo que só acontece em São Paulo. Muitos juízes consideram que a confissão dispensa a prova e seguem sentenças modelo, do tipo: um adolescente com uma arma, tantos meses, dois adolescentes desarmados, tantos”, indigna-se.

“Há uma opção consciente pela punição e muitas internações ilegais. Houve até um acórdão do Tribunal de Justiça (TJ) onde um infrator era comparado a um animal selvagem”, relata Aline Yamamoto, advogada do Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), que presta assistência a menores sem condições de pagar um advogado. “A câmara do TJ tem os desembargadores mais antigos e eles têm uma visão leiga em relação ao ECA. É uma aberração jurídica prender um jovem por causa de roubo, tráfico ou furto quando o estatuto recomenda expressamente a privação da liberdade apenas nos casos de crime contra a vida”, complementa.

Números parecem demonstrar essa opção feita pelo judiciário paulista. Levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo mostra que os adolescentes são responsáveis por apenas 1% dos homicídios praticados no estado e por menos de 4% do total de crimes. Os crimes graves atribuídos a adolescentes no Brasil não ultrapassam 10% do total de infrações. Mais de 70% das infrações realizadas por menores são crimes contra o patrimônio, como furto e roubo.

“Às vezes propõem-se penas alternativas, mas essas são aplicadas principalmente para a classe média”, sustenta Mafesoli. “Com a classe baixa, há a idéia de que ela vai voltar a cometer infrações. Então, tira-se o menor do convívio da família para que ele se afaste do crime. Distancia ele da família, da comunidade, coloca na cadeia e diz que vai ajudá-lo”, ironiza.

“Uma vez, apareceu aqui uma menina com problemas psiquiátricos que tinha ameaçado a mãe com uma faca. Eu a levei até a Vara da Infância para que a encaminhassem para um tratamento, mas o juiz a mandou para a Febem, onde não há psicoterapia, que é o que ela precisa”, reclama a conselheira Marina de Lourdes Onofre. “A Febem não tem estrutura para recuperar ninguém. Quando eu vejo um caso de menor viciado em drogas, sei que ele vai terminar na Febem, que não tem nenhum programa de recuperação de adictos e não vai ajudá-lo em nada”, lamenta.

Solução: cumprir a lei Mas como encontrar soluções para um sistema que parece estar contaminado do começo ao fim por descaso e negligência? De um lado, há o governo do estado que desrespeita claramente o ECA ao tomar medidas como a transferência de 247 internos de Franco da Rocha para presídios do interior, sendo que os mesmos jovens já haviam sido encarcerados no Centro de Observação Criminológica do Carandiru, nos Cadeiões de Santo André e de Pinheiros e também no Presídio de Parelheiros, sem qualquer acompanhamento psicológico ou pedagógico. Tudo isso com o beneplácito do sistema judicial.

“O que poderia ser feito é o Judiciário cumprir a lei”, prega Aline Yamamoto. “Se esses casos fossem tratados na esfera penal e não de forma hipócrita como ‘ressocialização’, haveria mais garantias durante o processo, já que os juízes penais são mais legalistas”, completa. “O Judiciário precisa discutir, ele sempre fica muito distante da sociedade”, defende Castro. “Tentamos discutir ações com juízes, mas eles diziam que éramos leigos, não tinham nada que discutir conosco. Juízes e desembargadores deveriam sair do escritório, ouvir a sociedade civil e o próprio adolescente”, sustenta.

Entre as soluções apontadas está a obrigatoriedade de uma matéria específica sobre o direito infanto-juvenil e, principalmente centrado no ECA, nas faculdades de Direito, o que hoje não acontece. “O estatuto é progressista, revolucionário, mas escolas de direito em que os operadores das leis se formaram são conservadoras, reacionárias mesmo, e não sabem o que fazer com essas leis modernas”, afirma Antonio Mafesoli. “Os profissionais dessa área devem saber que só conhecimento jurídico não basta, é preciso ter um conhecimento multidisciplinar. Só assim podemos evitar as internações, melhorar a situação das crianças e diminuir a impunidade de adultos que se utilizam de menores em seus crimes”, completa Ariel Castro, que defende ainda a criação de delegacias especiais para crianças e adolescentes, abrigando psicólogos e assistentes sociais, o que melhoraria o tratamento de jovens tanto vítimas quanto autores de infrações.

Enquanto nada acontece, esse sistema viciado segue condenando centenas de jovens a uma vida marginal. “Nos últimos quatro anos, aumentou em mil o número de internos da Febem. O governo estadual, ao invés de fazer somente presídios, agora também resolveu fazer unidades da Febem, ou seja, ele reconhece assim que o modelo é de fato um sistema penal e não de ressocialização”, esclarece Aline Yamamoto. “Na verdade, é um modelo pré-iluminista. Se fosse a Lei de Talião, pelo menos seria respeitada a proporcionalidade, mas nem isso acontece. É um sistema inquisidor”, ataca.