Mais doloroso seria não lembrar

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Na Argentina, um centro clandestino de tortura, onde eram mantidos presos políticos, torna-se museu

Por Ricardo Viel   "Quando caí, na tortura, me perguntaram qual era, pelo que eu sabia ou tinha escutado falar, o lugar que eu menos queria estar. Eu disse: – Na Esma. – Você está na Esma – me responderam.” O relato é de Elisa Tokar, no livro Ese Infierno (“Esse inferno”), no qual ela narra seus primeiros momentos no mais temido centro de detenção, tortura e “desaparecimento” da Argentina, a Escola de Mecânica da Armada ou, simplesmente, Esma. Como ela, milhares de argentinos foram vítimas da ditadura militar no país, que durou de 1976 a 1983 (veja o quadro). Os números oficiais apontam 18 mil mortos e desaparecidos durante a repressão; as organizações de Direitos Humanos falam em 30 mil. Apenas pela Esma passaram 5 mil “opositores políticos”, dos quais apenas uma centena saiu com vida. Felizmente, os tempos são outros. Hoje, quem visita a antiga instalação militar é muito bem recebido. Seja pela jovem guia Sabrina Oswoski, mais nova do que a democracia no país, seja pelo casal de cachorros que se acercam cada vez que chega um visitante. Tenho a oportunidade de conhecer o principal campo de concentração da Argentina, agora transformado em Espaço para a Memória. Embora setores da sociedade protestem quando se compara a Esma aos campos nazistas, e o genocídio argentino ao judeu, não há melhores termos para se definir o centro. Um acordo entre o governo federal e a municipalidade de Buenos Aires, firmado no dia 24 de março de 2004, 28º aniversário do golpe militar, determinou a desocupação de toda a área (pertencente às Forças Armadas) e a criação de um espaço destinado à reflexão e promoção dos Direitos Humanos. O transpasse total dos 175 mil m2 que ocupa a Esma, localizado a menos de um quilômetro do estádio Monumental de Nuñez, acontecerá no final de setembro. Em outubro, parte já estará aberta ao público. Por ora, sobreviventes, pessoas ligadas ao projeto e jornalistas pré-cadastrados podem visitar o local, já que 50% da área já pertencem ao museu, inclusive os prédios mais significativos, como o Cassino ou Casa dos Oficiais, um sobrado de três andares, com porão e sótão. No porão, além da sala de tortura, havia uma oficina de falsificações de documentos – realizadas pelos próprios prisioneiros – e uma enfermaria, onde, durante os sete anos e meio em que a escola funcionou como centro de detenção ilegal, cerca de 50 mulheres deram à luz. Na maioria dos casos, os filhos eram entregues à adoção para famílias de militares ou simpatizantes da ditadura. Calcula-se que 500 recém-nascidos tenham sido tirados das mães no período – na Esma e em outros locais. A organização Avós da Praça de Maio, que luta há décadas para encontrar os netos perdidos, já conseguiu identificar 88 deles, que recuperaram o verdadeiro nome, família e história. No primeiro e segundo andares estavam os dormitórios dos militares. No terceiro, ficava o alojamento dos presos, que dormiam encapuzados e algemados às estruturas de ferro que sustentam o teto, e mesas para o trabalho – realizado pelos prisioneiros – de tradução de documentos e elaboração de textos pró-militares. Havia também um depósito onde os militares guardavam bens roubados das casas dos dissidentes durante os operativos (seqüestros), como móveis, eletrodomésticos, televisores, roupas, louças etc. No térreo, estava o refeitório dos oficiais e o Salão Dourado, que contava com sistema de rádio, para comunicação interna e externa, e um de televisão para vigiar os presos. No salão também eram realizadas reuniões militares. A partir do relato dos sobreviventes da Esma, foi possível reconstituir as instalações. Placas indicam a finalidade de cada cômodo e relatam os horrores vividos pelos prisioneiros, como o de Sara Osastinsky (detida no local em 1979): “Aproximadamente às 17 horas começavam a chamar os detentos, pelo número. Formava-se uma fila indiana e, encapuzados e com correntes nos pés, os prisioneiros eram levados à enfermaria do porão, onde um enfermeiro lhes aplicava uma injeção para adormecer, mas não os matava. Assim, vivos, eram jogados pela porta lateral do porão e introduzidos em um caminhão”. Os prisioneiros não sabiam, mas o translado não era uma simples mudança do local de detenção, como era dito pelos militares. Ser transladado significava desaparecer. As vítimas eram colocadas desacordadas em aeronaves e sobrevoavam o rio da Prata ou o oceano Atlântico. Com vida, eram lançados de uma altura de 2 mil metros. Alguns corpos eram trazidos pela maré e identificados. Estima-se que 2.500 prisioneiros da Esma tenham sido mortos desta forma. Ferida aberta O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980, certa vez disse: “O desaparecido é um ausente sempre presente. É uma dor que nunca fecha, porque se espera que o ausente bata à porta e se sente em seu lugar de sempre”. A pesquisadora Judith Said, coordenadora do Arquivo Nacional da Memória da Argentina, compartilha da opinião do escritor. “Não acreditamos que seja abrir uma ferida. Há uma falsa cicatrização de uma ferida que está à flor da pele.” Ela busca até hoje dois irmãos desaparecidos. Embora reconheça que esse resgate provoque sofrimento, considera-o importante e até necessário. “É doloroso, sem dúvida. Mas, o que aconteceu foi ainda mais. Não recordá-lo, isso sim é que é doloroso. É saber que nós, que sobrevivemos, pudemos aceitar, permitir que isso acontecesse.” Para Judith, que também participa da Comissão Bipartida responsável pelos trabalhos de transformação do museu, as lembranças sempre voltarão à tona, a não ser que o processo de transição da ditadura para a democracia tivesse incentivado a produção de relatos do que realmente se passou. A importância de lugares como o Espaço para a Memória seria a de juntar as peças do quebra-cabeça e recontar a história, “para que tudo isso que esteve a serviço da repressão hoje esteja a serviço da memória”. Pesquisa realizada pelo Instituto OPSM, em 2004, mostrava que 62,8% dos argentinos aprovavam a criação do Museu da Memória. Para Judith, tanto a criação do espaço quanto o julgamento dos militares após as leis de anistia (ver quadro), produzidas de modo parecido ao que ocorreu no Brasil, são sinais claros de que a sociedade começa a tomar clara consciência de que os acontecimentos dos anos entre 1976 e 1983 abarcaram “todo o país e que todos foram vítimas”. Para Judith, a recuperação da memória e o julgamento dos militares devem caminhar juntos, para demonstrar às futuras gerações que as violações de Direitos Humanos são punidas. Linha do tempo 1976- Nas primeiras horas do dia 24 de março os militares anunciam um golpe. Isabel Perón é detida e a nova junta militar, comandada pelo general Rafael Videla, assume o poder e decreta guerra aberta aos guerrilheiros, denominados terroristas. 1977 – No dia 24 de março o jornalista Rodolfo Walsh denuncia os abusos cometidos pelos militares na guerra contra os revolucionários. No dia seguinte um operativo o seqüestra. Walsh resiste e troca tiros com os militares. O jornalista é visto pela última vez na Esma, bastante ferido. 1978 – A Argentina sedia e ganha a Copa do Mundo. A menos de um quilômetro do Monumental de Nuñez, onde é realizada a final do mundial, os presos são torturados na Esma. 1979 – A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) visita a Argentina e publica duro relatório sobre a política de extermínio dos militares. A Comissão também visita a Esma, mas, mascarado por obras, o local não é identificado como o centro de tortura relatado. 1982 – O governo militar, em meio a sérias crises, ocupa as ilhas Malvinas, pertencentes ao Reino Unido. Mais de 600 argentinos são mortos. A rendição, menos de dois meses depois, é mais um duro golpe nos militares. 1983 – Retorno do regime democrático. O presidente Raúl Alfonsín, eleito por voto direto, determina a criação de uma comissão para investigar o destino dos desaparecidos. A Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (Conadep) realiza um relatório detalhado sobre as desaparições e arbitrariedades cometidas durante o regime. 1985 – Os altos responsáveis pela ditadura na Argentina são julgados e condenados à prisão perpétua por crimes de tortura, homicídio e roubo. O restante dos militares é beneficiado pelas leis de Ponto Final (1986) e Obediência Devida (1987) e não são julgados. Calcula-se que mais de mil militares poderiam ser julgados na época por participação nos crimes praticados. 1989-1990 – O presidente eleito Carlos Menem inicia um processo de “reconciliação e pacificação”, que termina com indultos de anistia aos militares condenados. 1995 – O ex-militar Adolf Scilingo concede uma entrevista ao jornalista argentino Horacio Verbitsky, e relata, com riqueza de detalhes, os “vôos da morte”. Pela primeira vez um militar reconhece a prática como sistemática. Atualmente Scilingo cumpre pena de 640 anos de prisão. 2003 – Néstor Kirchner é eleito presidente da Argentina. 2005 – O Tribunal Supremo da Argentina declara as leis de Ponto Final e Obediência Devida inconstitucionais. Diversas causas contra militares são reabertas. 2006 – Júlio Simon, o Turco Julián, é condenado a 25 anos de prisão. Miguel Etchecolatz é condenado à prisão perpétua. São os dois primeiros condenados após a reabertura dos processos. No dia em que a sentença de Etchecolatz é lida, uma das testemunhas-chave para a condenação do ex-militar, o pedreiro aposentado Jorge Julio López, desaparece. 2007 – No dia 24 de março a sociedade Argentina relembra o 31º aniversário do golpe e cobra a aparição de López, o primeiro desaparecido após o fim de ditadura.