Mulher, negra e de cabelo crespo sim

Para contestar padrões de beleza, o projeto “Tecendo e Trançando Arte”, realizado pelo coletivo Manifesto Crespo, promove oficinas que ensinam a técnica do turbante e do trançado dos cabelos; última vivência ocorreu em aldeia indígena de SP

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Para contestar padrões de beleza, o projeto “Tecendo e Trançando Arte”,  realizado pelo coletivo Manifesto Crespo, promove oficinas que ensinam a técnica do turbante e do trançado dos cabelos; última vivência ocorreu em aldeia indígena de SP

Por Anna Beatriz Anjos

[caption id="attachment_60324" align="alignleft" width="300"]manifesto-crespo-forum2 Projeto “Tecendo e Trançando Arte” existe há quatro anos e já atingiu mais de mil pessoas, a maioria mulheres (Foto: Semayat Oliveira)[/caption]

Se nas sociedades modernas as mulheres sofrem com o machismo, quando são negras, a opressão é dupla, motivada por seu gênero e sua raça. Uma das formas pela qual esse sistema de exclusão se expressa é o “padrão de beleza”, que elege brancas e magras, com cabelos lisos e traços finos, como o ideal a ser atingido.

As mulheres negras, portanto, além de marginalizadas nos espaços de trabalho e educação, nas esferas de decisão e poder e também nas representações veiculadas pela mídia, enfrentam ainda a subjugação estética. Em um país onde machismo e racismo se cruzam e se somam, as características físicas negras, sobretudo femininas, são inferiorizadas a todo momento.

Por causa desses parâmetros – que também costumam ser racistas –, muitas meninas negras crescem com a autoestima abalada, em uma constante jornada para corrigir um suposto defeito catalogado pela sociedade. Mas como consertar um ‘defeito’ que é sua própria condição física natural?”, escreveu a militante feminista Jarid Arraes, blogueira da Fórum.

O coletivo Manifesto Crespo surge em São Paulo com o objetivo de contestar e fissurar essa lógica. “Tudo começou quando um núcleo de mulheres negras, jovens, se reuniu para discutir a questão da identidade a partir do cabelo, das nossas dificuldades em sermos aceitas com o cabelo natural, crespo”, conta a produtora e socióloga Lúcia Udemezue. 

Por meio do projeto “Tecendo e Trançando Arte”, o grupo promove oficinas que ensinam a técnica do turbante e do trançado dos cabelos com “uma abordagem histórica e cultural”. Durante a atividade, uma roda de conversa é formada, na qual as educadoras discutem com as participantes a relação com seus corpos, além de compartilhar relatos e experiências.

Pensamos em montar um projeto que fosse artístico, pedagógico e ao mesmo tempo político, para que a gente criasse um ambiente onde pudéssemos compartilhar essas mesmas vivências e ouvir de outras mulheres como são ou não aceitas na sociedade por conta de um padrão de beleza imposto”, adiciona Lúcia.

Desde que foi criado, há quatro anos, o “Tecendo e Trançando Arte” já atingiu mais de mil pessoas – segundo as organizadoras, “a maioria de mulheres, em São Paulo e região”. Em 2014, foi contemplado pelo Prêmio Lélia Gonzalez (Protagonismo de Organizações de Mulheres Negras), lançado em parceria pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). A partir daí, o coletivo expandiu seu espaço de atuação e passou a visitar comunidades para além da capital. Os critérios de escolha são a preservação da memória e tradições da população negra e indígena, além da presença de mulheres nos ambientes de liderança.

Nas vivências, as educadoras debatem também o “sofrimento de prateleira”: a não existência de cosméticos fabricados especialmente para as mulheres negras, considerando os tons de suas peles e as especificidades de seus cabelos. “Muita gente nem percebe que existe uma quantidade enorme de produtos que não tem nada a ver com a gente. E aí, todos os produtos voltados para o cabelo crespo são para domar, conter, ‘dar um jeito’, ‘arrumar’, nunca valorizando a característica natural do cabelo, mas sim tentando transformá-lo em outra coisa. Temos um trabalho de reconstrução diária”, diz a designer Nina Vieria, integrante do coletivo.

Intercâmbio [caption id="attachment_60321" align="alignright" width="300"]Mulheres e crianças da aldeia Tenondé Porã aprenderam a fazer turbantes (Foto: Semayat Oliveira) Mulheres e crianças da aldeia Tenondé Porã aprenderam a fazer turbantes (Foto: Semayat Oliveira)[/caption]

No último dia 28, o Manifesto Crespo visitou a aldeia indígena Tenondé Porã, localizada em Paralheiros, no extremo sul de São Paulo. A ideia era promover um intercâmbio entre as índias e a cultura afro, além de ouvir os relatos dessas personagens, que cultivam um laço tão estreito com a terra.

Nina Vieira esclarece porque, na perspectiva do coletivo, é tão importante a troca entre mulheres negras e indígenas. “Tem a questão de autoestima. Estamos falando de estética negra, da não aceitação do cabelo, do formato do corpo e do rosto, e a gente percebe, dialogando com elas, que isso também existe para a mulher indígena. Tem também a questão da resistência”, destaca. “Em dezembro, estivemos em uma comunidade quilombola, que tem uma relação acirrada com a especulação imobiliária, e isso acontece aqui também, por conta do processo de demarcação de terras.”

Mas a Tenondé Porã foi escolhida por uma particularidade: entre seus líderes, está a índia Jerá Guarani, de 34 anos. “Queríamos ouvir, a partir da ótica da mulher indígena, como é ter uma uma mulher à frente. Tradicionalmente, ouvimos falar de caciques e pajés à frente, então queremos saber como é ter mulheres despontando”, complementa Nina.

Na oficina de turbante, foram levados em conta aspectos da rotina da aldeia. As educadoras ensinaram às índias, por exemplo, como fazer uma saia utilizando apenas um pedaço de tecido. A peça incluía um pequeno bolso na região da cintura, pensado para o armazenamento de sementes durante o processo de semeadura, frequentemente realizado pelas indígenas.

Era perceptível o interesse das mulheres Guarani Mbya em aprender as amarrações. “Eu tinha curiosidade de conhecer a cultura afro. A minha mãe é descendente de negros, então ela tem o cabelo crespo. Queria fazer nela os turbantes e trançados, por isso queria aprender”, conta a professora Aline Jaxuka, de 23 anos.

Para a também professora Priscila Para Poty, de 24 anos, a visita do Manifesto Crespo foi importante por conta das semelhanças entre as problemáticas vividas por mulheres negras e indígenas. “Aqui na aldeia, não são todas as guaranis que têm cabelo liso. [Tem gente com] cabelo crespo, mais enrolado. Essas mulheres, quando olham para outras com cabelo liso, querem ter aquele cabelo também”, relata.

(Foto de capa: Nina Vieira)