O mundo dos sem-lugar

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Santos, 2 de setembro de 2002. Seis africanos chegam ao porto escondidos num pequeno compartimento da embarcação. A tripulação do Monaco, de bandeira panamenha, só percebeu a presença dos clandestinos quatro dias após a saída do Porto de Freetown, em Serra Leoa. Mas já era tarde quando os gritos de Ibrahim Suma foram ouvidos. Cinco de seus companheiros já haviam morrido por asfixia. Ele era o único sobrevivente da trágica fuga de um país em guerra.

Nem todas as histórias de imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil têm esse final cruel. Mas nelas há sempre forte componente de frustração com o próprio chão, um desespero gerado pelos mais diversos fatores: perseguição política e étnica, crise econômica, guerras civis ou conflitos entre países. Em todo o mundo os refugiados chegam a 22 milhões, e muitos deles encontram em terras brasileiras uma opção de fuga.

Embora a globalização tenha facilitado como nunca a circulação de bens e capitais, as fronteiras dos países desenvolvidos são cada vez mais vigiadas e fechadas para os que pretendem encontrar segurança fora de seus locais de origem. Como as fronteiras brasileiras são mais permeáveis à entrada de imigrantes sem autorização, esse movimento ilegal vem aumentando nas últimas décadas. Hoje, há cerca de 3 mil refugiados ou solicitantes de asilo no Brasil, mas o número de estrangeiros que estão aqui de forma irregular pode chegar a 100 mil.

Em São Paulo, a maior parte daqueles que não têm como subsistir está sob os cuidados da Cáritas, organismo da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, e do Centro Pastoral dos Migrantes, também da Igreja Católica. Mas vários deles também podem ser encontrados como moradores de rua, na mesma condição de migrantes de outras regiões do Brasil, ou como gente da própria metrópole. A Fórum conversou com quatro imigrantes que vieram para cá não propriamente para conseguir um futuro melhor, mas como uma das únicas chances de sobreviver. Mais que números ou dados, a história de cada um dá a dimensão do drama de seres humanos que por uma razão ou outra se sentem obrigados a fugir do seu canto original.

A guerra e a discriminação Nicolas Wendy é senegalês e está no Brasil há oito meses, num albergue de São Paulo. Vem de um continente que, sozinho, é responsável por 5 milhões de refugiados do mundo. E possui outros 20 milhões de pessoas deslocadas. Com o fim da Guerra Fria e conseqüente desinteresse das grandes potências na região, guerras civis e conflitos aumentaram ainda mais, gerando situações bizarras. Há países da África que recebem refugiados e expulsam outras pessoas, que têm de ir para outros lugares do continente.

O Sudão, por exemplo, abriga 390 mil refugiados, segundo dados da Acnur, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, sendo 340 mil eritreus e 35 mil etíopes. O motivo desse fluxo foi o conflito fronteiriço entre os dois países de 1998 a 2000. Entretanto, o próprio Sudão foi um dos que mais geraram refugiados na África, cerca de 475 mil, em função de uma longa guerra civil no país. A maior parte está em Uganda, Quênia e na mesma Etiópia, país dos refugiados que foram para o Sudão.
O Senegal de Wendy é um país diferenciado no continente. Tem relativa tradição democrática, eleições periódicas e liberdade de imprensa bem mais ampla que no resto da África. Ainda assim, desde sua independência há conflitos separatistas no sul, na região de Casamança, separada do restante do país pela Gâmbia. Por causa do confronto, milhares de pessoas buscaram abrigo em campos de refugiados na Guiné-Bissau.

Wendy preferiu o Brasil. O motivo: “É aberto a imigrantes. Outros países são mais difíceis de entrar”. Ele vem de uma região rural, na área do conflito separatista. A perversidade do movimento guerrilheiro foi determinante para que saísse de lá. “A guerrilha seqüestra crianças e jovens para forçá-los a entrar no exército”, conta. Ao relatar outra prática comum, o estupro de mulheres e garotas pelos combatentes, Wendy fica embaraçado. “Eles levam meninas para o mato, para... fazer coisas... sexo”. Além disso, as muitas minas terrestres na região destruíram qualquer possibilidade de prática agrícola em grande escala, tornando impossível qualquer progresso material.

Diante disso, Wendy migrou para a capital, Dacar, na parte norte do país. Mas o fato de vir da região do conflito, como outros milhares, fez com que acabasse estigmatizado e discriminado pelos moradores locais. Sem poder voltar para sua família, sem emprego e nenhuma perspectiva, veio para o Brasil, onde luta para obter documentação legal. Enquanto isso, passa o dia à procura de ocupação. Pretende dar aulas de Francês, idioma oficial de seu país. Mas Wendy ainda fala Espanhol, Inglês e mais cinco dialetos de Casamança.

Expulso do Primeiro Mundo Quando o senegalês Nicolas Wendy migrou do sul do Senegal para Dacar, viu que não era bem-vindo dentro de seu próprio país. Waldemar Gaspar Scello, de 26 anos, também viveu essa discriminação. A diferença é que seu país de origem é bem mais próspero. Vivia com a família em Messina, no sul da Itália, região que tem como base o turismo e a agricultura e é mais atrasada que o rico e industrial norte.

Limitado pelas perspectivas de emprego, resolveu buscar oportunidades. Primeiro em seu país. A primeira parada foi Bérgamo, onde viveu de bicos, sem sucesso. Partiu depois de alguns meses para Milão, onde fez curso de web design e conseguiu trabalhar na área alguns meses até ser demitido por contenção de custos. Daí em diante, várias tentativas e nenhuma ocupação. Segundo ele, a discriminação era decisiva na hora da contratação. “Um preconceito estúpido. Davam preferência a quem era do norte”, relata.

Mas Scello tinha uma ligação com o Brasil. Aliás, nasceu aqui. Seus pais decidiram voltar para a Sicília quando tinha 11 anos. Foi o suficiente para ele esquecer completamente o Português. Porém, depois de oito meses aqui, já fala com razoável fluência. Mesmo assim, a certa altura da entrevista, cansado, pede para falar em Italiano. E segue dessa forma até o fim. É na sua língua natal que conta o desconforto em relação ao novo país. “É uma cultura muito diferente, sinto-me desorientado, perdido”. Quer aproveitar o tempo aqui não só para trabalhar, mas também para se qualificar em sua área. E depois voltar para Messina.

O companheiroA população da Colômbia vive uma situação dramática. Vítima do narcotráfico, das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc), de governos de eficiência e honestidade questionáveis e da ingerência norte-americana, o país está em estado de guerra há mais de uma década. Essa situação, além de muitos mortos, produz refugiados para o resto da América do Sul. Perseguidos políticos que não sabem sequer a quem obedecer.

Essa dúvida não existe para Roberto (nome fictício), ex-funcionário do governo colombiano que havia sido deslocado para uma das chamadas zonas de distensão no sul, lugares em que as Farc têm controle administrativo tolerado pelo governo federal. Começou a ser perseguido por agentes do Estado quando descobriram sua militância política na esquerda. “Sofri ameaças de morte e voltei para junto da minha família em Córdoba”, relembra. Mas rapidamente foi encontrado e as ameaças passaram a ser feitas contra sua mulher e seus filhos. Decidiu ir embora.

Sua primeira parada não foi o Brasil. Fez contatos políticos com o Partido Comunista do Uruguai e conseguiu ficar lá. Não por muito tempo. Um mês depois e a visita do subsecretário de Estado norte-americano para a América Latina, Otto Reich, fez com que os camaradas de Roberto pedissem para ele ir, com medo de uma eventual investigação e represália por parte dos norte-americanos. “A esquerda latino-americana tem a solidariedade limitada pela necessidade”, filosofa. “Senti-me abandonado. Como me sinto ainda hoje.”

Restava o Brasil. Roberto tinha alguns conhecidos no país. Eles, porém, não puderam alojá-lo. Aqui, procura emprego, não para voltar à Colômbia, mas para ir a Cuba. Lá, segundo ele, talvez seja um dos únicos países em que seu ideal de justiça sobreviva. A volta para casa parece um sonho distante, sua luta política é a principal missão agora. “Abri mão de tudo. Vendi apartamento, carro e abandonei um padrão de vida confortável para enfrentar os inimigos da Colômbia.” Há um mês no Brasil, desde o período no Uruguai não entra em contato com a família.


Seus três filhos tiveram que deixar a escola, sua esposa não está mais empregada. A certa altura, mesmo reafirmando sua convicção, deixa transparecer dúvidas se realmente valeu a pena. Mas logo a indignação ressurge. “A história tem que ser reescrita. Não entendo como os brasileiros só podem pensar em cachaça e futebol. Precisamos pensar em um futuro melhor, com o ser humano em primeiro lugar”. Cansado, Roberto pede para parar a entrevista. “Hoje, meu país é meu inimigo”, conclui. Entre seus novos conhecidos, gente como ele, sem destino nem futuro certo, só é chamado pelo apelido de “companheiro”.

Máfia política
Quando perguntada a respeito de sua primeira impressão sobre seu novo país, essa argentina de 31 anos se diz surpresa com a quantidade de gente que existe nas ruas de São Paulo. “As pessoas daqui são muito comodistas, como é que os brasileiros não fazem nada sobre isso?”, questiona. A seguir, lembra que em Buenos Aires, onde morava, não havia ninguém vivendo nas ruas há pouco menos de um ano. Situação que mudou num curto espaço de tempo.

Mas não foi a crise econômica que trouxe Susana (nome fictício) para cá. Jornalista, trabalhava no Senado argentino. A entrada de um novo diretor de imprensa mudou seu destino. “Ele fez novos contratos com os funcionários e passou a ficar com 50% de tudo que ganhávamos.” A situação era insuportável. Ela denunciou. O diretor foi condenado por uma investigação administrativa. Sua atitude, contudo, lhe rendeu a perda da tranqüilidade. “Passei a receber ameaças diariamente, não podia mais ficar na Argentina.”

Pensou no Brasil porque tinha uma colega aqui. Veio junto com a filha, mas a hospedagem não pôde ser estendida por mais que um mês. A amiga não teve condições financeiras de bancar a permanência de Susana. Foi parar num albergue e agora trabalha como voluntária na campanha contra a Alca. “Não consigo ficar parada, enquanto não arrumo emprego estou na campanha. Trabalhava 12 horas por dia. Se não tiver nada para me ocupar, enlouqueço”, garante.

A incerteza em relação ao futuro a perturba. A filha perdeu um ano na escola e ainda não está matriculada aqui. Sabe que durante bom tempo terá de permanecer no Brasil. “Para o meu país não posso voltar. Não sei o que vai acontecer comigo daqui para a frente”. Susana espera legalizar sua condição de refugiada. E aguarda dias melhores.
O antropólogo Darcy Ribeiro gostava de recordar uma certa passagem de suas viagens pela América Latina. Perguntado na fronteira entre dois países, a respeito de sua identidade, sobre sua raça, ele respondeu, abrindo os braços: “humana”. Infelizmente, na lógica da globalização econômica isso parece não ter importância.