Opinião: A linha do Equador

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A polêmica envolvendo a Odebrecht, os empréstimos feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDS), a atitude do governo equatoriano e a resposta do governo brasileiro, permite diferentes ângulos de abordagem.

Por exemplo: qual deve ser a atitude do Estado diante das empresas privadas que prestam serviços ao poder público? Como tratar empréstimos públicos internacionais, vinculados a empreendimentos privados? Qual a atitude diante da necessidade de auditar o endividamento interno e externo ocorrido nos países da região? Que tipo de relações deve prevalecer entre os governos progressistas e de esquerda existentes na América do Sul?

A direita brasileira e sua mídia participam da polêmica com o objetivo de colocar areia nas relações entre os governos de Lula e Rafael Correa. Setores da esquerda e da ultra-esquerda, por sua vez, declaram apoio total ao Equador, criticando a postura supostamente "sub-imperialista" do governo brasileiro e sua "submissão" aos interesses de uma empreiteira.

Da direita, nada se espera. Da outra margem do rio, espera-se solidariedade na luta contra uma empreiteira e contra o endividamento externo. Mas espera-se, também, uma mirada um pouco mais larga, que busque tratar e superar os inevitáveis conflitos que existem e vão continuar existindo, entre os movimentos, partidos e governos progressistas e de esquerda, nos marcos de um plano estratégico que impeça o fortalecimento dos nossos inimigos.

Ao longo do século XX, a esquerda latino-americana e caribenha enfrentou dois grandes obstáculos: a força dos adversários no plano nacional e a ingerência externa. Esta sempre esteve presente, especialmente naqueles momentos em que a esquerda chegava ao governo ou ao poder. Quando as classes dominantes locais não davam conta de conter a esquerda, apelavam para os marines.

A novidade dos últimos dez anos (1998-2008) é a constituição de uma correlação de forças, na América Latina, que permite limitar a ingerência externa.

O ambiente progressista e de esquerda colaborou nas eleições e reeleições, ajudou a evitar golpes (contra Chavez e Evo Morales, por exemplo), sendo ademais fundamental na condenação da invasão do Equador por tropas da Colômbia. Além de minimizar ou inviabilizar políticas de bloqueio econômico, que jogaram um papel importante na estratégia da direita contra o governo Allende e continuam afetando Cuba.

Noutras palavras: a existência de uma correlação de forças favorável na região, cria melhores condições para que cada processo nacional siga seu próprio curso. Um símbolo desta nova correlação de forças é a realização, em dezembro de 2008, da cúpula latino-americana e caribenha. Nem pan, nem ibero.

Ocorre que, quando forças de esquerda e progressistas conseguem chegar ao governo nacional, o fazem com um programa baseado, de alguma forma, no tripé igualdade social, democratização política e soberania nacional.

E a defesa da soberania nacional não se faz apenas contra as "metrópoles imperialistas", envolve também administrar os conflitos entre países da região.

Estes conflitos não foram "inventados" pelos atuais governos, sendo geralmente herança de períodos anteriores, inclusive do desenvolvimento dependente e desigual ocorrido na região. Na maioria dos casos, não poderão ser superados no curto prazo: por terem causas estruturais, só poderão ter solução no longo prazo, nos marcos de um adequado processo de integração regional.

A exacerbação destes conflitos regionais teria como subproduto dissimular as contradições (muito mais relevantes) com as metrópoles imperialistas.

Portanto, do ponto de vista estratégico, devemos impedir que estes conflitos se convertam em contradição principal. Pois, se isto acontecer, a correlação de forças latino-americana se alterará em favor da ingerência externa.

É sabido que os governos progressistas e de esquerda da região trilham o caminho do desenvolvimento e da integração, adotando diferentes estratégias e com diferentes velocidades.

E já foi dito que a possibilidade maior ou menor de sucesso, em âmbito nacional, está vinculada à existência de uma correlação latino-americana favorável às posições de esquerda e progressistas.

Logo, nosso imbróglio estratégico pode ser resumido assim: como compatibilizar as diferentes estratégias nacionais, com a construção de uma estratégia continental comum (que preserve a unidade com diversidade). Ou, mais precisamente, como lidar com os conflitos entre os países da região.

Devido ao seu tamanho, força econômica, história pregressa e largas fronteiras, o Brasil é parte efetiva ou potencial em muitos conflitos regionais. Setores da direita brasileira desejam que o Brasil se comporte, nestes conflitos, ao estilo dos Estados Unidos. Em outros países, parcelas da direita querem ver o Brasil ocupando, no imaginário das pessoas, o lugar que atualmente é dos Estados Unidos.

Verdade seja dita, o Brasil tem o physique du role adequado para cumprir papéis distintos e opostos.

Por um lado, ao longo dos últimos anos nosso país se converteu em plataforma de operação de grandes empresas, que se beneficiam dos mercados, da mão de obra e das riquezas naturais dos países vizinhos. E, ao longo de nossa história, por diversas vezes o governo brasileiro foi advogado dos interesses metropolitanos e da integração subordinada.

Por outro lado, o Brasil tem condições de ser uma das locomotivas de outro tipo de desenvolvimento e integração regional, contra as diretrizes impulsionadas historicamente pelos Estados Unidos. Desde 2003, com maior ou com menor êxito, com maiores ou menores contradições, esta é "a linha do Brasil".

Alguns episódios, o mais recente envolvendo a Odebrecht, demonstram que setores da esquerda latino-americana discordam desta linha ou, pelo menos, consideram que o governo brasileiro não está sendo coerente na sua aplicação.

Evidente que dificuldades, incoerências e contradições existem. Seria tolice negá-las, mesmo porque o Brasil não se resume ao Estado brasileiro, o Estado não se resume ao governo atual, o governo atual não se resume à esquerda, além do que a esquerda também erra.

Mas, o que está em questão não são apenas estas dificuldades, incoerências, contradições e erros. Claro que existem, assim como também pesam o estilo pessoal dos governantes e implicações conjunturais. Acima disto tudo, entretanto, transparece uma divergência acerca da linha seguida pelo governo brasileiro.

A rigor, parte da esquerda latino-americana gostaria que o governo Lula adotasse o espírito da Alba (Alternativa Bolivariana).

Podemos e devemos debater (em termos de sustentabilidade interna, natureza dos acordos firmados, materialização efetiva, efeitos nos países receptores) o que faz o governo da Venezuela, mas é impossível não reconhecer que sua atitude é extremamente meritória.

Mas será que o governo brasileiro pode e deve adotar este caminho?

Podemos e devemos fazer mais do que fazemos, inclusive estabelecer parâmetros e controles sobre a atuação internacional das empresas privadas "brasileiras" (a cratera no Metrô de São Paulo não permite dúvidas acerca do que uma empreiteira é capaz de fazer). Mas, por mais que façamos, não existe correlação de forças, mecanismos institucionais e situação econômica que nos permitam operar de maneira semelhante ao governo venezuelano.

A alternativa realmente disponível para o governo brasileiro envolve solidariedade; mas sua dimensão principal é a dos acordos comerciais, econômicos e institucionais (por exemplo, a Unasul), envolvendo governos, empresas públicas e/ou privadas.

Este caminho contém diversos riscos. De saída, iniciativas como a Unasul supõem compartilhar a mesa com adversários políticos e ideológicos, que seguem governando importantes países da região. Em segundo lugar, a dinâmica da integração inclui momentos de maior protagonismo político dos presidentes, entremeados de períodos onde predomina o espírito das respectivas chancelarias. Em terceiro lugar, os acordos econômico-comerciais sempre beneficiam, em maior ou menor escala, os interesses do Capital, pelo menos enquanto este modo de produção for hegemônico nos países em questão. Em quarto lugar, as empresas envolvidas geralmente colocam em primeiro lugar seu lucro imediato e em segundo lugar o sentido estratégico da operação, ou seja, o desenvolvimento e a integração.

O ponto forte da atual posição brasileira é a insistência na construção de uma institucionalidade regional sólida, cuja expressão mais promissora hoje é a Unasul (aí compreendidos o Banco do Sul, o Conselho de Defesa etc). O ponto fraco é a ausência de controle sobre o comportamento das empresas que atuam no exterior.

No caso das empresas públicas, como se viu na Bolívia, o governo brasileiro tem meios para fazer prevalecer os interesses estratégicos do país. No caso das empresas privadas, faz-se necessário desenvolver mecanismos que garantam o mesmo, inclusive dentro do Brasil. Afinal, como sabemos, empresas que recebem empréstimos do BNDES apostaram contra o Real; e bancos que recebem estímulos do governo negam crédito barato.

Com todos os seus riscos, o que resumimos nos parágrafos anteriores parece ter sido o caminho adotado pelo governo brasileiro e não está no horizonte de curto prazo qualquer modificação. Isto aconteceria em duas circunstâncias: caso a direita recuperasse o governo, em 2010; ou caso o processo social no país se radicalizasse, alterando significativamente a correlação de forças.

Podemos discutir, discordar e até condenar a "linha do Brasil". Devemos, com certeza, exigir maior rapidez e maior dedicação na implementação desta linha, especialmente na conjuntura aberta com a crise internacional. Mas é preciso compreender sua natureza, seus limites, e as conseqüências geradas, por um possível não-pagamento de empréstimo concedido pelo BNDES, sobre nossas possibilidades de cooperar economicamente com outros países da região, inclusive o Equador.

Da mesma forma como nós devemos compreender, por exemplo, que o governo equatoriano siga convivendo com a dolarização de sua economia. Gravíssimo atentado à soberania nacional, que persistirá enquanto não se criar uma correlação de forças interna e externa que permita sua superação.

Resta tratar de uma questão fundamental. Argumentamos que o governo brasileiro, ao menos agora, não pode adotar uma política diversa da atual. A pergunta é: devemos trabalhar pela adoção de outra política?

A resposta é: sim e não. Sim, no sentido de que devemos construir as condições internas para ter uma política externa mais ousada. Não, no sentido de que consideramos impossível revogar, por decreto & vontade, as relações de mercado entre os países de nosso continente.

Certamente, a solução dos conflitos regionais supõe uma redução da desigualdade, não apenas dentro de cada país, mas também entre as economias de nosso subcontinente. A institucionalidade da integração, tanto multilateral quanto as relações bilaterais, tem que estar sintonizada com este propósito.

A redução da desigualdade em cada país supõe enfrentar a "herança maldita" e realizar reformas sociais profundas. Mas isto não é suficiente para eliminar as disparidades existentes entre as economias, objetivo que exige combinar, no longo prazo, medidas de solidariedade, intercâmbio direto e também medidas de mercado.

Por mais que o Brasil consiga ousar na sua política externa, não temos como "exportar" apenas a "parte boa" das condições materiais necessárias para a superação das desigualdades existentes, tanto internamente a cada país, quanto entre os países da região. Portanto, o apoio do Brasil aos países da região incluirá, em boa medida, forte dose de "exportação do capitalismo", com suas mazelas incluídas.

O pano de fundo do debate acerca da "linha do Brasil" é a aceitação ou não desta limitação, que em nossa opinião existiria mesmo que o governo brasileiro fosse muito mais radical.

Por fim: todo apoio à auditoria da dívida externa do Equador. Mas é preciso diferenciar os tipos de dívida e os credores. Todo apoio ao governo do Equador contra uma empreiteira que construiu uma obra com imensos problemas. Mas é preciso agir de maneira a punir a empreiteira, não o BNDES. E todo apoio ao diálogo entre os governos de esquerda e progressistas, para que nenhuma das partes seja surpreendida por medidas unilaterais divulgadas pela imprensa.Aliás, a necessidade de diálogo & aviso prévio é a única "linha" que não pode ser desrespeitada.

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Valter Pomar é secretário de Relações Internacionais do PT

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