Os Estados Unidos e o golpe em Honduras

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A relação de Honduras com os Estados Unidos não é comparável à de nenhuma república centro-americana. Ao contrário de Nicarágua, El Salvador e Guatemala, Honduras não passou por processo revolucionário durante os anos 80. Foi, inclusive, a base americana para o lançamento da contra-revolução que derrotou o regime sandinista, que levou a Guatemala e El Salvador às piores matanças de todos os tempos no istmo. Honduras já servira de base para o golpe militar que derrubou o presidente Arbenz, na Guatemala, em 1954 e também para a tentativa de invasão de Cuba em 1961. Trata-se de uma história singular, marcada pela relação com os EUA como poder imperialista. Que a evolução do golpe em Honduras tenha sido inédita não elimina toda essa história, nem significa que ela possa ser ignorada. Mas os fatos devem ser lidos no seu contexto, e não no contexto do que tem sido a participação americana nas últimas décadas. O caráter contraditório do golpe hondurenho deriva em boa parte da ambiguidade que cerca a participação americana, dividida entre uma história imperialista, emblematizada na base militar de Soto Cano, e uma nova Casa Branca, que lançou como consignação o compromisso de não fomentar mais golpes. James Petras foi um dos observadores de esquerda que lançou uma leitura delirante do golpe hondurenho, na qual ele propõe que o golpe foi diretamente preparado no Pentágono e, por extensão, na Casa Branca. O problema com essa leitura é que, ao igualar Obama aos falcões republicanos intervencionistas, ela deixa de enxergar o papel do golpe no embate entre essas duas forças políticas nos EUA. Hugo Llorens, o representante diplomático dos EUA em Honduras, não é uma figura alinhada com Obama. Na sua época de embaixador na Argentina, foi lobista da Ciconne Calcográfica, sempre ligado aos setores mais reacionários da Igreja Católica. Não se imaginava que alguém como ele pudesse ser mais que um entre vários embaixadores irrelevantes designados para a cota dos Republicanos. Mas Llorens terminou encontrando-se no epicentro de um golpe militar que, no momento da produção deste texto, completava um mês no poder sem ter o reconhecimento de um só estado. É fato que Llorens reuniu-se com os golpistas hondurenhos antes da tomada do poder. Enquanto Tom Shannon, subsecretário para a região, levava a Tegucigalpa o recado não-intervencionista de Obama, a cúpula militar golpista teria convencido Llorens de que a aventura era a melhor forma de evitar que Honduras caísse em definitivo na órbita chavista. Trata-se aqui de obsessão típica da direita americana, já que, mesmo que quisesse, Manuel Zelaya não tinha poder para tanto: estava desprovido de aprovação majoritária entre o eleitorado, limitado por uma constituição conservadora e amarrado pela oposição da Corte Suprema, do seu próprio partido e dos meios de comunicação de massas. Daí disseminou-se a cantilena do “segundo mandato”, que nunca havia sido parte de qualquer iniciativa do governo. A quarta urna – consulta popular que Zelaya planejava realizar – se referia unicamente à possibilidade de uma constituinte. Cabe lembrar que todo o comando militar de Honduras foi formado na Escola das Américas e os laços criados ali, inclusive por toda a história anterior do país, são orgânicos, fortíssimos. Não há dúvidas de que as lideranças militares das bases americanas em Honduras tinham algum tipo de ciência do golpe. Mas daí a apresentar a quartelada hondurenha como algo armado “no Pentágono e na Casa Branca de Obama”, como faz Petras, é ignorar as contradições internas da política americana. O golpe é, inclusive, uma tremenda pedra nos sapatos de Obama, um acontecimento que coloca a direita na ofensiva num tema de política externa, posição que há muito ela não ocupava nos EUA. Para manter a coerência com sua política externa, Obama teria que condenar o golpe em termos inequívocos. Por outro lado, uma restauração de Zelaya não poderia senão representar um fortalecimento regional de Chávez, munição sonhada pela direita para apresentar Obama como fraco em política externa. Enquanto durou o vacilo, a Organização dos Estados Americanos, com empurrão dos países da Alba, se adiantou e condenou o golpe sem ambiguidade, exigindo o “retorno imediato” de Zelaya. Pela primeira vez na sua história, os EUA ficavam a reboque de uma OEA que já não era uma coleção de 34 fantoches. Óscar Arias, presidente da Costa Rica, de inestimáveis serviços prestados aos EUA durante a guerra suja contra as guerrilhas centroamericanas dos anos 80, foi o responsável por tentar tirar a administração democrata da sinuca de bico. Desalojou-se a OEA e instalou-se o presidente costarriquenho como “mediador”, figura que pressupõe uma negociação que não caberia acontecer se supomos que o ocorrido foi um golpe de estado. Através de Arias, preparava-se um acordo que restabelecia Zelaya, mas forçava-o a uma série de concessões. Foram os golpistas, no entanto, que não o aceitaram. Hillary Clinton está bem mais próxima que Obama dos falcões republicanos que sempre ditaram a política americana na América Central. Mas também Obama, às vésperas de tentar passar sua reforma da saúde, não agirá como paladino da legalidade hondurenha, especialmente se isso significar tensões com Republicanos moderados. A ultradireita americana pode até ter fantasias golpistas para o istmo, mas ela preferiria a foto de um Chávez vitorioso que ela pudesse lançar contra Obama – que tem, é claro, total consciência disso. Enquanto isso, o povo hondurenho amarga um inferno. Segundo denúncia da Liga Camponesa, já eram pelo menos 184 desaparecidos desde o golpe. Instalou-se um regime de repressão truculenta, militarismo, caça implacável a lideranças populares, idiotização dos meios de comunicação de massas e censura aos discordantes (Rádios Globo e Progreso, a estrangeira Telesur). Lançamentos de bombas de gás, sequestros, estupros e toques de recolher são regularmente noticiados. Nem um único estado os reconhece, mas aquele que teria poder para pôr fim à aventura golpista – os EUA – passa a atuar para ganhar tempo, preso à lógica instalada pelo acontecimento. Esse equilíbrio pode ceder, mas não sem um incremento da pressão popular. Este artigo é parte integrante da Edição 77 da Revista Fórum