Por uma educação que reconheça as lideranças negras

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Por Jarid Arraes Texto escrito especialmente para o portal do Instituto Paulo Freire. Seja na mídia, no entretenimento ou até no conhecimento disseminado nas escolas, as mulheres negras permanecem preteridas e afastadas do lugar de reconhecimento. Enquanto crianças e adolescentes, não aprendemos nas aulas de história que existiram mulheres negras líderes quilombolas ou estrategistas que organizavam revoltas e ações contra a escravidão; pelo contrário, ainda hoje se repete a ideia de que as pessoas negras não reagiam contra o regime escravista. Somado ao machismo, o esquecimento é o legado destinado para as diversas mulheres e quilombolas, símbolos de resistência e luta da nossa história, como Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela e Luísa Mahin. [caption id="attachment_1127" align="alignleft" width="300"]Livro "As Lendas de Dandara" conta vida da líder quilombola Dandara dos Palmares. Disponível em www.aslendasdedandara.com.br Livro "As Lendas de Dandara" conta vida da líder quilombola Dandara dos Palmares. Disponível em www.aslendasdedandara.com.br[/caption] Costumo dizer que se eu tivesse conhecido Dandara dos Palmares na escola, muitas coisas seriam diferentes na minha vida. Somente na idade adulta, com esforço e dedicação da minha própria parte, tive acesso a leituras e discussões que me mostraram o outro lado da história - aquela que não é contada por quem "venceu" e detém o domínio, mas sim por quem resistiu e lutou contra a subjugação. Saber que havia mulheres negras que lideraram batalhas e foram ícones para seu povo foi algo ao mesmo tempo transformador e reparador - e essa reparação pode ser tanto subjetiva quanto social. No entanto, vale ressaltar que eu e outras mulheres negras tivemos que trilhar um caminho de pesquisa e busca além das salas de aula e dos materiais de entretenimento. Nas redes de colaboração entre mulheres negras, conheci a história de Dandara dos Palmares, mas me deparei com uma realidade que desdenhava de sua existência. Por isso, por haver quem dissesse que Dandara "não passava de uma lenda", senti a necessidade de escrever um livro que contasse seus feitos. Numa tentativa de lutar contra o esquecimento que lhe é direcionado, criei "As Lendas de Dandara". No entanto, uma publicação independente encontra muitos obstáculos e não consegue chegar a todas as pessoas que necessitam conhecer mulheres como ela e como tantas outras, mulheres essas que trariam para nosso panorama sociocultural um rompimento na lógica do racismo e da desvalorização das mulheres negras. O racismo tem estruturas fortes que vêm se perpetuando há séculos e geram consequências gravíssimas na nossa sociedade. A desvalorização da memória e das realizações afro-brasileiras são apenas a raiz de um problema que se ramifica; o resultado inclui a objetificação das mulheres negras, a desigualdade entre homens e mulheres e também a desigualdade entre mulheres brancas e negras, uma vez que as negras aparecem como população mais vitimada em todas as estatísticas, mesmo aquelas que apontam a opressão e a violência contra a mulher. Combater esse quadro é um desafio árduo, pois ainda vivemos em uma cultura que se recusa a falar sobre o racismo e a misoginia, muitas vezes rejeitando o exercício do debate e recorrendo a clichês e equívocos, como aqueles que tentam vender a ideia de uma democracia racial inexistente no Brasil. No campo da educação, nas escolas e universidades, essas mentiras também continuam a ser contadas como verdades e, assim, nossa cultura vai se construindo cada vez mais sobre a desvalorização e inferiorização da população negra. O fato de vivermos toda nossa juventude sem que tenhamos acesso à história afro-brasileira, contada sob a perspectiva da própria população negra, continua sendo um fator crucial para a manutenção do racismo. Por essa razão, falar sobre lideranças negras na nossa história é algo que ainda causa muito choque, tornando-se um fator de diferença tremenda e com um enorme potencial de transformação. As histórias de mulheres como Dandara dos Palmares trazem à tona as contribuições afro-brasileiras para nosso país e para a humanidade, além de servirem como uma reparação profunda de referenciais e representação do que significa ser negro no Brasil. Falta aos jovens brasileiros o acesso a histórias de mulheres e homens negros, representantes da luta e da resistência contra a opressão, em quem possam se reconhecer e inspirar. Embora o mês de novembro, mês da Consciência Negra, tenha ainda um importante papel a desempenhar na celebração das grandes lideranças históricas negras e na valorização da luta contra as injustiças sociais históricas tão presentes na atualidade, precisamos praticar o esforço constante, diário e distribuído em todos os meses do ano. Somente assim a educação poderá cumprir seu papel de quebrar estigmas sociais e possibilitar uma sociedade livre do racismo e da misoginia. No mês da Consciência Negra, precisamos provocar a reflexão e o desconforto diante do racismo. Que consigamos romper o lugar comum e cômodo que repete mentiras sobre o que é ser negro no Brasil e que levemos esse desconforto adiante, muito além desses trinta dias. Assim, promoveremos a constante oportunidade da humanização. Foto de capa: Lino Fly Kariri