MANGUEBEAT

Pra sair da lama e enfrentar os urubus

Vinte anos após o lançamento de Da Lama ao Caos, o já clássico álbum do movimento cultural nascido em Recife nos anos noventa, Fred 04 e Gilmar Bola 08 garantem: o Manguebeat não morreu

Monumento do Caranguejo Gigante em Recife, uma homenagem ao movimento manguebeat..
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Abril de 1994. Naquele mês, o cenário musical do Recife foi completamente reinventado, oxigenado, desorganizado e organizado pela inovação de Da Lama ao Caos. O álbum lançado por Chico Science e Nação Zumbi naquele ano contemplou todos os elementos – rítmicos, culturais e sociais – do Manguebeat, movimento criado anos antes por jovens músicos da periferia da capital pernambucana.

“Pernambuco é um estado de cultura popular muito importante para o país, onde basicamente se inaugurou a coisa da cultura popular no Brasil. Primeiras povoações, primeiras interações, vivências do que é ser brasileiro... Essa geração de agora, Chico, Mestre Ambrósio, Mundo Livre, todo esse pessoal, eles recuperam de forma bonita as coisas de que o tempo vai passando por cima, de que o trator vai passando. As coisas do pé de serra, o morro, as coisas da beira do rio, a cultura do caranguejo, os linguajares, os falares populares, os tambores, as batidas daqui e o maracatu, tudo isso. É isso. É a terra, é a terra.”

Essa definição dada por Gilberto Gil, em entrevista no documentário “O Mundo é uma Cabeça”, de Bidu Queiroz e Cláudio Barroso, ilustra bem a proposta do movimento defendida em seu primeiro manifesto, o Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred 04, vocalista da banda Mundo Livre S/A, com a colaboração de Chico Science e Renato L.

O manifesto atentava para a necessidade de se resgatar a cultura do mangue de Recife, dilacerada pelo crescimento da metrópole em nome de um falso progresso. “Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”, convocava o manifesto.

O chamado não demorou a ser atendido. Em pouco tempo, dezenas de bandas, jornalistas, estilistas, artistas e cineastas já bebiam da fonte da cultura do mangue e, um ano depois, em 1993, a gravadora Sony já procurava Chico Science para que mostrasse ao mundo a revolução cultural de Recife.

Manguebeat, a cena

Uma antena parabólica enfincada na lama do mangue representa a essência do movimento. São os caranguejos com cérebro, os mangueboys e manguegirls, frutos da diversidade do ecossistema mais rico da natureza que, engolidos aos poucos pela urbanização da capital, sentiram a necessidade de ligar o mangue ao mundo, a cultura regional à cultura pop, o tradicional ao novo, a lama à antena.

“A palavra 'movimento' veio com o tempo, mas acho meio pesada. É mais uma movimentação que um movimento. Os primeiros shows, eventos, manifestações que geraram o Manguebeat reuniam sonoridades muito diferenciadas. Então dá pra dizer que era uma cena. Aqui em Recife e no Brasil não se usava muito esse termo. Então, a gente tentou formatar uma cena que ajudasse a balançar o coreto, colocar o Recife no mapa da cultura pop. A essência do conceito do Manguebeat estava justamente na diversidade”, conta Fred 04, um dos grandes expoentes da cena, como gosta de chamar. Autor do manifesto, 04 é vocalista da banda Mundo Livre S/A, uma das primeiras ligadas à cultura do mangue surgida em Recife.

Tudo começou em meados da década de 80 na região do antigo porto de Recife, frequentada, na época, por prostitutas, cafetões, marinheiros e contrabandistas.

Fred 04 explica. “[A região] foi, de certa forma, resgatada por uma nova espécie da fauna pernambucana, os Chamagnatus granulatus sapiens, ou caranguejos com cérebro. Nos cabarés da vizinhança do marco zero, os chamados Cool Crabs passaram a produzir e a discotecar em festinhas underground. O bairro passou então a atrair a cobiça de empresários da noite, galeristas e, por fim, do poder público.”

Além de Chico e Fred 04, entre os caranguejos com cérebro que foram essenciais à criação do movimento estão Siba, Gilmar Bola 08, Alexandre Dengue, Helder Aragão e muitos outros que, pouco tempo depois, passaram a integrar as principais bandas da nova cena, como a Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, Lamento Negro, Devotos do Ódio, entre outras.

Chico Science, alguns anos antes, era integrante da Legião Hip-Hop, um grupo de dança de rua que fazia breaks americanos. Essa influência do rap foi essencial para a concepção rítmica inaugurada pelo Manguebeat, que, unindo o estilo americano, o rock, a música eletrônica, o groove e o funk às batidas do maracatu, ao coco e à ciranda, tradicionais da cultura do mangue e do folclore nordestino, fizeram passar por uma revolução não só a música de Recife, mas também o comportamento e a percepção social.

“Era uma reunião de músicos, mas não só de músicos. Depois agregamos videomakers, cineastas, até estilistas... Era um movimento que tinha em comum pessoas que se sentiam oprimidas com o ambiente cultural, conservador e opressivo que imperava no Recife”, afirma Fred.

Como não podia deixar de ser, o ambiente opressor cultural também reprimia socialmente e, naturalmente, a nova cena musical também nasceu pautada por um engajamento político e social de essência coletiva, com o intuito de mudar a realidade de Recife e levar esse conceito ao restante do país. “Um homem coletivo sente a necessidade de lutar”, já entoava Chico Science em Monólogo ao Pé do Ouvido, a primeira faixa de Da Lama ao Caos.

Gilmar Bola 08, percussionista que toca alfaia (instrumento tradicional do Maracatu) desde o início da Nação Zumbi, também vai por esse lado ao explicar o movimento. “O movimento Manguebeat aconteceu naquele tom de cooperativa, com as bandas cooperando e as pessoas que trabalhavam com algo relacionado também ajudando. Tinha o pessoal do teatro, do cinema, da moda... Cada uma das bandas começou a trazer o que tinha de melhor, umas iam mais para o rock, outras mais para o funk, mas todas dentro de uma mesma ideia de diversidade e de uma necessidade. A necessidade era de melhorar a cidade. Recife estava entre piores cidades do mundo pra se viver. Quando tudo isso veio à tona, nos organizamos para dar esse novo respiro, pra melhorar a cidade. A ideia do Manguebeat era essa”, analisou Bola 08.

O percussionista da Nação Zumbi destaca ainda de que maneira os conceitos do Manguebeat romperam as barreiras da música e passaram a fazer parte do comportamento das pessoas. “Começou a entrar nas artes cênicas, apresentações de rua... Fizemos videoclipes que tinham como cenário o mangue, a nossa cultura. Estilistas começaram a produzir roupas parecidas com as de pescador... Entre as mulheres nasceu um estilo bem particular. Elas usavam franja, trança e tatuagem no pescoço, eram as manguegirls”, lembra. 

A experimentação de ritmos brasileiros com rock atrelado ao conceito de novidade no cenário musical e cultural levaram a crítica, no início dos anos 90, a classificar o movimento do mangue como uma nova geração da Tropicália.

Fred 04 brinca com a comparação e ilustra o engajamento social por trás das novidades sonoras vindas das camadas marginalizadas de Recife. “Quando faziam uma relação com o Tropicalismo, a gente costumava até a fazer uma diferenciação: o Manguebeat é tão filho do Tropicalismo quanto o punk é do movimento hippie (risos). É uma espécie de filho ingrato, que vem pra contestar, pra trazer uma superação de filosofia até, dar voz às contradições”, compara.

Da Lama ao Caos, o marco

Passados exatos 20 anos desde o seu lançamento, Da Lama ao Caos, de Chico Science e Nação Zumbi, não foi a primeira manifestação sonora do Manguebeat. Mas, ainda hoje, aqueles que compunham a cena desde o início o consideram o álbum como peça chave para que o movimento se concretizasse no Recife, ficasse conhecido pelo resto do Brasil e desencadeasse tantos outros projetos com a veia do mangue, que estão vivos até os dias de hoje. 

Apesar de já serem conhecidas em Pernambuco desde o final dos anos 80, as bandas dos caranguejos com cérebro não tinham ainda atingido o objetivo do manifesto de 1992, que era o de colocar a cena cultural de Recife no mapa da cultura pop do Brasil.

Até que, em 1993, a gravadora Sony enxergou a revolução que estava acontecendo e decidiu produzir um disco de Chico Science e Nação Zumbi, que viria a ser lançado no ano seguinte.

“Na verdade, foi o que impulsionou a cena. A Sony Music apontar seus investimentos para um cenário como aquele fez o Da Lama ao Caos projetar a nível nacional uma cidade que estava completamente à margem. Fica algo que é um marco. Investimento fez toda a diferença”, constata 04.

O álbum é tido como referência para quase toda a geração de músicos que surgiu nos anos 90 e é considerado um dos cem melhores álbuns da história da música brasileira. Sem usar pratos ou instrumentos básicos da bateria, Chico Science e Nação Zumbi, com a ajuda de outros músicos da época, como o próprio Fred 04, conseguiram contemplar em 14 faixas todos os elementos que compõem a cena Manguebeat: desde uma mistura completamente inovadora e valorização de instrumentos da cultura regional em sintonia à explosão do rock ou o suingue do groove, passando pela descrição de ambientes da chamada manguetown, até o cunho engajado e de crítica social que se instaurava entre os homens caranguejo, filhos do mangue.

“O álbum é um marco. A gente alcançou uma gravadora, a Sony Music, e ficamos encarregados de mostrar para o mundo a música de Chico Science e Nação Zumbi e o som de Recife. Aí vinha toda aquela história que tocávamos maracatu, tocávamos ciranda... Então é um disco que marcou muito, que deu direção pra todos os trabalhos da Nação Zumbi. Chico era uma pessoa muito apegada ao social. Viveu a vida toda numa Cohab. Ele conseguiu passar toda aquela bagagem da vida dele em Da Lama ao Caos”, conta Gilmar Bola 08.

Logo quando lançado, o resultado do álbum foi de difícil assimilação da crítica e teve pouca aceitação do público fora de Recife. Aos poucos, no entanto, o disco passou a firmar seu espaço no cenário cultural a nível nacional. Mostrou o mangue ao Brasil, definitivamente, depois de ter uma das faixas, A Praieira, inseridas na trilha sonora da novela Tropicaliente, TV Globo, e também após o clipe da faixa A Cidade entrar na grade de exibição da MTV.

Apesar de ser considerada a principal banda do movimento, justamente pela repercussão do álbum, outras bandas e músicos, como o Mundo Livre S/A, o cantor Otto e outros artistas de Recife passaram a ter maior representatividade e alcance nos anos subsequentes.

No dia 2 de fevereiro de 1997, um episódio ameaçou colocar fim na cena cultural tão rica que já durava quase uma década: Chico Science morreu em um acidente de carro na capital pernambucana, deixando órfã toda uma geração de mangueboys e manguegirls que surgia.

Antes de morrer, Science ainda gravou o segundo álbum com a Nação Zumbi, o Afrociberdelia, conseguindo levar novos ritmos e sonoridades a uma criatividade que, para muitos, já parecia esgotada.

Chico morreu. E o Manguebeat?

“É ate meio perverso, mas a morte do Chico foi o principal fator de consolidação da utopia Manguebeat na cultura de Recife. Ele virou uma lenda, virou nome de avenida, cartilha de escola e essa imagem, querendo ou não, ajuda a manter tudo isso vivo. Ano após ano acontecem os festivais, surgem novas bandas. É até contraditório, porque utopia é aquilo impossível de acontecer, mas a nossa utopia foi parcialmente concretizada. Você vê aí os prêmios sucessivos no cinema de Recife, na literatura, na música e por aí vai. Pelo menos em partes, foi tirado esse ranço conservador da cultura pernambucana para ser transferida a um universo mais contemporâneo”, analisa 04.

“O legado do Manguebeat é algo irreversível. Temos orgulho desse legado em relação à postura do povo, à produção cultural nativa”, adiciona.

No mesmo ano da morte de Science, Fred 04, novamente com a ajuda de Renato L., se viu obrigado a escrever um segundo manifesto do Manguebeat com o intuito de não deixar a cena ser enterrada junto ao seu principal expoente, como havia especulações. Chamado de Quanto vale uma vida, o texto convocava os mangueboys e manguegirls a seguir em frente com a utopia pernambucana parcialmente concretizada.  

“(...) E agora, mangueboys? Chico era referência e inspiração para muita gente, talvez para toda uma geração de recifenses. E a perda para a Nação Zumbi é irreparável em termos de carisma, energia vocal, gestual etc. Ninguém questiona isso. Mas o que muita gente esquece é que a fórmula criada por Chico tinha uma base muito sólida em termos de cozinha, acompanhamento, groove. A maioria das pessoas desconhece alguns fatos. Quando eu conheci Francisco França, ele era o lado mais extrovertido da mais nova dupla do barulho da cidade. Chico e Jorge eram inseparáveis como unha e carne, egressos da 'Legião Hip Hop', que reunia, no final dos anos 80, alguns dos melhores dançarinos e DJs que o Recife já conheceu (alguém aí já viu Jorge Du Peixe dançando street? A galera que hoje em dia ensina funk nas academias de dança não daria nem pro caldo...). Jorge sempre foi um pouco mais tímido, mas não menos engraçado, e os dois se completavam em termos de gosto, idéias, visão e criatividade. Chico sempre teve mais iniciativa e era, como todos sabemos, um letrista formidável. Mas alguém aí se lembra de quem é o autor da letra do clássico Maracatu de Tiro Certeiro? Isso mesmo, Jorge Du Peixe”. (...) Quem acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de um compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de guerrilheiro da Frente Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o mundo não é muito diferente daquele que nos mandam as comunidades indígenas de Chiapas- que têm no subcomandante Marcos o seu porta-voz. VIVA, SANDINO! VIVA, ZAPATA! VIVA, ZUMBI! A utopia continua...”, escreveu 04 no manifesto.

E foi justamente Jorge Du Peixe, citado no segundo manifesto, quem assumiu os vocais da Nação Zumbi. Ainda hoje na ativa e mantendo viva a chama do Manguebeat, a banda acaba de lançar um novo disco, Nação Zumbi, disponibilizado na íntegra no Youtube.

A cena nascida há mais de 20 anos na capital pernambucana, no entanto, não se limita somente às bandas expoentes, como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Uma série de músicos, advindos de Recife ou não, bebem ainda da fonte do mangue para compor seus ritmos e letras.

Gilmar Bola 08 vai além: “O Manguebeat não se resume a uma batida, é tudo aquilo que vem acontecendo desde os anos 90 em termos de cultura. Foi muita vanguarda.”

E, de fato, a influência permanece viva. A essência dos caranguejos com cérebro é facilmente percebida nos trabalhos de bandas como Sheik Tosado, que produziu apenas um álbum em 1998 e lançou o músico pernambucano China; Cordel do Fogo Encantado, que ficou famoso por misturar maracatu com literatura de cordel; Nuda, que faz um mix de rock com ritmos regionais, como samba e bossa; Karina Buhr, a baiana considerada uma legítima manguegirl por sua atitude e influências do maracatu; ou ainda Mombojó, que nasceu na terra do mangue e não nega a forte inspiração na cena pernambucana. Felipe S., vocalista desta última, assume que nunca viu Chico Science e Nação Zumbi ao vivo por ser muito novo na época, mas que, se não fosse o movimento, jamais teria se tornado músico.

“Eu vi o disco [Da Lama ao Caos] não exatamente na época que lançou. Mas com certeza foi o disco que desencadeou toda essa força do movimento criado em Recife, que foi o movimento que me fez ser músico. Acho que abriu meus olhos pra falar ‘porra, eu gosto muito disso e dá pra fazer’”, afirma.

Apesar de não contemplar de forma tão intensa e direta o cunho social presente nas músicas das primeiras bandas do Manguebeat, Felipe acredita que o fato de trazer à tona uma cultura historicamente oprimida e de ser uma banda de Recife, que carrega consigo os seus elementos atrelados à uma cultura pop, já representa, de certa maneira, a essência engajada do movimento.

“A gente funciona muito na lógica da diversidade, que é a lógica maior que tinha o movimento. Eu acho que tem uma questão da obra de Chico, do jeito dele fazer, de buscar inspiração em Josué de Castro, em Gilberto Freyre que, a partir do momento em que ele morreu, a Nação Zumbi não conseguiu ter mais. A maneira que Jorge compõe é diferente. Mas há uma cartilha mais no sentido da diversidade. O mangue é o sistema ecológico mais diverso e rico que existe. Isso era uma coisa bem amarrada no movimento. Bandas bem diferentes estavam o mesmo conceito. O mangue é muito assim. Nós somos assim”, analisa.

O vocalista do Mombojó chama a atenção ainda para o legado deixado pelo movimento Manguebeat que vai além da música ou da cultura, mas aponta para a consciência social e para o engajamento político.

“O movimento conseguiu elevar bastante a cultura de Recife. Mas ao mesmo tempo a luta continua até mais forte na cidade hoje em dia. A luta pelos direitos urbanos, pela mobilidade, contra a urbanização desenfreada. Existe uma patrulha muito forte que é muito legado desse movimento do mangue. Sinto um movimento ainda muito vivo", atesta. 

Duas décadas se passaram desde Da Lama ao Caos e, nesse tempo, Chico morreu, a tecnologia avançou, novas bandas surgiram e outras se reinventaram. O cenário político é outro, o discurso das novas gerações pode já não ser o mesmo, mas a antena enfiada na lama do mangue continua ligada ao caos da cidade. Se hoje o Brasil conhece a cultura regional diante da poderosa cena pop, é porque os caranguejos com cérebro conseguiram "sair da lama para enfrentar os urubus", como diz Chico na faixa que batiza o álbum.