Quem grita "Je suis Raif"?

Condenado a 10 anos de prisão e mil chibatadas públicas, o caso do blogueiro Raif Badawi é um exemplo clássico de como a liberdade de expressão não é um direito tão sagrado para o Ocidente - ao menos não quando envolve um rico e poderoso aliado como a Arábia Saudita.

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Condenado a 10 anos de prisão e mil chibatadas públicas, o caso do blogueiro Raif Badawi é um exemplo clássico de como a liberdade de expressão não é um direito tão sagrado para o Ocidente - ao menos não quando envolve um rico e poderoso aliado como a Arábia Saudita Por Vinicius Gomes je suis raifNessa sexta-feira (16), o governo da Arábia Saudita iria abrir a cela do jovem Raif Badawi e o conduziria até uma praça na cidade de Jeddah, próxima ao Mar Vermelho. Uma vez lá, amarrado e diante de centenas de espectadores, ele seria açoitado 50 vezes por 15 minutos, antes de ser levado, ao som de palmas e gritos de Allahu Akbahr, a um hospital e então de volta à prisão, onde passará mais 7 anos e seis meses de sua vida. Ao menos esse era o roteiro para hoje, assim como foi na última sexta-feira (9) - dois dias antes de dezenas de líderes mundiais entrelaçarem os braços em nome da liberdade de expressão - e assim como será pelas próximas 18 semanas, o que significa mais 900 chibatadas. Ou não? Após intensa pressão internacional, muito mais por organizações como a Anistia Internacional do que pelos governos defensores da liberdade de expressão e direitos humanos, o governo saudita decidiu adiar as 50 chibatadas que Badawi deveria receber hoje, alegando "razões médicas".  Ainda é incerto se sua punição pelos próximos 5 meses será reiniciada. Raif Badawi, que completou 31 anos nessa terça-feira (13) e é pai de três crianças, foi preso em 17 de junho de 2012 por criar o website Free Saudi Liberals, um fórum onde ele promovia debates e troca de ideia por sauditas, e onde ele também escrevia seus próprios textos a respeito, por exemplo, das necessidade de um Estado laico na Arábia Saudita, de como os clérigos do país distorciam o islamismo para promover o autoritarismo e até mesmo criticando a repressiva polícia religiosa da monarquia saudita - artigo esse responsável por sua prisão. Ele foi acusado de "insultar o islã" e de "desobediência aos pais" - sim, isso mesmo que você leu. A promotoria pediu que ele fosse julgado como um "apóstata" - alguém que abandona a religião - um crime capital na Arábia Saudita, mas as altas cortes do país recusaram tal acusação. Sendo assim, Badawi escapou da morte e foi condenado, apenas duas semanas depois de ser preso, a 10 anos de prisão e mais 1.000 açoitamentos públicos, além de uma multa de 266 mil dólares. O caso de Badawi ganhou notoriedade pelo timing, com sua primeira punição ocorrendo dois dias depois do ataque à redação da semanal Charlie Hebdo e dois dias antes da marcha em Paris contra o terrorismo e em defesa da liberdade de expressão, mas ele está longe de ser exceção na monarquia da Casa de Saud. Histórico Enquanto o governo da Arábia Saudita brinca de derrubar economias de outros países e exporta o terrorismo que assola o Oriente Médio e aflige a Europa, ele também encontra tempo para violar os direitos humanos de seus cidadãos. No caso da liberdade de expressão, a ONG Repórteres Sem Fronteiras descreveu, em 2014, o governo do país como "incansável em sua censura  contra a imprensa saudita e a internet", além de ranquear a Arábia Saudita como 164 entre 180 países no tópico 'liberdade de imprensa'. No ano passado, quatro membros da Associação Saudita pelos Direitos Civis e Políticos, uma organização que documenta abusos aos direitos humanos e exige uma reforma democrática, foram sentenciados a penas de 4 a 10 anos de prisão. [caption id="attachment_57353" align="alignright" width="460"]As filhas de Badawi (Terad, Nawja e Miriam) estão vivendo em exílio na cidade de Montreal, Canadá, com a mãe. A família de Raif era constantemente ameaçada na Arábia Saudita (Twitter) As filhas de Badawi (Terad, Nawja e Miriam) estão vivendo em exílio na cidade de Montreal, Canadá, com a mãe. A família de Raif era constantemente ameaçada na Arábia Saudita (Foto: Reprodução/Twitter)[/caption] Nessa mesma terça-feira, enquanto Badawi fazia aniversário, uma corte saudita aumentou de 10 para 15 anos a pena do advogado de direitos humanos Walid Abu al-Khair, na prisão desde 2012, após ter se recusado a reconhecer, ao tribunal que o condenou por sedição, que tinha se arrependido. A Arábia Saudita também é o único país no mundo que proíbe as mulheres de dirigirem carros. De acordo com a lei, a mulher só pode se sentar no banco do passageiro. Pode parecer engraçado, mas a lei é tão duramente imposta que, caso uma mulher seja flagrada dirigindo, pode perder o emprego, ter seu passaporte revogado e até mesmo, como Badawi, receber açoitamentos públicos. Isso sem mencionar a prática de decapitação para os sauditas condenados à morte. Em outubro do ano passado, um artigo da Newsweek tinha como título "Quando o assunto é decapitação, o Estado Islâmico não perde nada para a Arábia Saudita". De fato, em 2014, enquanto o mundo "civilizado" se horrorizava com as decapitações conduzidas pelo Estado Islâmico na Síria, a monarquia saudita quebrava recordes em execuções: 87, muitas delas pela espada. Em agosto, o país cortou uma cabeça quase todos os dias. Obviamente, assim como no caso de Badawi, o mundo "civilizado" resumiu sua posição oficial ao tratamento dispensado pela monarquia saudita aos direitos humanos, como "profundamente preocupados". Mas como Madawi al-Rasheed, professor no Centro sobre Oriente Médio na London School of Economics, disse CNN: "Nenhum desses países estão dispostos a desafiar a Arábia Saudita da mesma maneira que eles desafiam outros países considerados como opositores ao Ocidente". E concluiu: "Os Estados Unidos adotam dois pesos e duas medidas quando se trata de países como a Arábia Saudita, por conta de sua importância para os interesses norte-americanos e europeus". Enquanto isso, as próximas 50 chibatadas públicas em Raif Badawi estão marcadas para sexta-feira que vem (23), em frente à mesquita Al-Jufalli, logo após as orações do meio-dia. Foto de Capa: Anistia Internacional