Querem (de novo) transformá-lo no demônio

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Lembra da Miriam Cordeiro? Ex-mulher de Lula, ela foi um dos principais cabos eleitorais de Fernando Collor de Mello quando apareceu na TV dizendo que o candidato do PT teria oferecido dinheiro para que fizesse um aborto. Isso às vésperas do segundo turno da eleição de 1989. Mas esse não foi um fato isolado. Na mesma época, os seqüestradores do empresário Abílio Diniz apareceram presos vestindo camisas do PT. Alguns jornais não titubearam e estamparam a manchete: “PT seqüestra Abílio Diniz”. Depois, provou-se que haviam vestido os criminosos dessa forma para prejudicar Lula. Alguém foi punido?


O jornalista Chico Santa Rita, um dos responsáveis pela campanha de Collor no segundo turno do pleito de 1989, revelou que a baixaria poderia ser ainda pior. Segundo ele, na última semana de campanha, Collor entregou-lhe uma fita e ordenou que a utilizasse no programa daquele dia: Lula assistia ao fuzilamento de três prisioneiros por homens vestidos com roupas de guerrilheiros cubanos. Um técnico teria avisado que se tratava de uma montagem. Santa Rita chamou o comando “collorido” para avisar que se a imagem fosse usada sairia da campanha. A fita acabou não indo ao ar. Ah, sim! E a famosa edição do Jornal Nacional sobre o debate final do segundo turno?


Nunca foram poupados esforços para evitar a vitória de Lula. E a eleição de 1989 não foi a única. Em 1994, a hoje mais tranqüila Igreja Universal trabalhava fortemente contra o petista. Como já havia feito em 1989, por sinal, quando Edir Macedo disse que Lula era o candidato do demônio e perseguiria os evangélicos se eleito. Na primeira eleição contra FHC, as “acusações” da Folha Universal, jornal da igreja, eram de que Lula participava de rituais de candomblé, defendia o aborto e daria calote na dívida externa. Em uma capa, o candidato petista aparecia junto à bandeira do Brasil sem os dizeres Ordem e Progresso, que eram lembrados na manchete “Sem Ordem e Sem Progresso”. Em 1998, a mídia deu muito destaque a uma história sobre um cheque que Lula recebeu pela venda de um carro Omega do advogado Roberto Teixeira, seu compadre. Como o cheque estava no nome do empresário Sérgio Lorenzoni (Teixeira simplesmente repassou para Lula o cheque que havia recebido de Lorenzoni) todas as especulações possíveis foram feitas pela grande imprensa. Nada de irregular foi achado. Aliás, essa pseudodenúncia foi levantada pelo petebista Campos Machado, então aliado dos tucanos. A história sobre o cheque foi revelada em julho de 1997 a Machado, que preparou o texto da denúncia, mas engavetou-a. O deputado demorou mais de um ano para entregar a representação à Procuradoria-Geral de Justiça, só fazendo a menos de dois meses das eleições presidenciais de 1998. Mera coincidência?


Pelo jeito, nessas eleições não vai ser diferente. Nos últimos meses, a candidatura Lula vem sendo bombardeada de todos os lados: primeiro, veio a perspectiva do apocalipse econômico promovido por parte da mídia e pelo governo, que sustentavam o mito de que os males da economia brasileira, a subida do risco-país e a desconfiança do mercado financeiro internacional derivavam exclusivamente da posição do petista nas pesquisas. Depois, de novo com a ajuda da grande imprensa, surgiu uma forma de terrorismo mais típica do oficialismo tucano: a Polícia Federal aproveitou o assassinato do prefeito da cidade de Santo André, Celso Daniel, para fazer escutas telefônicas em vários integrantes do partido ligados àquela gestão, episódio em que foram lançadas suspeitas até mesmo contra o presidente do PT, o deputado José Dirceu. Além disso, a Polícia Federal investigou, novamente por meio de procedimentos de legalidade duvidosa, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva.


Desta vez, porém, o primeiro ataque da máquina que trabalha em favor da candidatura governista não foi dirigido ao PT, mas a um partido aliado. O PFL tentou lançar uma candidatura própria à presidência da República, a da governadora do Maranhão, Roseana Sarney. Logo estouraram as denúncias que iriam derrubá-la. O país se espantou com o R$ 1,3 milhão espalhados na mesa do escritório da Lunus, empresa dela e do marido Jorge Murad. A ação da PF detonou as pretensões presidenciais da pefelista.


“Não posso cometer a leviandade de acusar alguém, mas é estranho detectar pontos de semelhança de atuação do governo nesse caso e nas investigações contra o PT”, argumenta Antonio Carlos de Almeida Castro, advogado de Roseana e do deputado federal José Dirceu. Segundo ele, na investigação contra a pefelista e os petistas, o Judiciário foi enganado para autorizar a atuação da PF. Para sustentar o que diz, Almeida Castro se apóia na informação passada pelo órgão à Justiça, incluída no documento que sustentou o pedido de busca e apreensão, de que a Lunus era acionária da empresa Nova Holanda – esta, sim, sob investigação legal em função do escândalo da Sudam. “Estou convicto de que os procuradores sabiam que os dados não eram verdadeiros, mas os usaram para conseguir a invasão da Lunus”, garante.

Essa não é a pior parte da história. Castro afirma que conversas de Roseana foram grampeadas de forma ilegal. Para constatar se era verdade, o advogado fez alguns testes, simulando diálogos com a então governadora. “Em um deles, pedia para que ela não entregasse a lista dos doadores porque se ganhássemos o mandado de segurança não teríamos de nos manifestar sobre o que foi apreendido ilegalmente”, explica Castro. Nessa mesma conversa, Roseana afirmava que tinha de entregar a lista devido a uma exigência de Jorge Bornhausen. “Após 15 minutos, recebi uma ligação e um jornalista já tinha conhecimento do conteúdo da conversa. E isso depois de o presidente Fernando Henrique Cardoso garantir, na casa do senador José Sarney, que Roseana não estava sendo investigada”, completa Castro.


No caso da investigação da prefeitura de Santo André houve procedimentos semelhantes. “A Polícia Federal introduziu números de telefones que nada tinham a ver com a investigação do narcotráfico”, esclarece Castro. E, se os suspeitos tivessem realmente algo a ver com tráfico de drogas, a lei prevê que o pedido tem que ser encaminhado a um juiz federal, não a um estadual. O presidente nacional do PT, deputado federal José Dirceu dá mais detalhes sobre a operação. “O inquérito que nós solicitamos para investigar a morte de Celso Daniel leva o número IPL 1-0005/02, de 22 de janeiro de 2002, e designa os delegados Hermes Rubem Siviero, presidente do inquérito, Marcelo Sabadin Baltazar e José Pinto de Luna para o caso. Em 24 de janeiro de 2002, o delegado Marcelo Vieira Godoy, figura estranha ao inquérito destinado a apurar a morte do prefeito, pede a escuta telefônica para ‘prevenir e reprimir o tráfico de entorpecentes’. Não há no pedido qualquer menção às investigações da morte de Celso Daniel”, constata Dirceu. “Nesse caso, a Justiça foi enganada. Solicitou-se uma interceptação para investigar o narcotráfico e foram incluídos, nesse pedido, números de telefone de petistas, entre eles o do atual prefeito de Santo André, João Avamileno”, completa.


Procedimentos


Roseana e seu marido podem ter cometido irregularidades por meio de sua empresa? É bem possível. Assim como há muito o que se explicar a respeito das denúncias de Santo André. Mas é inegável que foram cometidos excessos e abusos nas investigações, além de flagrantes ilegalidades e um claro uso político do que aconteceu. Na investigação de Santo André, por exemplo, uma das maiores aberrações foi o pedido do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, para que fosse aberto inquérito para investigar o deputado federal José Dirceu, acusado de recolher fundo de um esquema de caixa 2 no ABC. A base da acusação? O irmão do prefeito Celso Daniel João Francisco Daniel teria ouvido falar que o presidente do PT receberia o dinheiro do suposto esquema da prefeitura. Brindeiro, conhecido em Brasília como “engavetador-geral da República”, devido ao apreço com que trata as denúncias contra o governo federal, dessa vez foi rápido no gatilho. Mas para que o inquérito tivesse início era preciso que o STF o autorizasse. O ministro Nélson Jobim, porém, desconsiderou o pedido, desqualificando a acusação e o próprio processo de investigação.

Mas talvez o caso mais obscuro seja o da investigação contra Lula, aberta por conta de uma suposta denúncia de Francisco Tenório Cavalcanti, que teria dito ser ex-prefeito de São Bernardo (a primeira versão da Polícia Federal para o caso é de que as denúncias teriam sido anônimas). Tenório nega ter feito qualquer acusação contra Lula e diz que o depoimento prestado à PF conteria acusações contra o prefeito de São Bernardo, Maurício Soares, do PSDB. “Eu e o deputado João Paulo Cunha conversamos com Tenório e ele garantiu que seu depoimento foi totalmente distorcido, não há nada contra o Lula”, assegura Luis Eduardo Greenhalg, advogado e deputado federal pelo PT.


A desconfiança em relação aos procedimentos da Polícia Federal vem de membros do próprio órgão. O presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais, Francisco Carlos Garisto, levanta várias dúvidas em relação à investigação a Lula. “A condição do denunciante não foi investigada e qualquer policial recém-saído da academia sabe que esse seria o procedimento correto. Pior que isso, não foi gravado ou redigido a termo o depoimento do Tenório. Isso não se faz nunca, até porque não vou investigar um candidato a presidente só por um ‘ouvir falar”, critica Garisto. Ele aponta outros erros da PF, como o fato de uma denúncia que teria sido feita à CPI ter ido parar direto na delegacia da Polícia Federal, usando papel timbrado da comissão sem o conhecimento de nenhum de seus membros. A PF se explica dizendo que a CPI já havia sido encerrada e por isso a denúncia não poderia ser encaminhada. “A CPI terminou no dia 5 e o documento deles é do dia 4, eles tinham obrigação de encaminhar isso à comissão. Aliás, esse relatório foi feito no dia 4, dizendo que ele se encontrou com o Tenório no dia 11, ou seja, ele descobriu a máquina do De Volta para o Futuro. Isso mostra que o documento foi elaborado às pressas para que se justificassem perante a imprensa. Tiveram que montar esse papelório e erraram a data”, supõe Garisto.

Para ele, o diretor-geral da PF à época, Agílio Monteiro Filho (hoje candidato a deputado federal pelo PSDB), poderia ter agido para barrar essa investigação, mas nada fez. “Nem ele nem o Itanor (Neves Carneiro, que recentemente também deixou a função de diretor-geral da PF) interceptaram isso e só mandaram parar quando a imprensa soube. Se não havia nada contra o Lula, porque não foi encerrada a investigação antes?”, questiona. O deputado Greenhalg vai mais além. “Esse tipo de ação tem como objetivo denegrir a imagem do Lula. Afinal, quem gostaria de ser investigado e ter seu nome associado de alguma forma ao tráfico de drogas?”, pontua.

Mas esses não são os únicos indícios de que a Polícia Federal esteja sendo instrumentalizada a favor do governo. De acordo com Garisto, muitos acontecimentos têm sido percebidos de forma estranha pelos membros da corporação. “O delegado que fez a investigação do caso Roseana, Deuselino Valadares, continuou apurando o caso Sudam, que é muito grande. Ele disse que iria indiciar o governador Dante de Oliveira e, após anunciar isso, foi destituído da apuração”, conta. Segundo Garisto, “não existe uma fábrica de dossiês na PF, mas uma indústria de acontecimentos suspeitos e que não foram explicados”, como outro afastamento, o do delegado Deuler Rocha, que fazia a investigação do caso Telemar. “Quando ele falou que iria indiciar o Ricardo Sérgio também foi afastado de forma muito estranha”, relata. “O que percebemos é que quando a denúncia é contra o governo a coisa caminha que nem o Barrichello e quando é contra a oposição é o Schumacher que assume os inquéritos”, completa Garisto.

Terrorismo econômico


Lula foi investigado e não acharam nada. Mas nem por isso é menos culpado aos olhos do governo e de boa parte da imprensa. Segundo os intelectuais tucanos e a mídia oficial, a liderança do petista nas pesquisas foi a grande responsável pela subida do risco-país às alturas e por toda a instabilidade econômica dos últimos meses. Mas, o buraco é mais embaixo.

“Neste momento, vivemos uma crise de liquidez no mercado internacional e isso reflete um temor de que não haja recursos suficientes para fechar a balança de pagamentos. Isso ocorreria com eleição ou sem eleição, mas é claro que os investidores, mesmo os nacionais que têm dinheiro lá fora, ficam em dúvida sobre a viabilidade do próprio processo que criaram”, esclarece o professor de economia da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo.

O deputado federal Delfim Netto, em artigo publicado na revista Carta Capital, firma posição semelhante. “Por que o mercado fica ‘excitado’? Não é, fundamentalmente, por que vai haver eleição ou porque o senhor Lula tenha alguma probabilidade de ser eleito. É porque ele tem dúvida se o que esse governo não fez poderá ser feito pelo sucessor seja ele quem for”, acredita. Já para o deputado federal Ricardo Berzoini, quem depende da produção tem menos motivos ainda para temer uma eventual eleição de Lula. “Posso garantir que não é o mercado que depende do consumo que tem medo de mudanças, pois este não está satisfeito. No Brasil temos aproximadamente 40 milhões de consumidores para valer contra uma população de 170 milhões. Para ter uma idéia, o Brasil tem catorze montadoras trabalhando com 40% de sua capacidade ociosa. Se fosse agregado 1 milhão de consumidores de carros ao mercado, significaria redução de preços e aumento da produção, nunca a volta da inflação, como sustenta a atual equipe econômica”, defende.

Mais do que ter errado a mão ao lidar com os fundamentos da economia brasileira, o governo erra também no modo de conduzir a crise. “O governo começou suas justificativas em relação à crise dizendo que o próximo presidente eleito deveria manter a política econômica. É a primeira vez que um governo se vale do próprio fracasso para fazer recomendações ao próximo, isso é um caso inédito”, analisa Belluzzo. Para o economista, o mais certo agora seria o tucanato ficar em silêncio. “Foram eles que criaram essa situação e, portanto, deveriam ficar calados e não fazer recomendações. Entretanto, continuam fazendo, o que causou estragos consideráveis na rolagem da dívida interna, provocou reações no mercado futuro e foi só agravando o grau de insegurança dos investidores”, garante.

Como se vê, o problema vai um pouco além da liderança do petista nas pesquisas de opinião. “Não é só má-fé como é desonesto atribuir a crise apenas ao Lula”, aponta Belluzzo. Como se vê, os demônios podem ser outros...

Colaboraram Cláudia Motta e Luciana Ackermann.