Reiventando o dito: Política e futebol se discute, religião não

Dentre os três assuntos, religião é o único que efetivamente não discutimos publicamente. O tabu é tamanho que essa ausência de debate se observa numa espécie de proteção ao crente: questioná-lo corresponde a um gesto de ofensa.

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Sobre a necessidade de discutir nossas crenças Ensina a sabedoria popular: "política, futebol e religião não se discute." Dito batido, surrado... …e mentiroso. Dentre os três assuntos, religião é o único que efetivamente não discutimos publicamente. O tabu é tamanho que essa ausência de debate se observa numa espécie de proteção ao crente: questioná-lo corresponde a um gesto de ofensa. O não questionamento fica igualado a educação, polidez, aceitação. Aquele que questiona deve engolir: O crente crê porque crê. E ele tem esse direito. Ponto final. É preciso reinventar o dito. Já discutimos futebol e política sim. Discutir religião é tão necessário quanto discutir a idoneidade dos dribles administrativos de Pelé e as maneiras toscas e eficientes de Romário como deputado. Qual deles fez ou deixou de fazer mil gols pode ficar para a saideira no boteco… Sem dúvida que devemos aceitar o pressuposto que cada um pode crer no que quiser. Fácil. As coisas complicam quando tentamos delinear as fronteiras da expressão das crenças individuais em nível institucional. Em tese, somos um Estado Laico, com separação entre Igreja e Estado. Não sei o que um crucifixo está fazendo dentro do Congresso Nacional. Mas tudo bem. Continuo achando - crendo! - que nossas crenças não deveriam atingir as instituições. Contudo, quando nossas rezas ecoam para fora da janela podem gerar aberrações diabólicas; como a dinheirama pública gasta com festinhas e jatinhos para os convidados dos eventos de recepção ao Papa. O que diria um ateu sobre isso? Ou os judeus, ou crentes em Exu, ou em espíritos? Não ficariam felizes, é claro. A crença em gnomos, espíritos, nirvana, purgatório ou inferno é relativamente inócua se mantida entre quatro paredes. Quando ganha respaldo do Estado, os problemas crescem um pouquinho. Em contrapartida, política e futebol são amplamente discutidos nas mais variadas situações. Seja no bar ou na esfera acadêmica, numa festa com bons amigos ou na casa da sogra, os mandos e desmandos dos nossos políticos são comentados, escrutinados, esculhambados. O mesmo se pode dizer do futebol. Claro está que flamenguistas e vascaínos, de tão envolvidos emocionalmente com seus times, terão dificuldades em discutir racionalmente os dotes dos jogadores de seus clubes. Pouco provável, no entanto, é que alguém discorde que Neymar fez uma excelente Copa das Confederações, seja um santista, corintiano ou são paulino. Há evidências suficientes para sustentar tal posição. Se queremos debater futebol, podemos avançar na troca de idéias e demonstrar que tecnicamente queremos mais jogadores como Neymar. Fazemos algo semelhante quando discutimos política. Deixando de lado os arroubos emocionais e as idiossincrasias daqueles que discutem, de modo geral, nessas conversas é necessário que se ofereça uma ideia e que se construa um argumento que tenha a mínima possibilidade de ser defendido. Evidências são valiosas em discussões desse tipo. Fatos são os socos para que se vença a porrada verbal entre amigos e inimigos. Renan Calheiros, José Sarney e Fernando Collor de Mello são canalhas, e pronto. As evidências e os fatos demonstram isso. Ao debater tais evidências e fatos avançamos nas discussões sobre politica, e assim rejeitamos figuras que tenham atitudes similares áqueles três. O mesmo não se pode dizer sobre as religiões. O que os católicos que festejam a vinda do Papa pensam sobre a condenação do Vaticano ao uso de preservativos? Danilo Gentili me parece mais sério do que tal proposição... Deveríamos discutir religião assim como discutimos futebol e política. Talvez assim ficaria mais fácil delinear as fronteiras da expressão das crenças individuais em nível institucional. Ademais, várias das inconsistências morais e éticas dos crentes seriam expostas, questionadas, reformuladas. Para além dos descuidos com a segurança do Pontífice, a visita do Papa ao Brasil salientou atrasos sociais ainda mais profundos do que a nossa desorganização. A ausência de ampla discussão sobre nossas crenças - ou a ausência das mesmas - expressa de forma mais contundente o nosso atraso como povo. Já discutimos futebol e política; apaixonadamente, raivosamente, racionalmente. É necessário reinventar o dito e discutir também religião. Ao colocarmos Krishna, Buda, Jesus, Oxalá e Maomé para brigarem avançaremos como sociedade.