Tradução e leitura de "Trilce II", de César Vallejo

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                      II

 

             Tempo Tempo

   Meio-dia estancado entre relentos.

Bomba tediosa do quartel apequena

tempo tempo tempo tempo.

 

             Era era

   Galos cancionam cavando em vão.

Boca do claro dia que conjuga

era era era era.  

             Manhã manhã

   O repouso quente ainda de ser.

Pensa o presente guarda-me para

amanhã amanhã amanhã amanhã.  

             Nome Nome

  O que se chama quanto nos arrefere?

Chama-se Omesmo que padece

nome nome nome nomE.   In: Cesar Vallejo, Trilce (1922). Ed. Julio Ortega. Madrid: Cátedra, 1993, p.48. O original em espanhol pode ser consultado aqui.   [caption id="attachment_1590" align="alignleft" width="201"] César Vallejo em 1929 (foto de Juan Domingo Córdoba).[/caption] Trata-se aqui de um dos mais célebres poemas de Vallejo sobre a temporalidade, tema constante do poeta. Escrito na prisão, portanto entre novembro de 1920 e fevereiro de 1921, Trilce II é também um dos poemas de maior regularidade rítmica e estrófica entre os 77 textos que compõem o poemário, um dos mais influentes, fundamentais e herméticos da história da poesia em língua castelhana. O primeiro verso, destacado e reiterando o mesmo vocábulo, tempo, dá o mote do que será o texto: um mergulho em imagens e conceitos que nos dão um vislumbre da percepção que tem o eu lírico da temporalidade. Essa percepção será transmitida através de um rigoroso trabalho sobre a forma. Iniciando-se in media res, com a alusão ao meio-dia, o poema produz a expectativa de movimento, imediatamente frustrada pelo adjetivo estancado: fala-se da hora, mas a hora não passa. Está estacionada entre os dois relentos da madrugada que a balizam simetricamente. As surpresas oximorônicas continuam no verso seguinte com bomba tediosa, inesperado atributo a se associar a uma explosão, que o texto apresenta como elemento que apequena o tempo, vocábulo que volta a se repetir no fechamento da estrofe, agora quatro vezes, produzindo o efeito que será reiterado ao longo do poema, o de clausura. Aqui, o leitor já terá percebido a organização rigorosamente simétrica do poema: são quatro tercetos, cada um deles precedido por um verso avulso composto de um vocábulo repetido duas vezes. Cada um dos quatro tercetos termina com um vocábulo repetido quatro vezes. Os dois versos introdutórios de cada terceto são hendecassílabos, logo sucedidos por um decassílabo que fecha a estrofe. Trata-se, então, de uma forma quadrangular que se fecha sem deixar sobras, replicando formalmente a ideia de clausura que é o mote semântico do texto. Se a primeira estrofe aludia ao meio-dia, a segunda nos remete à madrugada, com a imagem dos galos que cavam em vão, cancionando, primeiro dos neologismos vallejianos que aparecerá no texto. A boca do claro dia, nos diz o poema, conjuga era era era era, na primeira ambiguidade semântica do texto, na qual se reitera novamente, no verso que conclui o terceto, a palavra que havia aparecido no verso avulso que o introduz. A ambiguidade semântica é patente, já que “era” pode ser lido como substantivo ou como verbo. Lido como verbo, o vocábulo aludiria ao imperfeito do verbo ser, ao ser passado, àquilo que o cancioneiro dos galos aponta como já sido. Lido como substantivo, o termo designaria um tempo, nosso tempo, nossa era, aquela marcada por meio-dias estancados e galos que cavam em vão com o seu canto. Como se verá na sequência do poema, uma dessas leituras é nitidamente reforçada pela sequência das próximas estrofes. Enquanto que a primeira estrofe havia sido introduzida por tempo e a segunda por era, a terceira é introduzida por mañana, segunda ambiguidade semântica patente, já que o termo em espanhol pode designar tanto “manhã” como “amanhã”. Em qualquer dos casos, ele parece apontar para o futuro, fechando um ciclo que se abre com a primeira estrofe, que falara da tarde, e que continua com a segunda, que tematizara a madrugada. Aqui, trata-se do repouso quente ainda de ser, que evoca a noite na cama. O notável trabalho de condensação poética de Vallejo produz, no verso seguinte, mais uma dissemia, na medida em que o verbo “pensar”, em pensa o presente guarda-me para/ amanhã amanhã amanhã amanhã, deixa-se ler como imperativo (“alô, amanhã, pense o presente”), ou como forma verbal conjugada na terceira pessoa (“o presente pensa: amanhã, repouso quente ainda de ser”). A bissemia comporta uma descrição do presente que, ao pensar na natureza do amanhã, interpela-o para que guarde o sujeito – para que o proteja, por assim dizer – para o futuro. Mas ela também comporta a leitura de que o poema cifra um apelo do eu lírico ao próprio amanhã, para que esse amanhã pense o presente e assim guarde, proteja o sujeito. A possibilidade de resolução das várias bissemias e ambiguidades do texto se remete, então, à última estrofe, a única que não é introduzida por um termo ligado ao campo semântico de tempo.

Nome nome, diz o verso avulso que introduz a última estrofe, retirando-nos da elucubração sobre o tempo e instalando-nos na possível resolução da angústia fechada descrita nos três primeiros tercetos. Aqui, pergunta-se pelo nome daquilo que nos heriza, neologismo vallejiano composto de erizar (arrepiar) + herir (ferir). Aquilo que nos arrepia e fere, aquilo que nos arrefere, terá qual nome? Note-se aqui a estranha construção sintática vallejiana, que relega o mais comum ¿Cómo se llama? em favor do contra-intuitivo e levemente agramatical ¿Qué se llama?, tão insólito em espanhol como em português. Vallejo cumpre aqui um dos programas realizados com mais frequência e radicalidade em Trilce, a produção de enunciados que arranham a sintaxe da língua, povoando-a de estranhezas inusitadas. O que seria isso, então, que nos arrefere, que nos arrepia e fere? Isso tem nome, Omesmo (Lomismo), outro neologismo vallejiano formado pela substantivação da locução adverbial. Esse Omesmo padece, então, do nome e resume o sentido de reiteração, repetição e clausura que atravessa o poema. O ciclo temporal, portanto, não é uma espiral aberta, sequer uma circunferência exata, mas um quadrado fechado e agônico. Seu nome, Omesmo, encarcera o sujeito poético no interior de um sempre idêntico tempo, tempo.