Um profeta pessimista

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Em entrevista exclusiva à Fórum, o sociólogo Francisco de Oliveira mostra por que, mesmo remando contra a maré, continua sendo um dos intelectuais mais respeitados do país

Por   Um dos maiores intelectuais do país, o sociólogo Francisco de Oliveira define sem hesitar o papel que ele julga ser essencial desempenhar: ir contra o senso comum. Fundador do PT, participou também da formação do PSOL, embora hoje confesse ser cético em relação a formas de atuação política institucionais. Na entrevista a seguir, Francisco de Oliveira traz reflexões importantes a respeito do atual momento da América Latina, do contexto político brasileiro e da falta de renovação da Teoria Política. Em meio a isso, anuncia o que ele define como recolhimento, em que abre mão de uma atuação política mais ostensiva, mas “sem recuar”. “Minha posição agora é a dos profetas do Antigo Testamento, eu só sei anunciar catástrofes”, brinca. “Estou do lado de Jeremias. Ninguém me peça fórmula nenhuma porque não tenho, não sei, e acho que meu papel é esse. Não é um grande papel, todos acham isso muito incômodo.” Fórum – Que tal começar esta entrevista com uma reflexão a respeito do atual momento da América Latina, não lhe parece que a situação de agora é a mais interessante das últimas décadas? Francisco de Oliveira – O momento da América Latina de fato não é ruim, é uma conjuntura um tanto esperançosa, talvez só comparável à do pré-64, quando o golpe no Brasil desatou uma série de outros em países vizinhos. Mas pára por aí. Todos os governos, com exceção dos de Hugo Chávez e Evo Morales, são muito cautelosos. A [Michele] Bachelet no Chile tem uma história, mas não se compara com a da esquerda chilena antes do golpe que derrubou e assassinou [Salvador] Allende. Nem em vigor nem em criatividade política. O [Néstor] Kirchner é uma grata surpresa, saiu de um peronismo esfrangalhado e firmou-se como um governante sem temores, capaz de manobras e de diretrizes políticas audaciosas para um país que estava no chão. Mas também não é uma conjuntura homogênea, tem-se por outro lado a Colômbia, que é um desastre monumental. E além de tudo é um cenário contraditório, pois os EUA perceberam que não podiam ir contra os países e usaram a tática de evitar o ataque frontal. Estão fazendo acordos de livre comércio, país a país, o que no fundo desmonta a estratégia anti-Alca que alguns países da América Latina, sobretudo com a força do Brasil, tinham construído. E todos querem fazer esses acordos bilaterais. Recentemente houve uma declaração de um ministro do Paraguai de que o seu país não podia esperar mais. O Uruguai também sinalizou que poderia buscar um acordo. O Brasil não usa o peso que tem, os ataques à chancelaria são constantes. Fórum – Por que o senhor acha que o Brasil não usa o peso que tem? Oliveira – Porque poderia ir mais longe. Primeiro, existe a questão do tamanho, o que em geopolítica é decisivo. E o Brasil pode mudar de posição sem se enfraquecer, pois tem tamanho territorial, de população, de economia. Quando havia o Carlos Lessa no comando do BNDES, ele tentou fazer um banco de desenvolvimento da América do Sul, e hoje o BNDES não tem uma atuação condizente com isso. E o BNDES é o maior banco de desenvolvimento do mundo, é maior do que o Banco Mundial, coisa que, aliás, pouca gente fala. Acho que a política externa se acovardou depois do impulso inicial. Ela vem recuando em um panorama que em muitos pontos é favorável. Além disso, para que a situação da América Latina fosse melhor, seria necessário que o México não tivesse uma política totalmente submissa aos EUA, o que não é o caso. Fórum – O senhor ainda mantém contato com intelectuais como Marco Aurélio Garcia e Marilena Chauí, com quem o senhor já militou? Oliveira – Não. Fórum – O senhor se afastou... Oliveira – Eu diria que eles se afastaram de mim. Não tenho nenhum preconceito e nem acho que quem ficou no PT é traidor, de modo algum. Ao contrário, acho que sem a esquerda do PT, a esquerda brasileira não existe. Mas eles se afastaram de mim. Fórum – Retomando a questão latino-americana, não lhe parece que esse processo do Chávez na Venezuela é semelhante ao do Getúlio Vargas, no Brasil, e de Perón, na Argentina, já que ele tem que construir o Estado? Uma parte da esquerda brasileira não admite uma análise sob esse prisma, mas o que lhe parece? Oliveira – Evidente, o paralelo dele é com Perón, Vargas, Cárdenas [Lázaro, presidente do México de 1934 a 1940], que construíram um Estado. Tem necessariamente esses lances que a imprensa em geral chama de populista, um termo utilizado para desqualificar qualquer ação popular. A Venezuela não tem sociedade civil, um grupo pequeno de operários de petróleo, totalmente cooptados... O que se está fazendo é aparelhar o Estado e viabilizar uma nação, com todos os exageros personalistas que houve. Como Morales quer viabilizar seu país e nisso há lances que a mídia e a Ciência Política chama de populismo. Mas qual é o fundo disso? O fundo é que, pelo fato de você não ter uma sociedade civil, a liderança salta por cima de falsas instituições. O recurso chavista é o mito Bolívar para chegar ao povão. Ao contrário da tradição brasileira, Bolívar funciona na Venezuela como mito aglutinador e dá possibilidade de dar um salto sobre instituições que não existem e que são somente de controle popular. A façanha que eles estão realizando é da mesma envergadura de Vargas, Perón e Lázaro Cárdenas, cada qual em seu tempo. Fórum – Na Bolívia, o Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales se organizou a partir de movimentos sociais e até hoje há um processo de interação grande entre o partido e as bases. Ali, como no Equador e agora na Guatemala, com a candidatura da Rigoberta Menchú, a mobilização dos povos indígenas modifica o cenário político de forma decisiva. Isso pode ser um fato novo na América Latina que possa criar um novo simbolismo? Oliveira – A coisa diferente está no fato de que eles se baseiam em organizações de comunidades, estão aproveitando uma coisa que é dada pela tradição dessas sociedades. Como são sociedades indígenas, o local é muito forte. Elas não foram dissolvidas ainda, como no México, que tinha uma base comunitária muito forte. O fato novo é transformar a etnia em política. A etnia antes servia para discriminar e agora é um fator de criação da política. Isso é auspicioso porque é o que eles têm. É preciso não esquecer que a Bolívia tinha uma tradição de esquerda muito forte, um sindicato de mineiros fortíssimo, uma tradição trotskista única na América Latina. Quando se juntam essas coisas sai algo novo, coisa que não é mais possível no México, porque a identidade local foi avassalada pelo tipo de capitalismo em que o país entrou. Ela não existe na Colômbia e é usada no sentido negativo, porque o fogo cruzado liquida toda possibilidade de organização comunal. Mas na Bolívia e na Venezuela ainda existem. Fórum – Entre os povos indígenas, esse conceito ocidental de democracia é algo estranho, esse conceito precisa ser reinventado, ou pode ser apenas adequado, reformado? Oliveira – Ele precisa de uma reinvenção profunda. A questão real é reinventar as formas da política para que elas possam de fato corresponder e poder expressar o conflito de classes de cada sociedade. O sistema que aí está não tem essa qualidade. No Brasil, por exemplo, ao analisar a política, quais as clivagens que se estabelece para identificar a política brasileira? Ela não passa pelos partidos, eles não querem dizer quase nada hoje. Basta ver as coalizões que o Lula faz, basta ver a falência dos tucanos que acharam que iam fazer o grande partido da burguesia brasileira e não agüentaram uma disputa presidencial. E o PT também. Esses países dos quais nós estamos falando têm uma bela oportunidade, pois têm uma base social que pode ser muito funcional a certas formas de representação que não as da democracia burguesa clássica. Um pouco dos esforços que aqui se fizeram e que o PT produziu, como orçamento participativo, deram em nada porque a comunidade local no Brasil não existe. Basta vermos em São Paulo: qual o sentido de comunidade local que existe no Morumbi, onde você tem uma alta concentração da burguesia e favelas formidáveis? Fórum – Então o senhor considera que isso serve para eles e não para o Brasil? Oliveira – Não serve para o Brasil porque não temos comunidade, a nossa sociedade é muito mais complexa em estrutura, formação, heterogeneidade, e a nós cabe inventar novas formas políticas. Lembrando o caso do orçamento participativo, uma bela invenção do PT, mas que se esgotou. Não existe comunidade para sustentar um projeto daqueles. Quando o Olívio Dutra tentou passar isso para o nível do estado foi um fiasco total porque quando se faz isso se reconstitui necessariamente a representação clássica que está em crise em todo o mundo. Fórum – O senhor não acha que nossa Teoria Política precisa de uma nova orientação? Oliveira – A nossa Teoria Política acadêmica é hoje uma teoria formalista, retirou qualquer pergunta sobre a legitimidade do poder, sobre as bases sociais da democracia, é conformista, nada agônica. Não tem nada decisivo tratado pela Teoria Política em voga, mas só copia os manuais internacionais. Passa-se no Brasil uma coisa interessante: a profissionalização das Ciências Sociais tirou-lhes o vigor interpretativo e questionador e isso na Ciência Política é fatal. Convivo com meus colegas de universidade e a Ciência Política não apaixona mais ninguém. É uma ciência de formas, todo mundo está satisfeito, reafirma-se que o sistema é sólido, mas a política institucional não decide sobre nenhum dos assuntos que interessam ao cotidiano do povo. Ela perdeu seu caráter. São instituições que procuram se blindar contra a política. Fórum – Onde as questões são decididas hoje, então? Oliveira – No Banco Central, nas agências reguladoras, cuja característica importante é que todas estão fora da vontade política, nenhuma passa pelo crivo da vontade popular. Decide sobre comunicações uma agência da área. Isso faz parte dessa história de que a Ciência Econômica, há dois séculos, se descontaminou da política. Tem os grandes teóricos da escola de Viena que trataram de fazer da Economia uma ciência exata, sem a contaminação com valores. Ora, uma Ciência Econômica que não se contamina com valores serve para quê? Estava lendo uma resenha de um novo livro sobre [Max] Weber, que virou clássico das Ciências Sociais do século XX, e é tido e propagandeado como liberal isento da política. Não há maior mentira do que essa. O Weber que vale a pena era político até a alma, mas é visto como o teórico que descontaminou a sociologia da política. Weber era imperialista, baseado no imperialismo nacionalista alemão. O objetivo virou esse, a Ciência Política não deve ter valores. Fórum – Qual a sua análise a respeito do que se convenciona chamar de movimento socialista dentro da academia? Oliveira – É muito débil hoje. O marxismo teve muita penetração e muita força na academia enquanto estava no auge na França. Depois que ele decaiu na França, perdeu prestígio. Diz-se que perdeu a capacidade explicativa do capitalismo contemporâneo, o que é uma bobagem. Não existe nenhuma outra teoria para se entender o capitalismo contemporâneo além do marxismo. Aqui, na Faculdade de Economia da USP, existe a Leda Paulani e o Eleutério Prado, que é um marxista muito especial. Tem o Paul Singer, enfim, se conta nos dedos da mão. Os alunos da FEA querem apenas aprender análise de investimentos para ter emprego no mercado financeiro. Fórum – Se existe essa situação na academia, de onde no mínimo saem os quadros técnicos que vão atuar com as lideranças políticas, qual a possibilidade de se avançar pela esquerda? Oliveira – É uma possibilidade muito débil. Em primeiro lugar, por essa hegemonia do pensamento único, que é mais ou menos geral, mas na economia é fatal. Se você falar em Marx na Ciência Política as pessoas viram a cara, fazem um certo ar de fastio. Na verdade, a Ciência Social hoje não faz mais teoria, e sim modelos analíticos. Teoria não é com ela. O problema mais grave está na sociedade, nos movimentos sociais que perderam força, em uma certa cooptação de sindicatos de trabalhadores, é aí que mora o perigo. Embora a relação entre movimentos sociais, trabalhadores e produção teórica não seja causal e direta, se você não tem movimentos reivindicativos e contestatórios na ordem social, a teoria perde alimento. No Brasil está havendo algo desse tipo, se formou uma sociedade de consenso conformista, o que retira a força de condições contestadoras. Esse não é um processo que depende só dos governantes, mas desde o Collor que essa posição tem sido hegemônica. Fernando Henrique foi dos piores. Tudo que se contestava era neobobo, jurássico, atrasado. O Lula vai por outro lado, não faz uma formulação intelectualizada, mas vai na raiz do problema que é a miséria, transformou a miséria em um problema de administração, o que retira qualquer capacidade contestadora. Fórum – Mas a luta contra pobreza também não é isso, o Estado não deve atuar contra a selvageria do capitalismo que produz essa miséria? Oliveira – É, mas o Estado está fazendo o contrário, legitimando a miséria, porque a transforma em um problema de administração. Tem o Bolsa Família que administra uma parte do bolo e mesmo a Renda Mínima é uma invenção neoliberal. Para o socialista clássico, a miséria e a pobreza eram um desafio; para os administradores modernos, a miséria e a pobreza são um problema de gestão. Fórum – Mas esse tipo de crítica não iguala pessoas como um Betinho a um Milton Friedman? Oliveira – Radicalmente sim, com todo o cuidado, porque Betinho nunca acreditou que resolveria o problema da miséria com programas em que ele foi a figura central. Tem outro caso que tenho usado muito ultimamente, trata-se da África do Sul, que derrotou o regime mais nefando do século XX, mais nefando que o fascismo. Mas ela se rendeu ao neoliberalismo, à ortodoxia mais radical. Fórum – Mas, ao mesmo tempo, tem programas de cunho, digamos, de “justiça racial”, que são absolutamente revolucionários. A reserva de mercado de trabalho para a população negra no Estado é de 87%... Oliveira – Tem um livro, Cidadania, Identidade Racial e Construção Nacional na África do Sul, em que o autor diz exatamente o contrário. Fórum – Estive na África do Sul recentemente e nem o mais radical dos que entrevistei nega o crescimento da participação da população negra na renda do país. Oliveira – Ele diz que as políticas afirmativas estão se dando na mesma base do apartheid. As análises políticas têm posições. Eu acredito nas dele. Fórum – O senhor não acha que a extremada crítica pode desacreditar posições, como nesse exemplo sul-africano? Oliveira – A crítica que ele faz é de que todas as políticas afirmativas, compensatórias, estão baseadas no mesmo conceito do apartheid e só tendem a perpetuar as divisões de classe na África do Sul. Fazer a distinção entre etnia e classe na África do Sul não faz sentido. Ele diz que a política devia se dirigir diretamente a essas divisões de classe ao invés de fantasiá-las como divisões raciais. Fórum – Trazendo essa questão para a realidade brasileira. Às vezes parece que quem crítica essas políticas como as do Bolsa Família trata o cidadão que as recebe como um tipo “vagabundo”, que recebe favor do Estado... Oliveira – Sou, com toda pretensão, um cientista social e não vou fazer opiniões com base no consenso popular. Minha função é desfazer essas aparências, a minha profissão me obriga a ir contra o senso comum, que me diz o seguinte: sou cristão. Eticamente sou cristão, mas não sou religioso. Fui formado na ética cristã, como todos nós, o que me obriga a não ser indiferente a um programa como o Bolsa Família. Porque estou de barriga cheia e os que são alvo do Bolsa Família não estão de barriga cheia, não posso ser cínico e dizer que o Bolsa Família não muda a realidade das pessoas. Mas o meu outro lado me obriga a dizer que esse tipo de programa só reitera essa situação, mesmo que acrescente dez reais à renda dessas famílias. Não desprezo porque estou de barriga cheia, mas acho esses programas uma capitulação frente à desigualdade. Fórum – Mas conhecendo a realidade do sertão nordestino... Oliveira – Tenho horror a essa apelação sobre o Nordeste. Primeiro porque o semi-árido é uma porção insignificante do território nacional. Segundo porque a população de lá não tem nenhuma relevância se comparada às favelas de São Paulo, de modo que essa apelação nordestina é falsa. A miséria não está no Nordeste, está aqui a miséria capitalista produzida pela desigualdade. Fórum – Mas a fome também estava lá. Oliveira – Mas é uma fome pré-capitalista. Aprendi a duras penas que aquilo é resquício do subdesenvolvimento. Os estudos mais aprofundados do ponto de vista climático, territorial dizem que o sertão do Nordeste é assim há 1.500 anos, de modo que a miséria que está lá não foi produto da depredação humana, do capitalismo. É uma situação de miséria e de atraso e tem que se tirar aquela população de lá, o oposto do que os governos fazem. A miséria de fato está aqui, no Rio, e não no Nordeste. Fórum – E como se atua nesse caso? Oliveira – Atua-se com programas de distribuição de renda fortíssimos, dos quais a Previdência Social é o mais importante. Estão aí os estudos do Ipea que mostram que o pouco de redistribuição de renda que houve no Brasil foi por conta da Previdência Social. Os dois grandes programas de integração social criados no Brasil foram elaborados por duas ditaduras; o primeiro programa de inclusão foi Vargas quem fez e o segundo, da aposentadoria rural, foi o Médici. Isso é uma vergonha para a democracia brasileira. A situação da miséria no Semi-Árido foi produzida por um movimento de expansão demográfica que empurrou as pessoas para um lugar onde não deveriam estar. Você que é jornalista, viaja bastante, viveria em um lugar daqueles? Fórum – Não viveria, mas hoje há projetos de desenvolvimento local que fazem com que seja mais humano viver lá. Oliveira – Onde existe isso? Fórum – Fui ao Cariri cearense recentemente e vi belos projetos sendo desenvolvidos, não só o Bolsa Família... Oliveira – Ah, não, o Cariri cearense... Lá é um lugar úmido, com fontes de água perenes. Ali eu conheço, não vem que não tem. Fórum – Sei que há lugares muito piores, estava dando como exemplo o Cariri cearense. Mas o senhor diz que é preciso retirar as pessoas dali, mas será que elas querem sair? Oliveira – Retirá-las não de forma ditatorial, basta seguir o que as pessoas já sabem. Por que algumas vieram para São Paulo. Aqui tem as pessoas mais pobres, debilitadas, fora do mercado de trabalho, que comem lixo. Não é o caso de lá. As pessoas mais racionais viram isso aqui e voltaram. Basta seguir essa orientação. Fórum – Já foi dito por outros intelectuais que o Brasil tem que enfrentar dois grandes desafios: a questão da desigualdade regional, com o Nordeste, e da desigualdade racial, principalmente com os negros, o que isso lhe parece? Oliveira – Sou do Nordeste, não tenho vergonha, e acho isso uma falsa questão. O Nordeste não é a questão brasileira. Até passa pelo Nordeste, mas integrado em um conjunto maior. Isso é uma tecla que todo mundo bate, todos os políticos batem e o senso comum bate. Parece que o Nordeste é o grande problema brasileiro. O grande problema brasileiro é a miséria urbana dos grandes centros. Você não muda o Brasil mudando o Nordeste. O que precisamos é de um programa distribuição de renda. Fórum – E como se faz um grande programa de distribuição de renda? Oliveira – Uma ação estadual e federal. O estado de São Paulo pode fazer isso e, se for combinado com uma ação federal, você liquida com essa situação de miséria obscena em 20 anos. Fórum – O que o senhor acha das primeiras declarações e atos do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral? Oliveira – Confesso que não as tenho seguido. Tenho seguido as do Serra, que são desastrosas. Ele está se revelando de um estilo político rançoso, rancoroso e preconceituoso. É difícil acreditar que alguém que foi presidente da UNE em seu último período tenha se transformado no político em que ele se transformou. Ele tem raiva de quem é pobre. Fórum – O senhor poderia citar uma cidade ou estado em que houve um processo com um governante enfrentando firme essa questão da distribuição de renda? Oliveira – Não sei lhe dizer. Contraditoriamente ao que eu mesmo estou dizendo, houve cidades muito pobres que reverteram situações muito graves de mortalidade infantil com programas simples, o que mostra que é possível fazer. Fórum – Não seria importante nesse momento a esquerda trabalhar a questão da segurança pública de forma mais intensa, até para não cair no senso comum de redução de maioridade penal, pena de morte etc.? Oliveira – É isso. A Heloísa Helena perdeu o voto da minha mulher quando ela disse em um programa de televisão que iria construir mais prisões. Minha mulher disse que não ia votar em uma pessoa de esquerda que diz que a solução para a segurança pública é construir mais prisões. Fórum – Como o senhor avalia a participação da Heloísa Helena no processo eleitoral? Oliveira – Péssima, péssima. Ela virou uma udenista de esquerda. Quando você sabe que não vai ganhar, sua obrigação é ser utópico. O candidato deveria ser o Plínio de Arruda Sampaio, que sabia que não ia ganhar e, portanto, estava construindo uma utopia, que tem uma função muito mais relevante para a educação política do que a gente pensa. Por isso a crítica à África do Sul tem que ser radical, idem ao Brasil. Qualquer coisa menos do que isso deseduca. As coisas de senso comum deixa que a Rede Globo faz. Você tem que fazer exatamente o contrário, sem a ilusão de que a radicalidade vai ser implementada, mas com o papel crítico que a radicalidade tem. Fórum – Essa radicalidade muito extremada não pode produzir posições como a da Heloísa Helena, que deseducam, como o senhor diz? Oliveira – Mas a Heloísa Helena não tinha uma posição radical. Ela tinha uma posição udenista, um lacerdismo com outro viés. Ela tinha que ter tascado em cima das coisas centrais, do processo de privatização, esse era o foco da campanha dela, mas foi para o lado moralista porque era mais fácil e caía bem, mas não tem o papel de educação política. Fórum – Ela pode ter matado o projeto do PSOL? Oliveira – Acho que sim. O PSOL, no momento, não tem condições de se apresentar novamente porque o que ficou foi muito deseducativo. Já era difícil ser uma opção política e ali se descaracterizou. Fórum – E o que fazer agora, já que o senhor considera que o PSOL deixou de ser uma alternativa e que o PT está inviabilizado como projeto de esquerda? Oliveira – Não vou me comparar ao Marx, mas ele assistiu a todas as tentativas de revolução burguesa na Europa de seu tempo, a última das quais na Alemanha. Marx era um reformista. Quando ele olhou pra história européia, pensou “por aqui, já passou o vento da história”. Foi para Londres estudar. Houve uma brecha aí. Por isso votei no Lula no segundo turno, mesmo tendo sido um dos críticos mais contundentes do seu governo, porque vi a possibilidade dessa brecha, já que ele precisava dos votos da esquerda, grosso modo, e dos votos críticos. Havia uma brecha e uma passagem para algumas pessoas de esquerda atuarem. Qualquer voto que não fosse nesse sentido seria o voto sectário. Sou muito incisivo, mas não sectário. Havia uma chance real e minha contribuição foi para alargar essa brecha e fazer com que as forças reais que existem e estão no PT e fora dele pudessem atuar. Aí votei no segundo turno em Lula de forma consciente. Devo confessar que depois tomei um digestivo, porque um sapo não é fácil de engolir. Mas no dia seguinte ele desmentiu tudo, deu uma bronca no Tarso Genro e na Dilma Rousseff, falou em anunciar o [Jorge] Gerdau como possível ministro. Quer dizer, voltou a colocar o salto alto. Ele pode fazer isso porque se converteu em um mito. Fórum – Quando o senhor fala do Brasil e da África do Sul, são países que podem se tornar sub-imperialistas a seu ver? Oliveira – Já estão. O Brasil já está se tornando, e não é à toa que a Petrobras tem 15% do PIB boliviano, o que muda a estatura do Brasil em relação aos seus vizinhos. Quando o Evo Morales tomou aquelas decisões, José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, saiu como se fosse um Nelson Rockfeller, falando desaforos sobre o presidente da Bolívia. Foi preciso que o Lula viesse e puxasse ele pela goela, mas isso já mostra por que Nelson Rockfeller falava daquele jeito. Gabrielli já é nosso Rockfeller, o Brasil já é sub-imperialista. Engraçado porque isso dá razão histórica a Rui Mauro Marinho, depois de 40 anos ele tinha razão. A África do Sul já é sub-imperialista. Esse é o desafio do Estado brasileiro. Fórum – E a China pode estabelecer um imperialismo semelhante ao norte-americano? Oliveira – Já sou pessimista por definição... Além disso, não há nada comparável ao Mao Tsé-Tung, o pior de todos os tiranos do século passado. Ele não pode ser referência da esquerda, precisamos de uma crítica implacável. Foi o pior tirano em um século repleto de tirania. Um país desse tamanho com a economia que eles puseram em movimento não pode dar em boa coisa. Nem para um panglossiano para lá de exagerado. Isso vai resultar em imperialismo, talvez não nas formas do século XX, com guerras e conquistas, mas um imperialismo sufocante, do ponto de vista econômico sobretudo. A história não se escreve assim, um país desse tamanho, com o PIB que vai ter, criando relações de dependência com um monte de países. O Brasil, por exemplo, se a China amanhã fechar as fronteiras a economia brasileira cai de quatro. Isso nunca deu certo e não é a China que vai inventar algo novo. Fórum – Vou lhe fazer uma pergunta que parece um tanto ingênua, o senhor é de esquerda e se considera socialista, mas o que é ser socialista no contexto atual? Oliveira – Não sei [risos]. Em termos de programa prático, não sei. Em termos de posicionamento político, continuarei radical, implacável na crítica, não faço concessões e nem recuo um milímetro. Mas, praticamente, o que é ser socialista, não sei. No momento é o programa de Marx em Londres, me recolho, estudo e mando brasa. Fórum – Esse momento de recolhimento significa que o senhor vai sair do PSOL? Oliveira – Sair, não, mas não vou atuar de forma tão ostensiva não. Estou muito cético em relação a essas formas de atuação política. Primeiro porque o PSOL está em busca do tempo perdido, é um partido proustiano. Ele está atrás do operariado, do programa do PT dos anos 1980 e isso não tem mais. Minha posição agora é a dos profetas do Antigo Testamento, eu só sei anunciar catástrofes [risos]. Fui recentemente a Ouro Preto e visitei Congonhas do Campo, que tem os profetas. Busquei logo a ala dos pessimistas. Minha mulher disse “vai praquele lado que vou desse”. Estou do lado de Jeremias. Ninguém me peça fórmula nenhuma porque não tenho, não sei, e acho que meu papel é esse. Não é um grande papel, todos acham isso muito incômodo. Fórum – E algumas das suas posições não criaram seqüelas com amigos antigos? Oliveira – Com nenhum amigo antigo. Continuamos firmes na amizade, acima disso, mais afetiva do que política. Cito a você uma tonelada. Paul Singer, a minha turma na USP, que nos intitulamos a “Tribo de Asterix”, uma baita confusão, ninguém concorda com o outro um milímetro e a gente se dá às maravilhas. Maurício Segall, que chamo carinhosamente de “velho bolchevique”. Os que não falam comigo após minhas posições sobre o PT é gente que na verdade não tinha relação afetiva maior. Isso faz diferença, mas não para me abalar. Já sei como eles se comportam, gente que fez censura a texto que escrevi. Fórum – Já que o senhor citou essa questão da censura, é verdade que o presidente Lula se recusou a escrever o prefácio de um livro porque havia um texto seu que era crítico ao governo? Oliveira – Sim, isso é real. É um livro sobre reforma política de um grupo que eu coordenava no PT e o texto era uma conferência de abertura do ano escolar da USP. Fazia a crítica básica sobre a independência do Banco Central. Isso se transformou em um artigo e o livro, que seria coordenado por mim, Maria Victoria Benevides e o Paulo Vannuchi [atual secretário nacional de Direitos Humanos] e o prefácio seria escrito pelo Lula. O recado do Paulo Vannuchi é que, se aquele texto do Banco Central saísse, o presidente se negava a assinar o prefácio. Eu lhe respondi de cara, se o presidente se nega a escrever um prefácio de um livro que tem um texto meu, eu me nego a escrever num livro que tenha um prefácio assinado por ele. A coisa foi tão grave que a Maria Victoria disse ao Paulo Vannuchi que considerava aquilo um pedido obsceno. A Maria Victoria é minha testemunha nesta história. O Vannuchi foi tão desonesto depois, que ele não só retirou aquele texto do Banco Central do livro como mudou o título de um outro texto que escrevi sobre o orçamento participativo. Colocou um título insosso. Fez isso sem me consultar. Isso foi no começo do governo. Quando aconteceu isso, vi que já não tinha mais sentido continuar sendo um dissidente dentro do PT. Até por isso estou pouco me lixando se hoje certos tipos não falam comigo, conheço bem o caráter de alguns deles.