Um cinéfilo raro, em três atos

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Assim como o pequeno Totó do clássico italiano Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, o catador de sucata José Luiz Zagati ficou fascinado pela magia da Sétima Arte logo na infância. Ele diz que lembra “como se fosse hoje” da emoção que sentiu aos cinco anos, quando assistiu pela primeira vez a uma sessão de cinema, levado pela irmã em sua cidade natal, Guariba, no interior de São Paulo. “Era um filme de cowboys.”
Passados mais de 50 anos, o catador cinéfilo conta sua história à reportagem de Fórum no Mini-Cine Tupy, a pequena sala de cinema que começou a montar com materiais encontrados no lixo, na periferia de Taboão da Serra. Como o roteiro de grande parte dos filmes, a trajetória quixotesca de Zagati tem três atos. Pode até parecer, mas não é ficção.

Ato I - O jovem sonhador
Depois da inesquecível sessão, o menino pobre, filho de lavradores, passaria um bom tempo longe do cinema. A família mudou para Taboão da Serra em busca de trabalho em São Paulo. O Cine Tupy era uma das atrações da cidade. Sem dinheiro para comprar ingresso, Zagati “ficava em frente, admirando, imaginando lá dentro e lembrando do cinema de Guariba”. Adolescente, começou a fazer bicos para ajudar a família e gastava boa parte do que arrecadava em ingressos no Cine Tupy. “Era um enorme prazer vestir a melhor roupa, comprar balas e entrar no cinema”, relembra. Não importava qual era o filme em cartaz. “Via os cartazes, as pessoas na fila e achava tudo incrível.” Gostava mais quando era uma obra nacional, principalmente do ídolo Mazzaropi.
O tempo passou. Zagati se casou em 1977 com Madalena Ribeiro dos Santos, com quem teve nove filhos. Com estudo até a 3ª série do ensino fundamental, se virava como podia para sustentar a grande família. Já foi engraxate, pedreiro, borracheiro, montador de baterias de automóvel. Com outras preocupações, mal teve tempo de se abalar quando o Cine Tupy sucumbiu à crise dos cinemas de bairro e fechou as portas.

Ato II - Catador: “estava escrito”
No início da década de 1990, Zagati ficou desempregado. A situação ficava cada vez mais difícil e a alternativa foi seguir o caminho dos milhares de “homens invisíveis” que tiram o sustento do lixo alheio. Em sua busca de materiais recicláveis, começou a encontrar pedaços de rolo de filme, que remendava. Também achava equipamentos velhos e quebrados e tentava arrumar.
Em 1997, conseguiu comprar um projetor de 16 mm por R$ 80,00, “justamente o dinheiro que tinha guardado”, no centro de São Paulo. Conta que levou o equipamento para casa “no colo, como se fosse um bebê”. Na mesma noite, exibiu pedaços de filmes na rua, com as imagens refletidas em um lençol. Não tinha som e nenhum sentido e, ainda assim, teve público de cerca de 50 pessoas, crianças e adultos. “Eram só pedaços de filme emendados, mas foi a primeira vez que muitas daquelas crianças, e até adultos, viam cinema”, conta. “Foi um momento inesquecível.”
Com o projetor, passou a procurar filmes inteiros para exibir. “Não via a hora de exibir algo com começo, meio e fim.” Depois de muita insistência, ganhou de Arquimedes Lombardi, da Associação de Colecionadores de Filmes em 16 mm, o longa Cruéis Dominadores, filme norte-americano sobre o nazismo gravado em preto e branco em 1951 e dirigido por Willian C. Menzies. “Hoje: Cruéis Dominadores”, estava escrito no cartaz de cartolina em frente à casa de Zagati, que anunciava o primeiro filme que ele exibiria inteiro, na garagem, no dia 16 de agosto de 1998. Lombardi passou a ceder os filmes frequentemente.
Durante a semana Zagati andava pela cidade com seu carrinho recolhendo sucata e observando locais com boa concentração de crianças para exibir os filmes no fim de semana. “O pessoal não acreditava quando chegava um catador e perguntava se ali poderia exibir filmes.”
Às vezes a chuva impedia a exibição das películas. Veio então a ideia de montar um cinema, mas não havia espaço na casa de Zagati. A solução foi se mudar. Vendeu a casa e comprou uma em um bairro próximo onde pudesse construir a sala. Aplicou dinheiro do bolso, conseguiu doações e, em dezembro de 2003, inaugurou o Mini-Cine Tupy, batizado em homenagem ao extinto Cine Tupy, em cima de sua residência.
A sala, de quatro metros de largura por dez de comprimento, tem 40 lugares em cadeiras de plástico, chão de cimento, telha de amianto, lâmpada incandescente, prateleiras repletas de VHS e equipamentos velhos. Na parede rústica, pôsteres de filmes nacionais, fotos de Mazzaropi e Charlie Chaplin e rolos de filme expostos como troféus.
O Mini-Cine Tupy foi evoluindo aos poucos. Os filmes deixaram de ser exibidos em películas, passaram a VHS e hoje são por meio de DVD. As sessões costumam ser semanais “com filmes para todos os gostos”, segundo Zagati. Mesmo quase sem apoio, o catador não cobra nada de quem assiste às sessões. “A maioria do público é carente; se eu cobrar, muitos vão passar vontade.” Tem até pipoca grátis. “Senão, a sessão não fica completa.”
Aos 58 anos, Zagati é incansável. Projeta, faz com cartolina o cartaz de divulgação das sessões, cozinha a pipoca, limpa a sala após os filmes, arruma equipamentos... Tudo pela “sensação maravilhosa e inexplicável” de observar as reações das pessoas ao assistirem um filme projetado por ele, diz. “Sonhei durante minha vida toda em ver as pessoas se divertindo com os filmes que estou projetando.” Com o sonho realizado a partir do lixo, Zagati acredita que se tornou catador porque “estava escrito”. “Se eu não tivesse virado catador, não existiria o Mini-Cine Tupy.”
Ele confessa ter até problemas na família devido a sua paixão pela pequena sala e a Sétima Arte. Mas reconhece que dona Maristela tem seus motivos para reclamar. “Nesses últimos anos, me dediquei muito ao Mini-Cine Tupy, que tem sido tudo para mim e ficou em primeiro plano. Ela diz que eu casei com o cinema”, conta.

Ato III - Cinéfilo solitário
A história de Zagati já foi tema de três documentários. Mesmo assim, ele e o público das sessões do Mini-Cine Tupy não deixam de sofrer com a falta de investimento em cultura no país. Quase sem apoio do poder público ou da iniciativa privada, a pequena sala ficou mais de três meses sem sessões desde o fim de 2008. Zagati luta solitário para manter o Mini-Cine Tupy em funcionamento. “A família vê que não tenho apoio e continuo trabalhando como sucateiro. Diz que não compensa”, conta. “Além disso, muita gente zomba de mim porque eu ainda cato sucata, mas é graças a isso que eu mantenho o Mini-Cine Tupy.”
O cinéfilo sonha com dias melhores. Quer deixar de ser catador para cuidar exclusivamente do Mini-Cine Tupy que, diz, “gostaria que se tornasse um grande cinema popular, com espaço adequado, bem estruturado, mais conforto e qualidade”. Sempre sem nenhuma finalidade comercial, garante. “O objetivo é apenas apresentar a magia do cinema às pessoas.” Zagati continua a solitária luta pelo final feliz que almeja e dá de ombros às críticas. “O fato de eu ter feito alguma coisa para alguém não tem dinheiro que pague. Isso é riqueza, é o que permanece para a eternidade”, filosofa. F