Uma outra linha no Itamaraty

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O Itamaraty é a estrutura mais fechada, complexa e hierarquizada do governo brasileiro. Sua tradição de liturgias e saramaleques é uma herança direta dos tempos da monarquia, quando a presença da corte no Rio de Janeiro impôs ao país uma rotina intensa de serviços diplomáticos. Também vem da época em que ele ainda se chamava Secretaria de Negócios Estrangeiros, com uma grande disputa entre correntes internas, com pressão da opinião pública sobre os rumos da política externa e uma forte presença brasileira nos principais centros do mundo.
Outra marca histórica da instituição idealizada pelo Barão de Rio Branco é a blindagem de suas linhas mestras, que não mudam na mesma velocidade que os governos. Apesar do preconceito e da resistência de boa parte dos itamaratecas de punhos de renda, em especial os remanescentes da era FHC, o presidente Lula conseguiu quebrar paradigmas e promoveu uma das mais radicais reformas na estrutura do Itamaraty. Sua chegada ao poder propiciou o casamento entre a política externa historicamente defendida pelo PT e a corrente nacionalista e terceiro-mundista do Itamaraty, liderada por Samuel Pinheiro Guimarães e pelo titular da pasta Celso Amorim.
Aliás, o ministro trouxe à tona uma antiga obsessão, que fora tratada de forma protocolar e pouco entusiasmada por seus antecessores, Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer: a ampliação do Conselho de Segurança da ONU. A nova política externa brasileira resgatou a bandeira do “Brasil potência” e rompeu com a estratégia desenhada pelo Barão Rio Branco, de priorizar alianças com EUA e América do Sul. O Mercosul foi para o segundo plano, e os olhares se voltaram para a África. Foram abertos diálogos considerados “impertinentes” pelo governo anterior, com países árabes, Índia e China. “No momento de crise você vê o preço das decisões. É só comparar o Brasil com o México, que embarcou em um acordo integral com os EUA. O país está mais protegido, tem mais margem de manobra, porque não se atrelou. Alteramos políticas do governo anterior e isso nos protegeu”, diz Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT. “A política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva é, provavelmente, a vertente de atividade governamental que mais reflete as antigas propostas e as posições tradicionais do Partido dos Trabalhadores”, argumenta o professor Paulo Roberto Almeida, em artigo acadêmico publicado na Revista Brasileira de Política Internacional.
Hoje, cerca de 57% de nossas exportações vão para países em desenvolvimento – quando antes era quase o contrário. Vale lembrar que Samuel Pinheiro Guimarães foi colocado na geladeira por FHC devido a suas opiniões contundentes contra a Alca e em defesa de investimentos na periferia. Sua nomeação como Secretário-Geral do Itamaraty foi o resultado do cordial rompimento com a opção preferencial pelos EUA.

Alguma coisa fora da ordem O ex-cineasta e diplomata Arnaldo Carrilho acaba de se mudar para um modesto sobrado em Pyongyang. Sua nova residência fica em um bairro aprazível, no alto de uma colina a poucos metros da monumental estátua de ouro e bronze do líder norte-coreano Kim Jong, pai do atual ditador de nome similar, o excêntrico e belicoso Kin Jong Il. Além de ponto turístico obrigatório, a estátua é alvo estratégico para os potenciais inimigos, Coreia do Sul à frente. Não por acaso, esse foi o lugar escolhido pelo governo para receber as 50 embaixadas estrangeiras que se instalaram no país desde o início do processo de integração da Coreia do Norte ao resto do mundo.
A embaixada brasileira é a primeira e a única das Américas, com exceção de Cuba, que por solidariedade comunista está lá desde os anos 1960. Carrilho não teve a “sorte” de ter sido designado para uma embaixada no Caribe, por exemplo, em função do currículo ligado à Ásia. Serviu no continente durante dez anos, em postos como Camboja, Laos, Tailândia e Miamar, e tem histórico de serviços em países socialistas como Polônia e Alemanha Oriental. A solidão, portanto, não há de incomodar. “Eu tenho alguma vida interior (risos). Tenho mais de cinco mil livros e muitos dvds. Vou inclusive levar uma caixa do Glauber Rocha para o líder norte-coreano, que também é cinéfilo”, conta.
O desembarque de Carrilho em Pyonyang é a joia da coroa da diplomacia brasileira sob a batuta do presidente Lula. O investimento no país não se justifica apenas pelos números – em 2008 foram US$ 380 milhões de fluxo comercial com a Coreia, e a Sadia demonstrou interesse em exportar carne suína e de frango para Pyongyang. Ao lado do envio de tropas ao Haiti, este foi um dos lances mais ousados na campanha por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Muita gente se pergunta: vale a pena investir tanto nessa obsessão?

Brasil S.A. Não é exagero dizer, parafraseando Lula, que nunca antes na história deste país o Brasil esteve representado em tantos lugares. Entre 2003 e 2008, o governo federal abriu 35 novas embaixadas, a grande maioria na África. E não fechou nenhuma. Não por acaso, exporta anualmente para os africanos US$7,5 bilhões, um recorde. Na gestão Celso Amorim, o Itamaraty atingiu a marca de 203 representações diplomáticas, sendo 111 embaixadas. O Ministério das Relações Exteriores tem, hoje, 1.401 diplomatas, 734 deles servindo no Brasil e 667 no exterior. Poucos países no mundo contam com uma rede tão extensa. A Rússia, por exemplo, que tem PIB e população menores que o Brasil, tem 145 embaixadas, 101 consulados e 14 missões em organismos internacionais. Até 2010 serão mais de 100 adidos brasileiros espalhados pelo mundo.
Como era de se esperar, essa agressiva estratégia de tornar o país um global player, com parceiros diversificados, foi desde o início bombardeada por um consórcio formado por imprensa, remanescentes da era FHC no corpo diplomático – Celso Lafer à frente – e políticos da oposição. O discurso sofre poucas variações sobre o mesmo tema: a diplomacia brasileira foi contaminada pelo esquerdismo e pelo antiamericanismo, o Itamaraty é perdulário, e as nomeações feitas por Lula são partidárias. O porta-voz oficial dessa corrente é o embaixador Roberto Abdenur, inimigo declarado de Samuel Pinheiro Guimarães. Na mídia, matérias e editoriais reverberam.
“O governo Lula vai mandar para quatro pequenos paraísos no Caribe diplomatas que saibam curtir a vida. Nossas quatro novas embaixadas custarão US$ 1 milhão por ano. Entre esses arquipélagos de águas tépidas e cristalinas está São Cristóvão e Nevis. Formado por duas ilhas de origem vulcânica, tem 39 mil habitantes – menos que o bairro carioca do Leblon”, escreveu Ruth de Aquino na revista Época. Só faltou dizer que os arquipélagos Antígua e Barbuda, Dominica, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas são potenciais compradores do nosso biocombustível. E mais: o Caribe, com suas 13 nações, tem com o Brasil relações comerciais que chegam a US$ 4,6 bilhões por ano, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento. Para a imprensa saudosa de FHC, porém, o que importa são os gastos. “Se comparados os gastos diplomáticos de 2002, último ano do governo FHC, com os de 2004, primeiro ano para o qual planejou gastos, houve um aumento geral de 27%. Há casos, como o da embaixada em Dili (Timor Leste), em que os gastos aumentaram 160%. E também há casos de consulados, como o de Caiena, na Guiana Francesa, gastando mais (347 mil dólares) do que embaixadas, como a de Tel Aviv (288 mil dólares), cravou Veja, em dezembro de 2005. O curioso é que a exportação brasileira para o Timor era praticamente zero em 2002. Em 2008 foi de aproximadamente US$ 225 milhões.
“A abertura de novas embaixadas é uma aposta no futuro, um investimento que poderá se mostrar vantajoso caso o país tenha condições de manter um esforço continuado de projeção de influência em outras partes do mundo”, assegura Antonio Jorge Ramalho, professor de Teoria e História das Relações Internacionais da UnB. “Ao reduzir o fluxo que tínhamos com os EUA, resguardou-se a economia brasileira de impactos mais duros decorrentes da crise naquele país. A decisão foi ideológica, mas acertou o timing”, sustenta. F

To be, or not... Outro notório exemplo da histeria da mídia na cobertura do Itamaraty foi a repercussão da decisão de facilitar o acesso aos quadros do Instituto Rio Branco, em 2007. Ao acabar com o caráter eliminatório da prova de inglês, Celso Amorim mexeu na ferida. “A maneira como era feito o exame de ingresso no IRB era muito elitista. O nível de exigência em inglês só era atingido por quem tivesse tido formação top, de preferência com pais residentes no exterior. Era evidentemente um mecanismo de perpetuação de uma determinada camada social nos quadros de comando do Itaramaty. Nas provas cobrava-se um domínio de quem foi educado em língua inglesa; o tipo de excelência que era exigido era aristocrático. Agora é republicano”, atesta Valter Pomar. “Daqui a 50, 100 anos, o domínio do inglês não será mais exclusivamente necessário. A reação que houve a isso foi patética. É evidente que o corpo diplomático fala inglês. Não se baixou o nível.”, argumenta.
Antonio Jorge Ramalho, da UnB, observa porém que os critérios utilizados para deslocamento de cargos e funções no corpo diplomático brasileiro ainda não são absolutamente claros. “A carreira vem se transformando, em decorrência do aumento expressivo na seleção de novos diplomatas. As regras de jogo para promoções e remoções, que nunca foram muito transparentes, são hoje ainda mais misteriosas. Isso pode engendrar processos negativos no seio da corporação”, pondera Antonio Jorge Ramalho, da UNB.

Prata da casa O presidente Lula realizou um sonho antigo de dez entre dez diplomatas de carreira do Itamaraty: acabou com os embaixadores “políticos”, ou seja, que não foram formados no Instituto Rio Branco. Essa decisão deu-se basicamente em função de trapalhadas e gafes dos últimos “estranhos no ninho” – Itamar Franco, em Roma; Paes de Andrade, em Portugal; e Tilden Santiago, em Cuba. O caso de Tilden foi o mais emblemático. Seu estilo festeiro e nada low profile causou constrangimentos no Itamaraty. Ele cantava diante das câmeras em restaurantes com José Dirceu, adorava ciceronear atrizes, socialites e empresários brasileiros, e não resistia ao som da rumba nos lugares turísticos. Isso sem falar nas serenatas para sua mulher embaixo da sacada de sua casa. Para Fórum, Tilden se defendeu. “Sou jornalista, sei como funciona isso. A diplomacia sempre é objeto de considerações folclóricas. Não sei as razões que determinaram minha retirada de Cuba, mas sempre estive próximo do Itamaraty”.
Se por um lado Celso Amorim acabou com os embaixadores políticos, por outro, criou adidâncias irrelevantes para abrigar aliados. O caso mais famoso é o de Paulo Lacerda, ex-Diretor-Geral da Abin. Ele virou “adido policial” em Portugal, um cargo que não existia. Até 2010 existirão mais de cem adidos pelo mundo, com salários entre US$ 9 mil e US$ 17 mil. Essa decisão levou muitos diplomatas a questionar se as prerrogativas dos diplomatas não estariam sendo atropeladas. O Brasil tem, hoje, adidos em 32 países, entre militares, policiais da Abin, tributários, agrícolas e aduaneiros.

Um sobrado em Lafayette
A primeira embaixada brasileira no exterior, em Washington, era espaçosa, embora sua estrutura bastante modesta. Localizada na praça Lafayette Square, no lado esquerdo da Casa Branca, era um sobrado alugado que havia sido de Elihu Root, Secretário de Guerra dos EUA. A problemática material era recorrente; faltava pessoal, a mobília era inadequada, e os vencimentos, insuficentes. Joaquim Nabuco, o embaixador, insistia com Rio Branco que o Brasil precisava ter uma casa própria, ainda que mais modesta, para ser respeitado da mesma forma que as potências da Europa alocadas em Washington.