A religião dolosa do estupro culposo, por Zé Barbosa Junior

É mais que necessário e urgente que não só a Bíblia seja “atualizada”, mas que o cristianismo no Brasil seja revisto e, mais que reformado (deixe-me aproveitar também que comemoramos a Reforma Protestante esta semana), revolucionado.

Foto: site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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Dois fatos movimentaram muito a minha bolha de informações na última semana: o primeiro foi a reação de evangélicos conservadores à fala do pastor Ed René Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca (SP), de que a Bíblia precisava ser “atualizada” (as aspas aqui são necessárias), sob o risco de fazermos leituras que ainda defendam, por exemplo, o estupro. O segundo, hoje, é a ridícula e aterradora defesa de “estupro culposo” (onde não haveria a intenção de estuprar... Isso mesmo!!!) no caso em que a jovem Mariana Ferrer foi violentada pelo empresário André de Camargo Aranha.

Parecem dois casos desconexos, mas infelizmente penso que não. A cultura do estupro passa, infeliz e invariavelmente, pela cultura patriarcal e o machismo que durante séculos foram legitimados pela igreja cristã no Brasil. Nosso principal cristianismo (existem cristianismos) ainda é machista, misógino e patriarcal. As mulheres continuam silenciadas nas igrejas e, muitas vezes, “em nome de Deus”.

É mais que necessário e urgente que não só a Bíblia seja “atualizada”, mas que o cristianismo no Brasil seja revisto e, mais que reformado (deixe-me aproveitar também que comemoramos a Reforma Protestante esta semana), revolucionado.

Não dá mais para nos calarmos diante da barbárie. A cultura do estupro é uma das piores mazelas de nossa sociedade e está intimamente ligada à subserviência feminina imposta pelas igrejas durante séculos. A ideia de que mulheres devem servir a seus maridos, inclusive sexualmente, independentemente de suas vontades, pasmem, ainda é defendida por muitos pastores e líderes, em pleno 2020. Para estes, o corpo da mulher pertence ao marido, numa leitura literal e perversa de um texto bíblico pra lá de desatualizado, principalmente na sua leitura.

Além disso tudo, em casos de violência doméstica (uma pesquisa feita pela drª. Valéria Vilhena mostra que 40% dos casos ocorrem com mulheres evangélicas), as vítimas são covardemente aconselhadas a “orarem por seus maridos” e não a denunciarem a violência sofrida. Isso é uma segunda agressão contra a mulher! Se está sendo violentada e o pastor pede para orar, que ela disque 180, denuncie o marido e também o pastor, cúmplice do crime.

Por fim, que haja a atualização de tudo: da Bíblia, do cristianismo, do Direito... E que todas essas atualizações sejam pelo fim dessa cultura que a cada dia mata e diminui mulheres, seja em nome de Deus, seja em nome da Lei.

Dai-nos, não o perdão neste caso, mas a consciência! E não nos deixeis cair na tentação da relativização, do “estupro culposo” e do machismo nosso de cada dia.

Observação: O termo "estupro culposo" foi usado com base na reportagem de Schirlei Alves, no site The Intercept. A construção, no entanto, não foi usada nas alegações do promotor Thiago Carriço, segundo nota emitida pelo Ministério Público de Santa Catarina na noite de terça-feira (3). Diante disso, a Fórum promoveu a adequação dos textos e títulos das reportagens sobre o caso.