Voz para elas

Fórum inicia neste domingo um espaço muito especial, dedicado a dar voz às mulheres e meninas que foram vítimas de violência, através de crônicas narradas em primeira pessoa; confira na estreia da colunista Ana Beatriz Prudente

Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Hoje, a Fórum inicia um espaço muito especial, dedicado a dar voz às mulheres e meninas que foram vítimas de violência.

Aqui, não julgaremos, apenas iremos contar suas histórias em primeira pessoa. A voz e o vocabulário são da vítima.

Os textos desta coluna são crônicas de autoria de Ana Beatriz Prudente, inspiradas em relatos reais.

Nessas crônicas, a autora mesclou o relato de diversas vítimas com sua criatividade. Os nomes das pessoas, instituições e lugares são fictícios, nenhum nome próprio é real. Vamos às histórias delas!

Meu nome é Iolanda, tenho 16 anos, morava com minha mãe, meus irmãos menores e meu padrasto. Meu pai se separou da minha mãe quando eu ainda era muito pequena, era osso porque eu o via muito pouco, ele praticamente não fazia parte da nossa vida e morava em outro estado com a sua nova família. Costumava ver meu pai uma ou duas vezes por ano.

A história que vou contar começou dentro da minha família e depois foi para o colégio onde estudava, tomou conta da minha vida de tal forma que a impressão que eu tenho é que em todos os lugares para onde eu for, ela ainda pode se repetir.

O meu padrasto se chama Flávio, nos primeiros anos com minha mãe foi doce e carinhoso comigo e com os meus irmãos. Eu era a adolescente da casa e os meus irmãos bem menores, um tinha seis e o outro dois anos. Eles eram muito alegres e agitados, os dois são muito ligados ao pai deles, meu padrasto.

Sendo a mais velha, eu sempre ajudava a cuidar dos meus irmãos quando minha mãe, que se chama Cláudia, precisava sair de casa. Como ela era representante comercial de uma indústria farmacêutica, duas vezes por semana viajava para outra cidade, daí nesses dias o meu padrasto pegava a gente na escola.

Bom, a minha vida até os 14 anos era comum, pelo menos eu achava que era. Olhando como as minhas colegas do colégio viviam, imagino que a minha vida era muito parecida com a delas, tirando o fato de que eu era muito zoada por ser gorda.

Acordava todas as manhãs às 7 horas, tomava banho, colocava o uniforme e minha mãe levava a gente para o colégio. Nossa escola era grande, então meus irmãos, mesmo sendo pequenos, ficavam no berçário e no prézinho enquanto eu cursava o ensino fundamental, todos na mesma instituição. Depois, no fim do dia, mamãe voltava para nos buscar e me deixava em casa com os dois, enquanto eu esquentava o jantar no micro-ondas para dar pra eles e depois os colocava na cama, ela e Flávio iam para a academia.

Os dois são apaixonados por luta e faziam academia juntos. Pelo jeito, ir à academia juntos era algo muito especial para eles e essa paixão por exercícios e por luta os unia bastante.

Minha mãe e meu padrasto formavam um casal que parecia ser de artistas. Apesar de mamãe já ter tido três filhos, seu corpo era malhado, musculoso, ela parecia essas mulheres fitness do Instagram e meu padrasto também, era um homem muito musculoso, forte e alto. Eles formavam um casal muito bonito! Sempre que minha mãe me levava no colégio os porteiros e os outros pais ficavam olhando para ela, sempre que passeávamos no shopping aos finais de semana as pessoas olhavam o tempo inteiro para ela. 

Eu sempre fui gorda. Desde que me lembro, olhando pro meu corpo, desde sempre eu fui gorda. Não me sentia confortável nas praias, nas piscinas... As mulheres nas revistas, nos filmes e na mídia em geral não eram parecidas comigo, isso abalava minha autoestima. Não conseguia me imaginar bem sucedida, porque a gordofobia da sociedade me afetava muito sob vários aspectos. O bullying contra a menina gorda é constante e cruel.

Eu olhava para minha mãe desejando ter o corpo dela, admirando. Sempre que via mulheres magras usando as roupas da moda eu sentia um incômodo, porque sabia que era excluída. Hoje sei que preciso me amar do jeito que sou e que sou bonita a minha maneira, mas nem sempre eu tive essa autoestima. Encontrei blogueiras gordas maravilhosas e graças a elas estou aprendendo a montar meus looks e me sentindo mais incluída na moda.

Voltando para o ensino fundamental aos 14 anos, eu me sentia muito feia. Além disso, eu era muito zoada na escola por causa do meu nome Iolanda, diziam que eu era uma gorda com nome de vovó, em partes eles tinham razão porque minha mãe me deu o nome que era da minha avó.

Era mês de agosto e pela primeira vez mamãe iria fazer uma viagem longa, ia participar de um congresso sobre novos medicamentos que chegariam no mercado. Eu e meus irmãos estávamos tristes porque pela primeira vez ficaríamos tanto tempo longe dela. Mamãe era muito carinhosa com a gente.

Sempre que chegava tarde da academia, nós já estávamos dormindo. Eu colocava meus irmãos para dormir e depois ia dormir, sempre por volta das 21h. Minha mãe chegava da academia com meu padrasto às 23h e ia no quarto dos meus irmãos e depois no meu para dar um beijo. Ela sempre foi uma mãe muito especial, um mês longe dela parecia uma eternidade, uma loucura.

No dia que ela foi viajar, fomos todos com ela para o aeroporto, Flávio, meus irmãos e eu. Estávamos tristes porque ela ia viajar, mas ao mesmo tempo excitados. Irmos todos juntos no aeroporto fazia com que lembrássemos de viagens, de férias, parecia que íamos passear. No aeroporto jantamos juntos, eu e meus irmãos entramos em lojas, mamãe comprou presentes para nós, no fim, foi tudo muito divertido.

Minha mãe era uma representante comercial muito bem sucedida, ganhava muito bem, então morávamos bem, em um bom apartamento, estudávamos em escola particular, meus irmãos tinham todos os brinquedos que queriam, nossa vida era muito boa.

Meu padrasto era personal trainer, inclusive foi assim que ele e minha mãe se conheceram. Ele trabalhava na academia onde minha mãe malhava na época que era casada com meu pai. Eles se apaixonaram e tiveram um caso, quando meu pai descobriu, abandonou a minha mãe e ela se casou com o Flávio. Eu não sei quanto o Flávio ganhava, mas era nítido que mamãe ganhava muito mais e era ela quem bancava o nosso estilo de vida.

Logo na primeira semana sem a minha mãe, a nossa vida virou um inferno. O Flávio assumiu todas as atividades que eram dela, mas ele não tinha paciência para dar banho nos meus irmãos, esquecia de fazer nossa comida e levava os amigos todas as noites para casa. Então, quando ele voltava da academia tarde, ele levava os amigos e ficavam até 3, 4 horas da manhã conversando, bebendo, vendo filmes, fazendo barulho. Nossa rotina ficou cansativa e difícil.

Aos poucos comecei a assumir o lugar da minha mãe, comecei a dar banho nos meus irmãos, fazer a comida, também não sabia fazer comida, mas mamãe deixou um dinheiro comigo, então eu comprava miojo, salsicha e fazia essas comidas fáceis e rápidas. Flávio se alimentava praticamente de carnes e suplementos e eu e meus irmãos nos virávamos. Eu comprava tudo que eu podia cozinhar com as minhas limitações, às vezes eu pegava alguns vídeos no YouTube com receitas para tentar fazer, mas sempre queimava, dava tudo errado e nós acabávamos comendo sempre miojo e salsicha.

Eu colocava os meus irmãos pra dormir no horário de sempre e tentava proporcionar para eles uma rotina parecida com a que tínhamos com minha mãe. Quando ela entrava em contato pelo WhatsApp ou ligava para saber como estávamos, eu sempre dizia que estava tudo bem, que estávamos todos bem. Eu não queria que ela brigasse com Flávio, eles formavam um casal muito bonito e a última coisa que eu queria era estragar a felicidade da minha mãe. Foi muito difícil para mim crescer sem o meu pai e eu não queria que os meus irmãos crescessem sem o pai deles, então achei melhor não comentar nada do que acontecia na ausência dela para não atrapalhar o casamento deles.

Os amigos do Flávio eram muito bonitos, assim como ele também, todos atléticos pareciam que tinham saído de uma série de televisão. Como eu me achava feia, sempre ficava no quarto quando eles estavam em casa, espiava de longe rapidamente, ficava envergonhada, não queria que eles me vissem.

Até que um dia, eu estava com muita sede e resolvi ir até a cozinha. Passei rapidamente pelo corredor, no final ficava a porta da cozinha. Eu achei que estava segura, que nenhum deles iria me ver, mas quando cheguei na cozinha havia um amigo do Flávio, o Marcelo. Ele era um dos homens mais lindos que eu já vi, foi simpático, perguntou se eu estava bem. 

Ele passou a mão no meu cabelo e disse que era muito bonito. Foi a primeira vez que um homem colocou as mãos no meu cabelo e o elogiou. Meu cabelo é longo, cacheado e com muito volume. Eu sempre era zoada na escola também por causa do meu cabelo, ainda hoje estou aprendendo amar e cuidar dos meus fios. Logo, quando tocou meu cabelo e disse que era bonito, foi um momento mágico na minha vida, me senti muito especial.

Ele se apresentou, disse que se chamava Marcelo e enquanto acariciava meu cabelo e me deixava completamente hipnotizada, o Flávio entrou na cozinha e ficou muito bravo.

Chamou minha atenção e me xingou de puta, gorda, oferecida e mandou eu voltar para o quarto. Eu me senti humilhada na frente do Marcelo, comecei a chorar, os outros amigos do Flávio entraram na cozinha para saber o que estava acontecendo e eu estava lá toda despenteada, de camisola, humilhada na frente daqueles homens estranhos. Eu voltei para o quarto chorando e lá eu me tranquei.

No outro dia, Flávio estava muito mal-humorado, começou a me tratar mal, de maneira ríspida, não olhava no meu rosto e assim ficou por uns 4 dias.

Era uma sexta-feira à noite, meus irmãos já estavam dormindo e eu estava no meu quarto assistindo a reprise de Game of Thrones, comendo pipoca, trocando mensagens com umas amigas pelo WhatsApp.

Até que ouvi um barulho na sala, de coisas quebrando, fui até lá e era o Flávio. Ele estava completamente bêbado e não conseguia se equilibrar direito. Quando me viu, ele me chacoalhou, me pegou pelos braços e disse “Ah...sua puta, que eu sustento, você se ofereceu para o Marcelo, então, agora você será minha”. Naquele dia, Fábio me arrastou até o meu quarto, trancou a porta e me estuprou pela primeira vez.

Eu não conseguia reagir, ele foi tão violento e me deixou tão assustada. Colocou a mão na minha boca e disse que eu não deveria gritar, então não gritei. Fiquei muda durante o estupro, fiquei lá parada na cama do meu quarto, enquanto ele abusava de mim. Depois, ele se levantou, saiu do quarto e bateu a porta.

Eu chorei a noite inteira porque eu me senti muito culpada, achei que aquela situação com o Marcelo tinha sido culpa minha. Eu pensava “por que eu fui aquele dia na cozinha? Por que o deixei tocar no meu cabelo?” Na minha cabeça a violência do Flávio era uma punição que eu estava recebendo por conta da situação com o Marcelo.

Eu também tinha raiva de mim. Por que não gritei enquanto ele me abusava? Por que não reagi? 

Eu pensava “eu permiti que ele me violentasse, se eu não gritei, se eu não bati nele é porque eu permiti”. Na minha cabeça aquilo não tinha sido um estupro porque fiquei imóvel.

Hoje, eu sei que foi um estupro. Hoje, entendo que foi um estupro e com a ajuda de especialistas, entendi que muitas mulheres não conseguem reagir durante o estupro porque ficam em estado de choque. Eu estava em choque, fiquei paralisada involuntariamente, por isso não gritei, por isso não bati nele. Eu estava assustada e, por causa do choque, o meu corpo ficou totalmente imóvel.

Eu também achei que Flávio só tinha feito aquilo porque estava bêbado, que ele não faria aquilo em condições normais e continuei acreditando que ele era uma boa pessoa. Hoje, eu sei que ele não é uma boa pessoa, que o fato de um homem estar bêbado não justifica o estupro, um estupro jamais pode ser justificado. Mas quando aconteceu naquele dia eu realmente achei que ele só tinha feito aquilo porque estava bêbado.

No outro dia, como era sábado eu fiquei no quarto até uma hora da tarde, eu ouvia os meus irmãos correndo pela casa, o Flávio conversando com eles, mas eu não conseguia levantar da cama. Eu não conseguia olhar para os meus irmãos, eu estava me sentindo muito suja, diminuída e humilhada, como se eu não fosse um ser humano, como se eu não fosse digna de viver. Eu também não queria encarar o Flávio, eu era a vítima ali, mas mesmo sendo a vítima, eu tinha vergonha do Flávio, como se quem estivesse errada fosse eu. Como se eu tivesse permitido que ele fizesse aquilo comigo.

Até que o Flávio bateu na porta, entrou, ajoelhou ao lado da minha cama e me pediu desculpas. Ele me deu uma pílula do dia seguinte para tomar. Naquele sábado, Flávio foi gentil, doce e eu achei que era melhor esquecer o que tinha acontecido.

Mas, dois dias depois ele voltou a me tratar mal. Mais uma vez, quando ele chegou da academia, foi até meu quarto e o estupro se repetiu, mas dessa vez ele não estava bêbado. Eu sequer senti cheiro de álcool, ele sabia o que estava fazendo. Naquele dia, entendi que ele era um monstro. Ele me ameaçou, disse que se eu contasse para minha mãe que ele havia me estuprado, ele sumiria no mundo com os meus irmãos e eu sei que minha mãe não suportaria ficar longe dos meus irmãos.

Então, eu não contei para ela, não contei para ninguém e novamente me obrigou a tomar uma pílula do dia seguinte.

Na aula de Educação Física do colégio, eu comecei a sangrar no meio do jogo de futebol e senti uma cólica muito forte. Pedi ao professor para ir até a enfermaria, chegando lá não contei o que havia acontecido comigo, nem que tinha tomado duas pílulas do dia seguinte em um período tão curto de tempo. Eu não contei nada.

A enfermeira do colégio me deu um remédio para cólica e mandou eu ficar de repouso por algumas horas. Eu chorei muito, enquanto estava deitada na maca da enfermaria um filme terrível passava pela minha cabeça, revivendo cada momento daqueles estupros. A enfermeira sem entender nada chamou o professor de Educação Física pra conversar comigo.

Ele perguntou o que estava acontecendo, se eu precisava de ajuda. Eu apenas contei a ele que minha mãe estava viajando e que eu estava com muitas saudades. Depois desse dia, todas as vezes que eu encontrava com meu professor pelos corredores do colégio ou nas aulas, ele dava uma atenção especial para mim, conversava, e aquilo foi se tornando o único consolo que eu tinha naquele momento da minha vida.

Estava muito devastada por ter sido vítima de estupro dentro da minha própria casa, já não conseguia mais me concentrar nas aulas, não tinha mais vontade de brincar com os meus irmãos e ainda tinha que lidar diariamente com as grosserias do Flávio. Minha vida virou um inferno. Portanto, conversar com meu professor de educação física era a única coisa boa, conversávamos muito sobre os mais diversos assuntos, como música e séries da Netflix.

E eu pensava sempre que gostaria muito que aquele professor fosse meu pai e que ele pudesse me proteger. Aos poucos meu professor foi se tornando uma referência paterna para mim.

Era uma manhã de quarta-feira, eu estava muito animada porque eu sabia que minha mãe chegaria na parte da tarde e que nos buscaria no colégio.  Por algumas horas uma felicidade avassaladora tomou conta de mim porque veria a minha mãe, naquele dia eu fui tão radiante para a escola, mesmo vivendo tudo o que eu estava vivendo, fui sorridente, alegre, porque eu imaginava que com a chegada da minha mãe todo aquele inferno terminaria, que o Flávio nunca mais me faria mal e que aquele assunto se encerraria.

Eu estava decidida a não contar nada para ela para que o Flávio não fosse embora e levasse meus irmãos. Eu sabia que com a minha mãe lá ele não teria coragem de me estuprar novamente. Por mais que conviver com ele fosse algo ruim, eu imaginava que nunca mais eu seria estuprada porque minha mãe estaria ali.

Quando ela foi nos buscar na escola, eu e meus irmãos corremos em sua direção. Mamãe os abraçou sorridente, mas olhou para mim com desprezo e nem sequer me abraçou, apenas falou “Oi, filha”. Durante o caminho entre o colégio e a nossa casa, os meus irmãos brincaram, riram e ela conversava com eles, mas às vezes olhava para mim, que estava sentada no banco da frente, com desprezo. E eu ficava tentando imaginar porque minha mãe estava me tratando assim, o que estava acontecendo?

Quando chegamos em casa, ela levou meus irmãos na casa da vizinha para brincarem e disse que não iria para a academia naquele dia, pois queria conversar comigo.

Minha mãe me deu um tapa no rosto, o Flávio disse que eu dei em cima dele durante a viagem dela, que eu tentei seduzi-lo, que me declarei, disse que eu o amava. A minha mãe estava com tanta raiva, ela me chamava de traidora e me puxava pelo cabelo, cuspiu em mim e disse que eu não era mais sua filha. Falou que ia me mandar embora para morar com meu pai.

Eu tentei explicar que eu tinha sido vítima de um estupro, que ele tinha me estuprado duas vezes, mas ela não acreditou. Disse que isso tudo era uma grande invenção minha, que eu era maluca e estava tentando destruir o casamento dela porque estava apaixonada pelo seu marido. Nada do que eu falava sobre o Flávio ela acreditava, absolutamente nada.

Hoje, dois anos depois, eu moro com o meu pai em outro estado. Faz um ano que eu não falo com a minha mãe. Logo depois da nossa briga, no dia seguinte, ela comprou a passagem para eu vir morar com meu pai.

Ela me mandou para casa do meu pai. Então, faz dois anos que eu não a vejo, mas durante um ano ela ainda ligava para conversar comigo, para ter alguma notícia, mas já faz um ano que ela não liga mais. Às vezes em que eu tentei ligar, ela não me atendeu. Também faz dois anos que eu não vejo os meus irmãos.

Hoje eu faço terapia, participo de um grupo de apoio psicológico para adolescentes que têm dificuldade de socializar. Aqui, nesse grupo, eu encontrei o apoio de psicólogos, assistentes sociais e de outros jovens que sofreram violência, não necessariamente estupro, mas sofreram violência. Aqui, eu aprendi que o meu corpo gordo e que meu cabelo cacheado e cheio são bonitos. Ainda há muitas feridas em mim. Nem consigo me imaginar namorando, por exemplo.

Eu não vou desistir de ser feliz, eu estou estudando. Quando terminar o colégio, quero fazer faculdade e, em algum momento, quero voltar para ver os meus irmãos.

Agora, moro com meu pai, sua nova esposa e a filha dela do primeiro casamento. Papai se chama Mário, é atencioso, gentil, cuida muito bem de mim. Eu contei para ele o que tinha acontecido logo que cheguei. Meu pai tomou todas as medidas legais e Flávio foi acusado de estupro, mas minha mãe nunca acreditou e ela continua até hoje casada com ele e o apoiando. Sinto que meu pai se culpa por não ter estado perto para me defender.

Eu sou muito grata ao meu professor de Educação Física do colégio, mesmo que na época ele não soubesse que fui estuprada, no entanto sabia que alguma coisa estranha estava acontecendo comigo. Ele se aproximou, conversou, me apoiou. Ele foi muito importante naqueles dias terríveis que eu vivi. Foi o único apoio que eu tive!  Eu soube depois que minha mãe foi chamada na escola, mas como logo fui viver com meu pai, não sei o que a escola disse a minha mãe, mas com certeza o professor quis conversar sobre minha situação para entender o que se passava na minha casa.

Assim como Iolanda, adolescente de 16 anos, muitas meninas no Brasil têm relatos tristes de estupros que sofreram na infância, na pré-adolescência e na adolescência. Muitas dessas meninas se sentem culpadas por terem sido estupradas, por isso, é muito importante falarmos dessa questão, sobretudo nas escolas para que elas percebam que são vítimas e não provocadoras deste terrível crime.

Um levantamento recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP) aponta que mais da metade das mulheres vítimas de estupro, entre os anos de 2017 e 2018, eram meninas de até 13 anos. Segundo o mesmo estudo, houve também um aumento de 4,1% de casos de estupro de 2018 para 2017 (ano em que se contabilizou 63,2 mil crimes do gênero), considerando somente mulheres o aumento é de 5,4%. Nota-se que do total de pessoas que sofrem estupro, 81,8% são mulheres e destas 53,8% têm até 13 anos. Um crime considerado por lei como violação de vulnerável. O mesmo estudo destaca também que quando se amplia a faixa etária para 17 anos, chega-se ao número de 72% os registros desse tipo de violência em menores de idade.

Neste recorte, é triste constatar ainda que em 76% das ocasiões, o abusador é muito próximo da vítima, sendo um parente ou amigo da família, um enorme desafio para o enfrentamento dessa situação. Além disso, esse tipo de crime é pouco notificado para a polícia, o que torna mais difícil estimar a real extensão do problema. Em 2018, foram 66 mil registros de estupro em todo o país.

A instituição revela também um crescimento de feminicídios, que subiram 4% de 2017 para 2018, chegando a 1206 casos no país: mulheres negras e com menor escolarização estão entre as mais vulneráveis (61% das vítimas são negras e 38,5% são brancas, segundo o estudo. 71% delas frequentaram a escola até o ensino fundamental). Outro dado alarmante é com relação à idade média das mulheres assassinadas: a maioria tem em média 30 anos (28% tem de 29 a 30 anos e 30% entre 30 e 39). É sabido que os autores do crime em sua maioria são companheiros ou ex-companheiros e que esta violência ocorre, em geral, dentro de suas casas.

Outra pesquisa do Ministério da Saúde aponta dados parecidos e revela que 18% das vítimas de abusos sexuais são crianças de até 5 anos de idade. O recorte do órgão público destaca que a cada três vítimas de violência sexual uma é uma menina de 12 a 17 anos e que 72% dos casos acontecem com mulheres de até 17 anos. Em 2017, o governo federal aprovou a lei da Escuta Protetiva, cujo objetivo é a diminuição das vezes em que a criança tem que relatar o fato ocorrido para que não precise reviver com tanta frequência a experiência negativa, mas ainda é pouco conhecida e utilizada. Um outro dado preocupante é que das 12.101 pessoas assassinadas em 2017 no Brasil são de até 19 anos.

É preciso, cada vez mais, discutir o tema em todas as instâncias e incrementar políticas públicas de enfrentamento do problema, para que não só as vítimas tenham coragem de denunciar o agressor, mas que possam, especialmente, as meninas perceberem que são as vítimas. Além disso, é importante que a família consiga identificar alguns dos sinais, tais como: mudanças de comportamento como agressividade, ansiedade, pânico, comportamento sexual inadequado; mudanças de hábitos ou de rotina; queda no rendimento escolar, entre outros. Há diversas instituições as quais procurar, do Disque 100 a centros de referência de assistência social, de delegacias à conselhos tutelares, mas é preciso que todos tenham informações e apoio nesse processo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum