O ciclone, a vida e a humanidade

Em novo artigo, Andrea Caldas diz: “O risco que eu enfrento com a tempestade em Porto Alegre é incomensuravelmente menor do que os dos meus semelhantes, que estão nas ruas, nos barracos e nas casas precárias. Eles não escolheram essa vida”

Foto: Agência Brasil/Reprodução
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A Defesa Civil nos alerta que teremos um novo ciclone com tempestades, aqui em Porto Alegre. A orientação, compartilhada entre meus grupos de contato, é: carregue seu celular, antecipadamente, retire os aparelhos eletrodomésticos da tomada.

Já fiz tudo isso. Estou segura no meu apartamento, com mantimentos, cobertas e roupas. E as pessoas em situação de rua?

Não é proselitismo, não. Pode acreditar. Não é demagogia. É inevitável para mim.

Eu aprendi, em casa, desde cedo, a lembrar que minha situação de conforto não é universal. E nunca fomos ricos.

Quando a gente aprende a pensar assim, não tem muito como voltar atrás.

Cada comida desperdiçada, cada espaço atulhado no guarda-roupa, cada roupa esquecida em um canto, cada criança que a gente encontra na rua, cada pessoa sem comida não nos faz achar que essas pessoas escolheram esta vida.
Nem que fomos escolhidos por sermos os melhores e os mais merecedores (e há gente que responsabilize algum Deus por esta possível seleção entre vida e morte!).

Essas situações cotidianas nos fazem lembrar que o mundo é desigual e injusto. Que temos condições materiais - históricas e presentes - de prover a vida em sua plenitude para todos os seres humanos que habitam este planeta.

A humanidade conquistou, através dos avanços científicos e tecnológicos, a capacidade de garantir sustento e condições de vida a todos.

Há cálculos precisos nos dizendo que se todos nós trabalhássemos em torno de cinco horas, ou menos, haveria emprego para todos e capacidade produtiva para o mundo inteiro.

Por que isso não ocorre?

Porque a variável “mais valia” - aquela parte da rentabilidade que não é devolvida ao trabalhador, e que vai além dos custos da produção - justifica que esta equação entre vida e produtividade nunca feche.

Não trabalhamos para viver. Vivemos para manter um determinado tipo de produção. Que é injusta e desigual. Que se baseia na apropriação privada dos frutos do trabalho social.

Este sistema de produção não é o único possível. E, por consequência, a desigualdade não é um mal necessário.

Por isso, eu sei - e não me esqueço - que o risco que eu enfrento com a tempestade em Porto Alegre é incomensuravelmente menor do que os dos meus semelhantes, que estão nas ruas, nos barracos e nas casas precárias.

Eles não escolheram essa vida. O sistema determinou e os condenou.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum