VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Seguiremos vivas por uma onda verde latino-americana! – Por Monica Benicio

A autonomia sobre os corpos e vidas das mulheres é uma questão central nos feminismos. Não daremos nenhum passo atrás

Ocupação do Congresso Nacional pela vida de mulheres e meninas.Créditos: Arquivo Pessoal
Escrito en OPINIÃO el

Recentemente estive com mulheres de todo o Brasil na Ocupação do Congresso Nacional pela vida de mulheres e meninas, organizada pela Frente Nacional contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto e pela Frente Parlamentar Feminista Antirrracista. Mais um ato de resistência frente aos constantes ataques do governo de Jair Bolsonaro aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, em especial às tentativas de retrocesso no âmbito do aborto legal no país. Organizado também como uma reação aos casos de violação aos corpos e direitos das meninas e mulheres que vieram a público nas últimas semanas.

Os casos de uma menina de 11 anos que teve seu direito ao aborto legal negado pelo poder público e foi sequestrada pelo Estado, sendo afastada da guarda familiar para que não pudesse acessá-lo; e de Klara Castanho, que teve seu direito à privacidade violado após realizar a entrega voluntária do bebê, fruto de estupro, e foi acusada irresponsavelmente por abandono de incapaz, escancaram as tentativas de controle sobre nossos corpos e a dor de ser mulher nesta sociedade.

Dói porque sabemos que não são casos isolados, sabemos que poderia ser qualquer uma de nós. Dói porque revela que a violência de gênero é estrutural, reproduzida em todas as esferas: privada, pública e institucional. Dói porque sabemos que nem quando sofremos uma violência brutal, como a sexual, somos preservadas e acolhidas. É doloroso o nível de violência e truculência a que chegamos enquanto sociedade.

Embora com desfechos e condições muito diferentes, uma menina e uma mulher tiveram seus direitos violados após serem vítimas de violência sexual. Esses casos têm em comum a origem na violência sexual, a violação de direitos e o julgamento de meninas e mulheres, independentemente da decisão que tomaram diante de uma gravidez, mesmo quando é fruto de estupro.

Semana passada, mais uma notícia insuportável: uma mulher foi estuprada durante o seu trabalho de parto. Esse caso demonstra de forma dolorosa a hipocrisia de uma sociedade que prega a maternidade compulsória, mas que nos violenta até durante o parto. Que diz defender a vida, mas viola os direitos de gestantes e das crianças a todo momento.

Todos eles falam da dor de ser mulher nesta sociedade, onde a violação dos nossos corpos e direitos é cotidiana e em qualquer lugar. A falta de autonomia sobre nossos corpos é elemento estrutural do controle patriarcal. O poder exercido sobre os nossos corpos estrutura o domínio patriarcal e a construção da identidade social feminina. Os corpos das mulheres são sempre, como nos lembra Frederici, os alvos das técnicas de poder e das relações de poder.

Nas sociedades patriarcais precisamos estar em permanente vigilância sobre os nossos direitos. Seja para a efetivação de direitos já garantidos, como o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro ou entrega voluntária de uma criança para adoção, seja que não ocorram retrocessos, como aconteceu recentemente nos EUA, onde a recente decisão da corte norte-americana passou a negar os direitos reprodutivos enquanto um direito constitucional.

Por tudo isso, precisamos falar de aborto legal, seguro e gratuito! E denunciar que a negação do direito ao aborto é mais uma arma patriarcal de controle de nossos corpos e vidas. O patriarcado se estrutura no controle da reprodução porque controlar a reprodução é controlar a reprodução social da vida e os corpos das mulheres. E a moral patriarcal que persegue os corpos das meninas e das mulheres legitima as violências a que somos submetidas.

O aborto é uma intervenção de saúde comum e é seguro quando realizado através do método recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No mundo, seis em cada dez gestações indesejadas terminam em aborto induzido e, destes, 45% são realizados de forma insegura. E as mulheres pobres, negras e periferizadas são as que mais sofrem. De acordo com dados da OMS, 97% dos abortos inseguros ocorrem em países em desenvolvimento.

O aborto inseguro é uma causa relevante e evitável de mortalidade materna e pode levar a complicações de saúde física e mental e encargos sociais e financeiros para gestantes, comunidades e sistemas de saúde. A falta de acesso a cuidados de aborto seguros, oportunos, acessíveis e respeitosos é uma questão crítica de saúde pública e direitos humanos.

O aborto precisa ser posicionado enquanto o que é: uma intervenção de saúde que pode ser gerenciada de forma eficaz por uma ampla gama de profissionais de saúde usando tanto medicação quanto procedimento cirúrgico. No entanto, as barreiras institucionais, políticas e ideológicas para obter um aborto seguro, respeitoso e não discriminatório, coloca milhares de mulheres, meninas e todas as pessoas com capacidade de gestar em risco.

A inacessibilidade de cuidados de aborto de qualidade, de acordo com a OMS, viola uma série de direitos humanos de mulheres e meninas, incluindo o direito à vida. Ainda segundo a OMS, estima-se que complicações de saúde ocasionadas pela realização de abortos inseguros custam aos sistemas de saúde dos países em desenvolvimento US$ 553 milhões por ano para tratamentos pós-aborto.

Por outro lado, um estudo divulgado pelo Guttmacher Institute em 2020 demonstra que investimento em saúde pública faz muita diferença. O investimento de US$ 10,60 per capita anualmente em países em desenvolvimento poderia resultar na redução de 76 milhões de gestações indesejadas. Assim, cerca de 26 milhões de abortos inseguros seriam evitados. Nós mulheres e todas as pessoas com capacidade de gestar precisamos de políticas públicas e acolhimento e não de perseguição e julgamento moral. E todas as vezes que a sociedade criminaliza o aborto, a informação e o cuidado são negados a esses corpos.

Nós sabemos a partir de pesquisas científicas que restringir o acesso ao aborto não reduz o número de abortos. E que a proporção de abortos inseguros é significativamente maior nos países com leis de aborto altamente restritivas.

Nesse sentido, a recente decisão da corte dos EUA faz um alerta a todas e todos nós. O paradigma afirmado na decisão que agora é alterada pela corte dos EUA influenciou todo o mundo afirmando os direitos reprodutivos como um tema dos direitos fundamentais e protegendo esse direito pela carta constitucional. Essa mudança de paradigma em relação ao aborto nos EUA é resultado de anos de trabalho de grupos religiosos apoiados pelo partido republicano e consolidada na gestão misógina e violenta de Trump.

A atual decisão afirma que a questão do aborto extrapola o direito à privacidade e usa essa questão como alavanca política de outros interesses cada vez mais inflados pelos movimentos que se intitulam pró-vida. Nós feministas perguntamos: em prol da vida de quem? Tendo a certeza que não é das nossas.

Aqui no Brasil, o que segue acontecendo no governo Bolsonaro é a constante interferência do poder executivo no tema, principalmente a partir da atuação da ex-ministra Damares. É repugnante saber que, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 17 mil meninas, menores de 14 anos, foram mães em 2020. E é importante lembrar que sexo com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável pela legislação vigente e que a previsão legal para a interrupção de gravidez nesses casos está presente na legislação brasileira desde a década de 1940. Mais repugnante ainda a informação que a promotora Mirela Dutra Alberton, que obstaculizou o aborto legal da menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina e submeteu a criança à tortura psicológica, instaurou uma investigação para determinar a “causa que levou à morte do feto” após o procedimento realizado. Não há nenhum crime a ser averiguado, a não ser a postura da juíza diante de um caso como esse.

O autoritarismo dos patriarcas no poder sempre perseguiu as mulheres e as meninas e o legado autoritário de perseguição às mulheres e às políticas de gênero é amplificado no governo genocida de Bolsonaro. E pode ir além de sua gestão, como está acontecendo com o efeito Trump nos EUA.

Esse é mais um dos muitos motivos que temos para tirar Bolsonaro do poder em outubro. Precisamos derrotar esse governo e sua política de morte, perseguição às mulheres e desmonte de direitos. Mas nossa tarefa é ainda maior! É importante nos fazer maioria em todos os espaços. As decisões dos homens que ocupam os espaços de poder nos impactam diretamente. Hoje, apenas 15% das cadeiras da Câmara dos Deputados e cerca 18% das cadeiras do Senado são ocupadas por mulheres.

A onda verde latino-americana, que ampliou direitos e os debates públicos sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos e do aborto como uma questão de saúde pública deve nos inspirar a seguir. Apesar de todos os retrocessos e perseguições, esses debates também estão avançando no Brasil.  A prova do nosso avanço são nossos diversos atos de resistência frente às barbáries, como o que eu participei semana passada no Congresso Nacional, com parlamentares e ativistas de todo o Brasil comprometidas com as nossas vidas e os nossos direitos; como os das enfermeiras e técnicas de enfermagem que denunciaram o médico estuprador; como a mobilização e debate público em defesa dos direitos nos casos da maninha em Santa Catarina e de Klara Castanho.

A autonomia sobre os corpos e vidas das mulheres é uma questão central nos feminismos. Não daremos nenhum passo atrás. Que estejamos mais perto, não só geograficamente, mas também politicamente da Argentina e toda a América Latina, do que dos EUA. Que nossa onda verde latino-americana seja o maremoto que vai afundar o patriarcado e afogar o machismo libertando, enfim, todas as mulheres, e que nosso grito de ordem seja escutado em todos os cantos desse nosso continente. "Se cuida seu machista, América Latina vai ser toda feminista", porque sim, FEMINISMO É REVOLUÇÃO.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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