DÉFICIT E CENTRÃO

Reuniões do fim de semana aprofundam divisão entre PT e ala palaciana + Haddad - por Mauro Lopes

Encontro do Diretório Nacional do PT e Conferência Eleitoral no fim de semana em Brasília escancaram a divergência do partido 1) com as concessões seguidas ao Centrão e 2) com a política econômica de Fernando Haddad

Gleisi Hoffmann e Fernando Haddad na Conferência Eleitoral do PT.Créditos: Divulgação/PT
Escrito en OPINIÃO el

O fim de semana assistiu à explicitação inédita da divisão entre o PT e os ministros que despacham diariamente no Palácio do Planalto mais Fernando Haddad. A confrontação iniciou-se na sexta-feira (8) à tarde na reunião do Diretório Nacional do PT e chegou ao auge no sábado, com um confronto aberto entre a presidenta do partido, Gleisi Hoffmann, e o ministro da Fazenda, durante a Conferência Eleitoral PT 2024. São dois os temas em torno dos quais há conflito: a relação com o Centrão e a política de déficit zero da equipe econômica.

Os embates começaram na reunião de três horas do Diretório Nacional, na tarde de sexta, encerrada duas horas antes da abertura da Conferência. A reunião, presencial, foi aberta com exposições de Rui Costa e Alexandre Padilha, ambos apresentando a avaliação da performance do governo Lula. Falaram em seguida os líderes do governo e do partido na Câmara, José Guimarães (CE) e Zeca Dirceu (PR). Depois deles, Gleisi Hoffmann se manifestou e houve discursos de representantes das diversas tendências do partido, que apresentaram suas propostas de resolução (leia aqui). No site do PT não está a proposta da tendência Socialismo em Construção, mas você pode ler aqui.

Conversei com dois participantes do encontro que disseram ter sido a mais surpreendente reunião do Diretório Nacional em muito tempo, pela autonomia demonstrada pelos seguidos oradores depois de Costa, Padilha, Guimarães e Dirceu e por uma convergência grande em três grandes pontos: 1) a saudação aos avanços e vitórias obtidos pelo governo Lula a caminho de completar seu primeiro ano; 2) a crítica ao espaço que o Centrão ocupa no governo e sua relação privilegiada com o Planalto; 3) a crítica à política de déficit zero de recorte neoliberal da equipe econômica.

Depois dos debates, as seis resoluções apresentadas foram a voto. A mais votada foi a da CNB, corrente majoritária no partido, com 25 votos. As propostas das outras tendências tiveram a seguinte votação: Movimento PT, 8; Resistência Socialista, 7; Articulação de Esquerda, 6; Democracia Socialista, 5; Avante, 4; e Socialismo em Construção, 2. A soma da votação das propostas derrotadas foi superior à vitoriosa, 32 votos contra 25.

Foi uma votação inusualmente baixa para os padrões petistas. O Diretório Nacional do partido tem 94 integrantes e todos recebem passagem e estadia para garantir seu comparecimento às reuniões -e, no caso de o titular não poder comparecer, a mesma condição é oferecida a seu suplente. No entanto, houve apenas 57 votos, 37 a menos que o total esperado. Alguns dirigentes do PT interpretaram o quórum baixo -ausência de 40% do total de possíveis votantes- como indicativo de uma crise que está impregnando o partido, 43 anos depois de sua fundação e tendo eleito presidentes da República por cinco vezes desde o início do século.

Entretanto, o mais surpreendente no encontro talvez tenha sido o conteúdo da resolução vitoriosa, da corrente integrada, entre outros, por Lula e Gleisi Hoffmann, com duríssimas críticas a dois dos pilares do governo, a política econômica de Haddad e a política de alianças.

1.  A crítica foi direta e dura à política econômica conduzida por Haddad: “O Brasil precisa se libertar, urgentemente, da ditadura do BC ‘independente’ e do austericídio fiscal, ou não teremos como responder às necessidades do país”. Para que se tenha dimensão da contundência da crítica, nenhum dos textos apresentados pelas demais correntes do partido, em tese à esquerda da CNB, mencionou a expressão “austericídio”. O texto fez também uma pungente convocação para uma política voltada ao crescimento econômico em 2024.

2. Uma crítica direta ao Centrão: “As forças conservadoras e fisiológicas do chamado Centrão, fortalecido pela absurda norma do orçamento impositivo num regime presidencialista, exercem influência desmedida sobre o Legislativo e o Executivo, atrasando, constrangendo e até tentando deformar a agenda política vitoriosa na eleição presidencial”. O texto é uma reprovação in totum à maneira como os articuladores políticos do Planalto conduzem a política de alianças definida nas eleições, com concessões e subserviência ao “primeiro-ministro” Arthur Lira.

As críticas foram amplificadas por duas lideranças que representam, respectivamente, a ala mais à direita do partido e aquele que é a personificação da política de alianças com o Centrão: o deputado federal Washington Quaquá, que anda literalmente de braços dados com figuras como o general ex-ministro da Saúde de Bolsonaro e agora deputado federal Eduardo Pazuello, e José Guimarães. São indicações claras do isolamento de Fernando Haddad no partido e do receio da bancada parlamentar petista que 1) a condução da política econômica leve o PT a um desastre eleitoral em 2024 e 2) a política de concessões sem limites ao Centrão acabe por colocar o governo refém das alianças de Lira que, apesar dos acenos ao Planalto, não tem qualquer problema em aliar-se com a extrema direita para fustigar o governo -a interrogação é até onde poderá ir um Lira ainda mais empoderado contra os interesses do PT e das forças democráticas.

Quaquá, que integra o Diretório Nacional e a Executiva do PT, apresentou uma emenda à resolução aprovada na reunião de sexta que sugere a criação de um núcleo duro petista ao redor de Lula. “Eu sou o maior aliancista que tem no PT, mas aliança também tem limite”. Dissemina-se no partido a ideia de que a condução das articulações governamentais está deixando o país mais e mais à mercê de Lira e do Centrão.

José Guimarães é um defensor ferrenho da política de alianças sustentada pelo governo. O tema dele não é o mesmo de Quaquá, mas o cenário de derrota do PT nas eleições se a política contracionista de Haddad for mantida a ferro e fogo. Ele defende que o governo não se furte a abdicar do déficit nas contas públicas: “Se tiver que fazer déficit, nós vamos ter que fazer. Porque senão a gente não ganha eleição em 2024".

Durante o debate com Fernando Haddad, no sábado, na Conferência Eleitoral, Gleisi Hoffmann deu tintas dramáticas ao risco político que PT corre em caso de desaceleração da economia: "Gente, se cair a popularidade do presidente Lula, vocês não tem dúvida sobre o que o Congresso Nacional pode fazer. Fizeram com Dilma. Se acontecer qualquer problema, esse Congresso engole a gente".

Há diferenças e nuances nas posições críticas. Até mesmo no Planalto há dissonâncias. Rui Costa enfrentou Haddad quanto ao tema do déficit zero -e perdeu. No segundo e terceiro escalão na sede do governo há bolsões de resistência silenciosa e inconformismo tanto em relação à política econômica quanto às relações com o Centrão. 

A Conferência Eleitoral: Gleisi versus Haddad

Pouco depois da reunião do Diretório, houve a abertura da Conferência Eleitoral do partido. O momento culminante, como sempre, foi o discurso de Lula, diante de cerca de mil ativistas e líderes petistas. O presidente rasgou elogios a Gleisi Hoffmann, fez ponderações críticas à trajetória recente do PT e ressaltou mais uma vez a prioridade total dos investimentos governamentais: “Eu quero te dizer Gleisi, que aqui tá o Haddad, que aqui estão todos os ministros, e nós sabemos que a economia brasileira tem que crescer e nós sabemos que para ela crescer tem que ter investimento. E nós sabemos que há dois investimentos, o privado, quando a gente tem projeto; mas se não tem privado, a gente precisa ter investimento público para fazer a economia crescer”. Haddad, entretanto, não ouviu a diretriz presidencial; ficou apenas cinco minutos no palco e foi embora.

No sábado pela manhã, numa mesa da Conferência Eleitoral, a presidenta do PT e o ministro da Fazenda protagonizaram um duro embate público ao redor da política econômica, que se desdobrou neste domingo.

Cada um deles fez uma exposição inicial, seguida de perguntas e questões colocadas por algumas pessoas dentre os cerca de 300 militantes que acorreram à sala e mais uma rodada final de Gleisi e Haddad.

Haddad falou primeiro. Gleisi pontuou sem tergiversação em seu breve discurso: “Eu acho, sinceramente, e já tinha falado com Haddad e com o presidente [Lula], que a gente não devia se preocupar com o resultado fiscal do ano que vem, não tinha mesmo. Para mim, faria um déficit de 1%, de 2% [do PIB] […] Não podemos deixar a economia desaquecer. Não podemos ter contingenciamento no nosso Orçamento, nem de investimento, nem nos programas sociais. Isso que vai dar condição de a gente colocar a economia no eixo”;

"Gente, se cair a popularidade do presidente Lula, vocês não tem dúvida sobre o que o Congresso Nacional pode fazer. Fizeram com Dilma. Se acontecer qualquer problema, esse Congresso engole a gente" - Gleisi Hoffmann no debate com Haddad

Haddad ficou visivelmente incomodado com os questionamentos de Gleisi e passou o resto do evento de cenho franzido. Ao fazer a última intervenção da manhã, depois de responder a algumas indagações da plateia, voltou-se para a questão do déficit zero mencionada pela presidenta do partido. 

Começou a resposta com um argumento de autoridade, típico de embates entre homens machistas e mulheres: "isso é mais complicado do que se fala". E prosseguiu no mesmo tom, visivelmente contrariado: "As coisas não são automáticas. Nos oito anos de governo do presidente Lula, tivemos superávit primário de 2%. A economia cresceu 4%. Não é verdade que o déficit faz [a economia] crescer. De dez anos para cá, a gente teve R$ 1,7 trilhão de déficit. E a economia não cresceu. Não existe essa correspondência, não é assim que funciona a economia".

Toda a mídia conservadora repercutiu o embate e defendeu abertamente a posição conservadora de Haddad, despejando críticas sobre Gleisi Hoffmann.

No domingo, o deputado Lindbergh Farias saiu em defesa de Gleisi e disse que Haddad sofismou ao rebater a presidenta do PT com algo que ela não disse. “Não é verdade que déficit faz a economia crescer”, afirmou Haddad na véspera. Para Lindbergh, a afirmação é um “sofisma”. Ele continuou: “Esse não é o debate. De fato, déficits aparecem com mais frequência em momentos de desaceleração econômica. Agora é inquestionável que estímulos fiscais em situações de baixo crescimento como devemos enfrentar em 2024 tem sim um papel enorme no crescimento do PIB. Meta de déficit zero em 2024 pode levar a um contingenciamento de 53 bi em obras do PAC. Vamos cortar Minha Casa Minha Vida? Cortar investimentos públicos? Não é o déficit que gera crescimento. São os investimentos possibilitados, os empregos contratados que geram. Qual o problema de termos um déficit em 2024 para garantir investimentos e renda e impulsionar o CRESCIMENTO SIM da economia. O déficit dos EUA está em -5,5, França-3,3, Alemanha, -2,1”.

Foi um fim de semana que fez aflorar as tensões crescentes entre o PT e o núcleo político do Planalto, ao redor de Lula, e a política econômica de Haddad. No front político, aumenta a insatisfação com as concessões seguidas e cada vez mais amplas ao Centrão. No front da política econômica, Haddad isola-se cada vez mais diante de um PT que pressente derrota eleitoral certa em 2024 se a linha “austericida” (para usar a palavra da resolução do Diretório Nacional) for mantida.

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A presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, mandou-me uma breve nota com o seguinte registro: “A abordagem do artigo está incorreta. Ter posições diferentes e debater não é aprofundar divisão nem tão pouco fazer enfrentamento. Fizemos vários debates lá. É da gene do PT. E mesmo tendo algumas divergências, que deixamos claro para contribuição do processo, somos este governo e jamais faltaremos a ele ou a Lula”