RUMOS DO GOVERNO

Lula 3 pós-pesquisas: o fim do triunfalismo? Governo migrará à esquerda ou ainda mais para o centro? por Mauro Lopes

Qual será a reação do governo à queda nas pesquisas? A história do lulismo e de Lula 3 não autoriza esperanças de uma inflexão à esquerda.

Lula em reunião ministerial em 2023.Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O presidente Lula aparentemente fez ouvidos moucos ao círculo de ferro dos aduladores e interpretou a rodada de pesquisas aberta com a Quaest em 6 de março como um sinal amarelo no governo. Os governistas empedernidos atribuíram a queda ao apoio aos palestinos, minimizaram as questões-chave dos preços dos alimentos e da sensação geral de insegurança e sugeriram tocar tudo como dantes no quartel de Abrantes.

A pesquisa Quaest foi confirmada por todas que se seguiram, exceto pela da FSB -nem é preciso dizer qual pesquisa é contratada pelo Palácio do Planalto…

Lula, ao que tudo indica, reagiu à evidência de que a insatisfação grassa na população e que a aguda percepção sobre o aumento nos preços, especialmente dos alimentos, deveria ser escutada, em vez de ignorada. O presidente promoveu reuniões com ministros para tratar dos preços dos alimentos e, de surpresa, convocou todo o ministério para um encontro na próxima segunda (18) no Palácio do Planalto. A reunião promete ser tensa.

Mas pode-se esperar uma virada, uma fase 2 de Lula 3?

Até agora, o governo Lula vem pautando-se pelo posicionamento político que se tornou o slogan do primeiro ano: União e Reconstrução. Foi um ano de: 1) “unir o Brasil” a partir de um diagnóstico segundo o qual o povo brasileiro estaria cansado da polarização dos últimos anos e 2) retomar os programas abandonados ou fragilizados pela sequência Temer/Bolsonaro. A par disso, tratou-se de colocar de pé o arcabouço fiscal de Haddad-Lula.

União

Antes de iniciado o governo, houve um embate com os segmentos à esquerda no PT e fora dele que consideravam a política e o slogan equivocados, por apontar para uma pretensa “união” descabida que empurraria o governo mais e mais à direita. A esquerda propôs outro posicionamento e slogan: Reconstrução e Transformação. Ou seja, para além de atualizar o passado, seguir adiante com um governo efetivamente progressista. Lula e o comando do governo desprezaram a opinião da esquerda que nunca mais foi ouvida depois da posse. 

2023 passou e o governo foi tomado de tal oba-oba, triunfalismo e soberba com índices de popularidade ilusórios e que o chefe da Secom, Paulo Pimenta, anunciou sonoramente no fim do ano que para 2024 o tema da “reconstrução” seria descartado por já realizado e que a palavra de ordem do governo seria apenas União. Na versão planaltina, o imenso sucesso de 2023 e do início de 2024 levaria Lula às portas de um governo de união nacional e moderação. 

Esta visão triunfalista fez o governo e o coro dos contentes embarcar na fraude do “Pibão do Lula” por conta de um crescimento entre medíocre e bom de 2,9% do PIB. Oras, o crescimento de 2022, último ano de Bolsonaro, havia sido um tracinho acima, de 3% - teria sido também um “Pibão”? Mas resolveu-se espalhar aos quatro ventos o “Pibão do Lula”, como se tal ufanismo fosse capaz de convencer a sociedade. Aí vieram as pesquisas…

Importante: aqui não se trata de “comunicação”. Há uma visão equivocada que atribui à comunicação do governo a responsabilidade pela crise atual. A comunicação tem problemas? Obviamente, sim. Mas ela é a porta de saída da política em geral e da política econômica em particular, da postura, das alianças e decisões estratégicas e táticas do governo. Não há comunicação que faça milagre.

O “x” da questão no governo Lula não é a comunicação, como não são os palestinos. 

A dúvida é: a trombada deste primeiro trimestre terá sido suficiente para mudar a rota do governo?

A julgar pelo que vazaram os ministros e assessores palacianos (o  círculo de ferro dos aduladores) para o Valor Econômico nesta quinta, não haverá mudanças.

A conversa é a mesma: está tudo ótimo, inflação sob controle, emprego em alta, economia pujante, programas maravilhosos. E a questão dos preços dos alimentos? “Sazonal”. De fato, há um fator de sazonalidade na alta dos alimentos. Será que o governo imagina mesmo que a insatisfação evidente nas pesquisas vai passar em abril por conta da contenção da alta nos alimentos? Segundo o jornalista Fabio Murakawa, “mais de uma fonte diz que o governo ainda tenta entender ‘o que aconteceu’”. Pois é. 

Por conta disso, o grupo do Planalto garante que a reunião ministerial de segunda, convocada às pressas por Lula, será meramente um encontro de “amarração”, nos moldes do realizado em pelo menos três ocasiões no ano passado e que servirá apenas para Lula incentivar seus ministros a “colocar a agenda positiva na rua”.

A esquerda e os trabalhadores de aplicativos

Duas crises das últimas semanas ecoam a orientação geral do governo Lula 3, uma radicalização do que já havia pautado os dois governos anteriores, mas num cenário global e nacional muito muito distintos.

Antes das crises, para explicar sua gênese, a busca da “União” tem como parceiros pretendidos o 1) grande capital em geral, com destaque para o financismo, o agronegócio e as indústrias extrativistas; 2) a direita “tradicional”, hoje representada pelo Centrão, mas com acenos até para as franjas do bolsonarismo; 3) os militares.

Como se v??, nem a esquerda nem os trabalhadores são tema central na  “União”. Talvez porque o presidente e a cúpula do governo considerem que uma e outros já estariam automaticamente aderidos ao projeto lulista.

Mas será assim?

Depois do desprezo e mesmo hostilização à esquerda, o presidente Lula talvez tenha passado dos limites e rompido uma linha histórica.

Primeiro, Lula, em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, afirmou que prefere não ficar remoendo as consequências do golpe de 1964 porque isso "faz parte do passado" e quer "tocar o país para frente". Foi um choque para a esquerda em geral e em particular para as famílias de torturados, mortos e desaparecidos da ditadura. Estas famílias e largas fatias da esquerda já haviam manifestado inconformismo com o descumprimento da promessa de Lula de reinstalar a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), adiada há mais de um ano por suposta pressão militar.

A gota d 'água veio com o veto de Lula a qualquer ato do governo em memória dos 60 anos do golpe de 1964 e de suas vítimas. Quem lutou contra a ditadura, quem conhece a história do país tomou-se de funda indignação. Nunca pensei que ouviria ou leria palavras tão fortes dirigidas a Lula na esquerda brasileira. Numa pungente entrevista ao ICL nesta terça (12), Suzana Lisboa manifestou “ indignação pelo absurdo que ele fez” e afirmou: “nunca imaginei que Lula chegaria tão baixo”. Suzana foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), viveu na clandestinidade entre 1969 e 1978; seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, desapareceu em 1972 e eram dele os primeiros restos mortais de vítimas da ditadura localizados e identificados no cemitério de Perus, em São Paulo. Ela e as demais famílias sentiram-se traídas e usadas por Lula: “as Avós da Praça de Maio e os familiares de presos e desaparecidos do Uruguai não teriam recebido Lula com tanto carinho se soubessem o que ele faria aqui no Brasil” -o encontro em Buenos Aires aconteceu em janeiro de 2023, veja aqui. Como presidente da República, sublinhou Suzana Lisboa, Lula “deveria ter assumido a responsabilidade de chefe de Estado pelos torturados, mortos e desaparecidos". A sociedade brasileira tem o direito de saber e o Estado brasileiro tem obrigação de revelar. Pessoas deram suas vidas para que Lula chegasse à presidência e ele vira as costas a elas”.

As declarações e gestos de Lula trincaram sua relação com amplos segmentos da esquerda brasileira. Antes, só o MST tinha feito criticas diretas e duras ao governo, denunciando que nenhuma desapropriação foi feita até agora.

Quanto aos trabalhadores, vale a pena acompanhar o que está acontecendo com o Projeto de Lei de Regulamentação do Trabalho por Aplicativos de Transporte de Pessoas lançado por Lula em 4 de março. Há divergências na esquerda na análise do projeto: há quem o considere um grande avanço e que o enxergue como um desastre. Aqui não há espaço para este debate de mérito. O que importa é notar a dessintonia entre o governo e o universo dos motoristas de plataformas de aplicativos. Os primeiros sinais indicam uma rejeição em massa dos trabalhadores ao projeto. Basta entrar num carro com motoristas desses aplicativos (Uber, 99 ou outros) para constatar que eles consideram viver melhor agora do que antes. O entendimento é que o governo com o projeto mexe no que eles acham que tá bom e traz de volta aquilo que repelem, a CLT e as relações de trabalho abjetas que mantinham antes. As condições com o Uber ou 99 são abjetas? São. Mas os trabalhadores parecem não sentir assim. Temos risco de, por conta de um projeto feito em acordo com as plataformas, ter um levante dos motoristas contra o PL nas ruas das principais cidades do país. Com o estímulo do bolsonarismo, as mobilizações podem levar a uma derrota dura no Congresso. 

O governo Lula corre o risco de passar à história como aquele que liquidou a CLT e a jornada de trabalho de 8 horas. Além do risco adicional de o governo ter criado uma nova modalidade de contratação de trabalhadores – os trabalhadores de plataformas – que podem ser contratados por qualquer empresa sem nenhum vínculo trabalhista. Basta a empresa se declarar plataforma.

A ideia da conciliação vem de longe

Por fim, vale o registro. A ideia de “união” e conciliação é anterior a Lula 3. Estava presente já na campanha eleitoral. Quando Edinho Silva, ao lado de Rui Falcão, assumiu a coordenação da comunicação da campanha de Lula, em maio de 2022, a política da conciliação e da fuga ao embate estabeleceu-se -cumpre registrar que foi Edinho quem deu o tom da comunicação.  

A partir de então, Edinho passou a abrandar a contundência da campanha. “Faremos uma campanha propositiva, sem ataques de baixo nível” anunciou ele em diversas entrevistas. Em vez do embate com o Bolsonaro e a extrema direita e seus projetos para o país, a campanha de Lula pautou-se por um projeto genérico de “união nacional” e retomada dos programas dos governos do PT. 

O mesmo Edinho, registre-se, foi, ao lado de Jaques Wagner e outros, um dos responsáveis pela política de “união” e concessões logo no início do segundo governo Dilma. Edinho Silva foi chefe da Secom no segundo governo Dilma e Wagner chefe da Casa Civil. Apoiaram a indicação de Joaquim Levy para a Fazenda, quando implementou-se uma política econômica não muito diferente da de Haddad, com perfil fiscalista. A tese era a mesma: se fizerem-se concessões ao grande capital, especialmente o financeiro, à direita tradicional e aos militares haverá estabilidade. Viu-se no que deu. Ali, vale a menção, havia o dedo de Lula. Lula de fato não indicou Levy para a Fazenda. Pior: indicou o chefe dele, Luiz Carlos Trabuco, então presidente do Bradesco. Trabuco recusou o convite e indicou Levy.

O que se viu até agora no governo Lula, portanto, é o seguimento e a radicalização de uma política que conforma o lulismo há pelo menos duas décadas.

No Palácio, o que se ouve depois das pesquisas é que em vez de mudança de rumos, o governo deve aprofundar ainda mais a política atual e adernar à direita, com mais acordos com o  grande capital, com o Centrão e os militares. Nos desvãos da “grande política de união”, concessões aos trabalhadores, às mulheres, à juventude preta periférica, aos povos indígenas. Quanto à esquerda, deverá ser mantida à distância.