“Fala de bicho, fala de gente – Cantigas de Ninar do povo indígena”, uma obra inesquecível e imprescindível

Uma viagem que, acima de nos fazer compreender o povo Juruna e seus cantos, nos faz questionar e entender a nós mesmos e o nosso papel no planeta

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É um trabalho primoroso e imprescindível. Daquelas coisas que só se faz debaixo de muita paixão e também a atenção de alguém para produzir. Pois foi assim, através das edições SESC que a linguista e musicista Cristina Martins Fargetti, com participação da compositora, cantora e pesquisadora da cultura indígena brasileira Marlui Miranda, conseguiu realizar o livro “Fala de bicho, fala de gente – Cantigas de Ninar do povo indígena”. Resultado de uma grande e inédita pesquisa sobre o povo Tupi da família Juruna, que vive no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, o livro vem acompanhado de um disco, onde os próprios indígenas entoam as suas cantigas. Todo o trabalho é resultado da percepção dos próprios Juruna de que este tipo de cantiga estava desaparecendo. A partir das oficinas que geraram a ideia do livro, eles conseguiram recuperar os cantos que, segundo eles, voltaram a ser entoados na aldeia. O levantamento extremamente minucioso, começa com um apanhado da vida e trajetória dos Juruna, um estudo breve sobre linguística, a fala com os seus significandos, as formas de expressão. Logo a seguir, o livro traz um estudo sobre as canções de ninar e o seu papel em várias civilizações mundo afora. Na segunda parte, o livro entra nas canções propriamente ditas. Daí em diante, entramos em um mundo ao mesmo tempo completamente estranho e também com várias particularidades e semelhanças. Cada letra de cada canção é ilustrada e acompanhada de uma sugestão de tradução. Nestas traduções, acompanhamos toda a riqueza cultural, os hábitos, o dia a dia, as disputas, enfim toda a maneira de viver e pensar dos Juruna. Logo a seguir, através de um amplo estudo musical, onde tanto o leigo quanto o músico mais experiente podem acompanhar através de partituras, formas e estruturas musicais, há uma exposição em detalhes do que a autora chama da “ecologia sonora nas cantigas de ninar Juruna”. A partir disto, entramos nas partituras das cantigas propriamente ditas, acompanhadas nota a nota das letras, de seus fonemas. A tentativa da transcrição, sobretudo rítmica, é acompanhada muitas vezes por duas partes paralelas, onde uma decifra melodia e canto e a outra a parte percussiva. A qualquer um que leia ou entenda um pouco de notação musical, se tem, diante do pentagrama a noção exata do mundo absolutamente novo que se abre através dessas cantigas. Ao final, depois de tudo, inclusive a conclusão que revela inúmeras surpresas a respeito, tanto da vida dos Juruna quanto a dos humanos e bichos em todas as partes do planetas, temos o disco com as gravações. Um universo se abre em movimentos sutis e, num primeiro momento, muito estranhos, mas que são perfeitamente traduzidos pelas autoras. Para completar tudo, vale mencionar a beleza da obra, com um formato um pouco mais amplo, o que dá uma visão mais clara da diagramação, fotos, cores e texto. Uma viagem inesquecível que, acima de nos fazer compreender o povo Juruna e seus cantos, nos faz questionar e entender a nós mesmos e o nosso papel no planeta.