Leonardo Aragão: A eleição de Bolsonaro e a reconfiguração do conceito de opinião pública

Ao observarmos que 57 milhões de brasileiros fizeram a escolha de considerar aceitáveis os muitos absurdos e incitações criminosas ditas por Bolsonaro em sua vida pública, qualquer desafio de resistência a ele passará por entender o fenômeno de sua ascensão

Escrito en POLÍTICA el
[caption id="attachment_144011" align="alignnone" width="640"] Foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados[/caption] Por Leonardo Aragão* A eleição de Jair Bolsonaro para ser o 38º oitavo presidente do Brasil é dotada de um efeito simbólico muito poderoso e que confirma o avanço de políticos e programas de governo de extrema direita no espectro político mundial. A posse do capitão reformado do Exército marcará a primeira ocasião em que um candidato, cuja atuação histórica foi calcada na defesa aberta de valores antidemocráticos, exaltação da figura de torturadores e pela redução de direitos da população, em especial as minorias e, ainda assim, saiu vencedor pela via das urnas em um processo eleitoral considerado limpo por observadores internacionais. Apesar da vitória de Bolsonaro dentro das regras do jogo eleitoral, seria impossível ao candidato do PSL chegar ao Palácio do Planalto sem cultivar, por anos, ao menos desde 2015, uma miríade de seguidores e páginas que replicaram diariamente conteúdos ofensivos e em sua maioria mentirosos sobre a esquerda e em especial o PT, necessários para a estratégia de promover uma cruzada moral de valores de “respeito à família”, com fortes matizes oriundos das religiões neopentecostais. No entanto, temos que reconhecer o alcance de sua mensagem junto à população, sobretudo às pessoas que não estão organizadas em partidos políticos, movimentos sociais e grupos de base. Há pelo menos três anos, no submundo da Internet, o slogan “Jair Bolsonaro 2018” se expandia em uma pré-campanha eleitoral antecipada e calcada em três eixos: a necessidade de endurecer o combate ao crime a partir da demonização do conceito de defesa dos Direitos Humanos, classificando seus ativistas como agentes em prol dos interesses exclusivos de criminosos; a defesa do formato de “família tradicional” e a associação à esquerda de iniciativas supostamente contrárias a este dogma, e a proliferação de conteúdos atacando e menosprezando as minorias, como povos indígenas, quilombolas e LGBTIs, além de condenar políticas públicas voltadas às maiorias representadas por mulheres em geral, negras e negros, alegando que todos estes possuem direitos demais e adotando o argumento fascista de que “somos todos um só”, eliminando diferenças e especificidades. Passados nove dias do resultado eleitoral, muito do que foi prometido pelo então candidato Bolsonaro está sendo anunciado: fusão de ministérios, a mudança da sede da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, sintonizando o país com a política externa praticada por Donald Trump, o apoio a uma versão ainda pior da Reforma da Previdência na comparação com a de Michel Temer, a tentativa de implementar o projeto “Escola Sem Partido” e a nomeação de Sérgio Moro para o superministério da Justiça. Talvez o que nos deixe mais atônitos em todo esse processo é o apoio irrestrito de seus eleitores a todas essas medidas, de forma irreflexiva e automática, e qualquer crítica sempre é classificada como “choro de perdedor”, “papo de petista” ou “discurso de quem torce contra o país”. Esse pensamento dominante é fruto justamente desses três anos de ação nas redes sociais, em especial o aplicativo WhatsApp, de disseminação de valores antidemocráticos e ultraconservadores. Por estarmos conectados aos modelos tradicionais de organização política, não conseguimos compreender a velocidade e grau de espalhamento de notícias falsas. Quando a campanha oficial começou, esse movimento estava tão forte que boa parte dos votos no então líder das pesquisas estava consolidado, o que lhe deu esperanças de vencer a eleição já no primeiro turno. O presidente eleito, ao menos em sua retórica durante o segundo turno e na primeira semana após sua vitória, promoveu uma ruptura inédita entre os presidentes a partir da redemocratização, ao ignorar e até mesmo incitar ataques a alguns veículos de comunicação tradicionais, que sempre deram sustentação indireta aos mandatários de viés neoliberal, como Collor e Fernando Henrique Cardoso. Sua militância apaixonada ataca a Globo e a Folha com tanta ou até maior paixão que os petistas indignados com anos de cobertura parcial e enviesada dos governos do partido. Bolsonaro não está preocupado com o que a opinião pública representada pelos meios de comunicação de massa no Brasil pensa ou publica a seu respeito. Suas ações autoritárias e medidas cosméticas, de apelo político, mas incapazes de resolver grandes questões que assolam o Estado brasileiro, como a redução de ministérios e cargos comissionados, que na prática significam pouca redução de gastos e trazem o risco de inviabilização da gestão administrativa e técnica de ministérios se feita sem critérios, ou a nomeação de um juiz endeusado por amplos setores da sociedade, são calculadas e querem causar exatamente o sentimento que provocam, seja entre os que o adulam, como junto aos seus opositores. Essa será a tática do capitão: eliminar intermediários e promover uma comunicação direta com seu séquito, reconfigurando o conceito de opinião pública tal qual conhecemos hoje, minimizando o papel de instituições como a imprensa, organizações sociais, entidades de classe, o Congresso e movimentos sociais. As iniciativas anunciadas até a posse serão sob medida para agradar ao público ávido por autoridade e o “fim do esquerdismo”. Portanto, ao observarmos que 57 milhões de brasileiros fizeram a escolha de considerar aceitáveis os muitos absurdos e incitações criminosas ditas por Bolsonaro em sua vida pública, qualquer desafio de resistência a ele passará por entender o fenômeno de sua ascensão, dissecá-lo e construir mecanismos de romper as bolhas de informação, à esquerda e à direita, e retomar a construção de consensos e mediações para conter o fluxo direcionado e sem intermediários que o próximo presidente adota, de interdição da opinião pública e do debate democrático. *Leonardo Aragão é jornalista graduado pela PUC-SP e especialista em gestão pública pela Unicamp. Foi assessor para a Participação Social no governo da presidenta Dilma Rousseff