Lula: "nós não podemos achar que podemos derrubar um presidente porque não gostamos dele"

"Eu tenho alertado o PT ter paciência, porque nós temos que esperar 4 anos", disse o ex-presidente em entrevista, onde falou sobre os caminhos da esquerda, seus processos e fez uma análise do atual momento

O ex-presidente Lula - Foto: Reprodução/TVT
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Lula iniciou, no último sábado (29), uma viagem pela Europa, onde se reunirá com líderes sindicais, políticos e religosos e atores sociais, além de receber o título de cidadão honorário de Paris. Ele deu uma entrevista ao jornal suíco Le Temps onde falou sobre os desafios da esquerda, a perseguição que sofreu em seu processo e sobre a possibilidade de impeachment de Jair Bolsonaro.

"Eu tenho alertado o PT ter paciência, porque nós temos que esperar 4 anos", disse. "A não ser que ele cometa um ato de insanidade, cometa um crime de responsabilidade, a gente então possa fazer o impeachment dele, mas se não fizer isso, nós não podemos achar que nós podemos derrubar um presidente porque não gostamos dele. Não podemos", firmou o ex-presidente.

Leia trechos da entrevista:

O senhor levou seu caso ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Isso é um sinal de que não confia nas instituições brasileiras?

Não é apenas desconfiança, é a certeza que os meus advogados tiveram durante todo o processo de que não havia um julgamento, havia quase que um massacre de mentiras dos processos contra o Lula. Eu tive oportunidade de quando prestei depoimento ao (então juiz Sérgio) Moro dizer, olha, vocês estão obrigados a me condenarem porque foram tão longe com as mentiras que não tem rota de fuga, você não tem como sair disso. Esse pacto que foi criado entre o Moro, a grande imprensa brasileira, porque ele visitou todas as redações para dizer às pessoas que a Operação Mãos Limpas dele só ia dar certo se a imprensa condenasse as pessoas antes, porque depois que a imprensa condena fica muito fácil qualquer um dar a sentença porque é um julgamento com base na formação negativa da opinião pública, e um juiz não pode se valer da opinião pública, um juiz tem como condição sine qua non para fazer um julgamento justo as provas e os autos do processo.

Mas o sr. foi condenado em diferentes instâncias e as investigações continuam. Ainda assim, acha que a ONU precisa lidar com seu caso?

A impressão que eu tenho é que foi montada uma quadrilha para transformar um inocente num chefe de quadrilha. Para a minha condenação o procurador utilizou um power point que não dizia nada com nada- Ficou uma hora e meia apresentando o power point. Depois do power point, depois de dizer que era uma formação de quadrilha ele diz: não me peçam provar, eu só tenho convicção. Só por isso ele deveria ter sido exonerado, a bem do serviço público. Não, não foi. Eu imaginei que o Moro que apresentava-se na imprensa como uma pessoa justa, séria, fosse recusar a acusação. Não. Não só aceitou como me condenou por um crime chamado fato indeterminável.

Mais recentemente a justiça federal do Brasília anulou a acusação de formação de quadrilha, o chamado quadrilhão. Ora, quando a justiça federal anula o quadrilhão era pra ter caído a questão do power point. É por isso que nós estamos reivindicando no Tribunal Superior Federal a anulação das decisões contra mim. E por isso que os meus advogados brigaram e vão continuar brigando, porque eu tenho convicção absoluta de que nós temos compromisso com esse país de fazer com que a verdade prevaleça. Esse país não pode, no século XXI, ser vítima da mentira da Lava Jato.

Qual a mensagem que o senhor vai levar para a Europa?

Eu vou falar das desigualdades e de mostrar o que acontece neste momento com a democracia brasileira. Eu vou te contar uma coisa, eu cometi um erro muito grave no Brasil, isso aos olhos da elite brasileira, que foi permitir que os pobres conquistassem um mínimo de cidadania, e por isso eles não perdoam e por isso esse processo todo de perseguição.

Em vários países na Europa a gente tem uma extrema direita ganhando um lugar impensável há poucos anos. O que aconteceu com as esquerdas?

A Europa conquistou um estado de bem-estar social, e esse é um defeito nosso da esquerda, ou seja, a luta não pode ser apenas economicista, porque quando você conquista o estado de bem-estar social você pensa que tá tudo resolvido, mas não está tudo resolvido, tem outros temas novos que aparecem e que a esquerda tem que se preparar.

Quais?

Vamos pegar a questão ambiental, por exemplo, é um assunto latente hoje na sociedade, sobretudo na juventude. Pensamos que estamos avançando na questão ambiental, mas os Estados Unidos até hoje não assinou o Protocolo de Kyoto e faz pressão para que os países europeus que assinaram saiam do Protocolo de Kyoto. A Europa decidiu que até 2020 todo combustível dela iria ter 20% de biodiesel. Cadê? Desapareceu.

É preciso abrir um debate na sociedade, sobretudo na juventude. Entrar no lado mais profundo de pensamento da juventude e deixar essa meninada falar.

Outro exemplo: a imigração e a questão dos pobres que estão saindo da África, do Oriente Médio, do mundo árabe para ir para Europa. A questão da migração é um assunto muito difícil para esquerda e muito fácil pra direito. A esquerda fica tentando te explicar, não, porque é preciso a gente deixar entrar aqui o cara não sei das contas, tal. A direita é direta, não vai entrar porque nós queremos empregos para os italianos, porque nós queremos emprego para os suíços, porque nós queremos emprego. Então, marginaliza o coitado do pobre enquanto o capital não tem nem passaporte, o capital é livre pra transitar os atlânticos, os espaços aéreos sem ninguém pedir licença.

Ainda no começo de 2009, em que a gente tinha uma preocupação muito muito cara pra mim, a questão do emprego e a questão do protecionismo. Era preciso não permitir que houvesse protecionismo, e era preciso que a gente utilizasse um momento em que o mundo rico não estava consumindo para que a gente utilizasse o dinheiro e financiasse o desenvolvimento dos países pobres. Essa era a minha preocupação tanto em Petersburgo quanto em Londres. O que é que aconteceu? Passados todos esses anos, até hoje já se gastou 25 trilhões de dólares para tentar resolver a questão da crise financeira, já se quebrou países, já se quebrou a Grécia e não resolveu o problema da crise financeira. Foi tudo aprovado e nada cumprido.

Mas como é que essa crise e seus efeitos não ajudaram a esquerda?

Pois é. Eu lembro de conversas que eu tive com o companheiro José Luis Zapatero e José Sócrates tentando mostrar pra eles que era preciso que eles não assumissem em momento algum responsabilidade pela crise. Eu falei para o Gordon Brown: eu queria lhe pedir um favor, leve para os seus amigos lá a seguinte certeza, essa crise não foi causada pelos pobres do mundo, essa crise não foi causada pelos negros, essa crise não foi causada pelos latino-americanos nem pelos índios, essa crise é obra dos olhos verdes europeus e americanos, não tem problema nosso aqui nessa... Bem, então eu acho que a esquerda perdeu o discurso, sabe. Vamos pegar o nosso companheiro que ganhou as eleições na Grécia (Tsipras). O companheiro ganha a eleição com uma boa ideia, com um bom discurso, o que é que aconteceu? O que é que aconteceu? A elite europeia estava mais preocupada em resolver o problema dos bancos franceses do que resolver o problema do povo da Grécia.

Angela Merkel, que até é uma mulher que eu tenho respeito por ela, ela preferia chamar a Europa inteira de vagabunda, ela têm muitas férias, trabalham pouco. Então eu acho que a esquerda perdeu o discurso. Nós perdemos o discurso e em alguns lugares começou a se usar a palavra ajuste fiscal e o estado é muito pesado, é preciso abrir o estado. E o estado ao invés de se transformar numa coisa cada vez mais forte, pública, se transformou cada vez mais numa coisa mais fraca privada. Então eu acho que a esquerda tem que reconstruir o seu discurso, e por isso que eu estou botando a questão da desigualdade como um tema prioritário.

Na América do Sul, o que fazer com a situação da Venezuela? A alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, coloca também a responsabilidade no governo Maduro pela crise.

Eu li o relatório da Bachelet. Mas antes de falar do governo Maduro eu vou dizer da Venezuela. Em janeiro de 2003, eu estava no Equador. Lá estava o Chávez, Fidel Castro, estavam todos os governantes. E o Chávez já tava em crise com a oposição dele. Eu me reuni com o Chávez no meu quarto e propus ao Chávez que era importante a gente criar uma coisa chamada grupo de amigos da Venezuela, para discutir a democracia na Venezuela, pra conversar com o Chávez e conversar com a oposição do Chávez. Nós sugerimos, eu e o Celso Amorim, que entrasse os Estados Unidos, porque era inimigo do Chávez mas era amigo da opinião, que entrasse o Aznar, da Espanha, que tinha sido o único governo que tinha reconhecido o golpista.

Eu lembro que o Fidel Castro ficou raivoso, ficou nervoso, sabe, e uma hora da manhã ele bateu no meu quarto, preocupado, porque ele achava que a gente tinha entregue a Venezuela ao imperialismo. Eu falei, Fidel, deixa eu lhe falar uma coisa assim, olha: Por que nós tivemos que colocar os Estados Unidos? Porque nós não estamos criando um grupo de amigos do Chávez. Se fosse um grupo de amigos do Chávez era eu, era você. Mas era um grupo de amigos da Venezuela pra construir a democracia.

E tem que estar o pessoal da oposição, senão não tem negociação. Convencemos o Chávez que era aquele jeito que era importante. Colin Powell participou, Jimmy Carter participou e nós conseguimos com que a eleição fosse tranquila na Venezuela.

Eu estou te mostrando que quando você quer negociar você negocia. Nesse instante acho que o mundo rico, a Europa e os Estados Unidos, prestaram um desserviço a qualquer aula de democracia que a gente queira dar em qualquer lugar do mundo. Eles não poderiam ter reconhecido um farsante que se autoproclamou presidente (Juan Guaidó). Não é correto, porque se a moda pega a democracia é jogada no lixo e qualquer picareta pode se autoproclamar presidente, sabe. Eu poderia agora me autoproclamar presidente do Brasil, sabe, mas e a democracia, onde vai? E a Constituição, vai para lixo? Então, veja, você percebe que quem está tomando a iniciativa de conversar é o Maduro não é o Guaidó. O Guaidó gostaria na verdade, até tentou forçar, sabe, que os americanos invadissem a Venezuela. Ele deveria ter sido preso e o Maduro foi tão democrático e não prendeu quando ele foi para a Colômbia tentar instigar a invasão da Venezuela.

Mas Maduro é um democrata?

Peraí. Ele foi eleito democraticamente. Se ele tá fazendo um bom governo ou não são outros 500. Agora, você não dá golpe em todos os países que não estão bem. Deram golpe na Bolívia, que era o único país que estava bem aqui no continente. Derrubaram o Evo Morales por excesso de políticas saudáveis para o povo da Bolívia. Sabe, que loucura é essa?

Mas o senhor não acha que ele (Evo Morales) fez uma eleição complicada?

E a do George Bush não foi complicada contra o Al Gore? Foi complicada, o Bush tomou posse e governou 8 anos. A do Trump não foi complicada? Foi complicada, ele tomou posse. A do Bolsonaro não foi complicada? Todo mundo sabe a farsa do fake News. Tomou posse. Então, o que é que eu acho? Eu disse pro PT, até fui mal interpretado por algumas pessoas, a gente tem que entender o seguinte, quando você ganha uma eleição, para quem ganhou, 4 anos não é nada. Mas para quem perde, 4 anos é um século. Então eu tenho alertado o PT ter paciência, porque nós temos que esperar 4 anos. A não ser que ele cometa um ato de insanidade, cometa um crime de responsabilidade, a gente então possa fazer o impeachment dele, mas se não fizer isso, nós não podemos achar que nós podemos derrubar um presidente porque a gente não gosta dele. Não podemos. Aí a democracia acaba. Agora, não dá para gente fazer critica ao Maduro e não fazer crítica ao bloqueio. O bloqueio não ataca soldado, o bloqueio não mata culpado, o bloqueio mata inocentes.

Mas a repressão (de Maduro) mata a oposição. E ela não está relacionada com o bloqueio.

Se a Michele Bachelet fez uma reunião com o Maduro e descobriu que tem, ela tem o direito e a obrigação de criar uma comissão na ONU. Ela pode convocar chefe de estados, pedir uma reunião com o Maduro, convidar o Maduro na ONU e discutir. Na minha experiência de política, desde movimento sindical, não tem jeito de você estabelecer um acordo se ele não for em torno de uma mesa com as pessoas que pensam a favor e ao contrário.