Bolsonaro, Jacarezinho e a cultura do imediatismo – Por Raphael Fagundes

As ideias do presidente agradam principalmente a classe média submersa nessa cultura do imediatismo, que preenche o seu tempo livre com séries de TV e com o ciberespaço das redes sociais

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A ascensão de Bolsonaro e de tudo que ele representa não pode ser compreendida sem observarmos a promessa aceleratória da cultura moderna.

Como Lula demorou tanto tempo para chegar à Presidência e Bolsonaro na primeira eleição que disputou ao cargo conseguiu tal feito? Existe uma relação entre a cultura da Modernidade Tardia e a comemoração por parte da sociedade do extermínio de pobres negros na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro?

Trata-se do imediatismo. Essa maneira de se enxergar a realidade, que vem se consolidando cada vez mais como a episteme da Modernidade, é fruto de um desenvolvimento que vem desde o século XVII.[1]

A ideologia individualista liberal dizia que a sociedade deveria assegurar que o indivíduo pudesse alcançar seus objetivos pessoais de forma livre. Esses desejos foram sendo mais almejados quando a Igreja perdeu o monopólio de definição do futuro, isto é, o Apocalipse, que se tornava cada vez mais próximo sempre que houvesse uma guerra ou uma catástrofe, deixava de ser o horizonte de expectativa, já que ele de fato nunca se realizara. A partir daí, as pessoas passaram a acreditar em seus planos para a vida terrena. O futuro deixou de ser o além, as pessoas deixam de se preparar para o juízo final e se dedicam ao futuro.

A ideia de progresso passou a fazer sentido. Em meio as contradições e lutas de classes, a burguesia pariu o capitalismo com a promessa de crescimento econômico constante a longo prazo. Para realizar tal promessa, foi necessário investir em desenvolvimento técnico, criando novas máquinas, acelerando a quantidade e a velocidade da produção.

A tecnologia foi atendendo cada vez mais os interesses liberais, pois os objetos produzidos pela máquina facilitavam que as pessoas atingissem com maior rapidez os seus objetivos individuais.

Com o desenrolar desta lógica, as pessoas foram dando mais valor à tecnologia que a sociedade, já que a primeira atendia mais os seus interesses pessoais que a última. E assim a promessa liberal acorrentou os habitantes da sociedade industrial à tecnologia que, por sua vez, transformou-se em ideologia, por útil ser para a legitimação do poder.

Essa ideologia fomenta a produção e enriquece os que possuem o monopólio sobre as tecnologias mais avançadas, evidentemente os que possuem mais capital.

A promessa de crescimento eterno levou a inovação tecnológica a atender aos interesses expansionistas do capital e não os interesses humanos. Contudo, a propaganda nos convence de que cada nova tecnologia tem uma finalidade humana.

Formou-se um mundo acelerado, devido aos interesses de se alcançar o mais rápido possível os desejos pessoais e devido à promessa de crescimento constante da economia.

O capitalismo, então, vai criando objetos que encurtam cada vez mais o tempo da realização de tarefas, mas não para facilitar a nossa vida, e sim para que sobre mais tempo para que possamos realizar mais atividades ao longo do dia, e para cada nova atividade, uma nova ferramenta, uma nova técnica. Assim consumimos mais num espaço de tempo menor.

Daí entra o mal estar da pós modernidade, pois nunca chegamos ao nosso objetivo pessoal, ou melhor, quando atingimos um objetivo, logo surge outro. Essa insatisfação constante é programada para atender a promessa do capitalismo de crescimento constante.

A partir daí, como este futuro nunca chega, nunca nos satisfazemos e nunca chegamos definitivamente a lugar nenhum, ocorre uma contração do presente. O futuro, como explica o historiador François Hartog, “começava a ceder terreno ao presente... Até dar a impressão recente de ocupá-lo por inteiro”. Vivemos “então em um tempo de supremacia do ponto de vista do presente: a era do presentismo, exatamente".[2]

Os estudos do sociólogo Hartmut Rosa são de extrema importância para compreender o desenlace deste processo. Em uma pesquisa realizada entre 1965 e 1995 observou-se que as pessoas tiveram à disposição de um tempo livre cada vez maior. A partir desta constatação, indagou-se o que elas faziam neste tempo que sobrou. Embora todos reconhecessem que ler livros, fazer caridade, apreciar uma boa ópera, aprender violino, enfim, eram tarefas valiosas, elas confessaram que ocupavam cerca de 40% deste tempo livre assistindo à TV, ainda que enxergassem o ato como uma atividade menos valiosa, pouco estimada, menos útil para crescerem culturalmente.

Quando perguntados por que não realizavam as tarefas que consideravam “valiosas”, respondiam que não tinham tempo. Essa é uma incongruência decorrente da alteração do regime temporal que acomete a sociedade moderna.

Quando as pessoas estão de férias, ou seja, quando dispõem de um recurso maior de tempo, elas até se dedicam uma parte para as atividades consideradas valiosas. Mas também – e aqui é o ponto para nós –, “assistir à televisão requer apenas um dispêndio mínimo de energia psíquica e física”. A pressão temporal e o excesso desencadeado pelo aumento cada vez maior de tarefas em um intervalo de tempo cada vez menor (tudo é prazo para atingir metas) gera um estresse que é compensado pela satisfação imediata fornecida pela TV, sem dispêndio prévio de tempo e energia.

Esse aspecto “premia o imediatismo e a Indústria do entretenimento cria toda sorte de possibilidades literalmente “mais atrativas" de experiência, que oferecem ‘gratificação instantânea’”. As atividades que exigem uma “dimensão cognitivo-abstrata" exigem altos investimentos de tempo e energia. Deste modo, as pessoas podem considerar uma ópera mais valiosa que um musical, que um bom restaurante seja mais satisfatório que o McDonalds, que a poesia seja capaz de criar uma maior satisfação pessoal que assistir à TV, que escrever um romance pode ser mais desejável que jogar videogame, e continuar a fazer o que para elas tem menos valor.

Parecendo prever o futuro, Rosa escreve em sua obra do limiar do século XXI: “Em longo prazo, atividades às quais, a princípio, se atribuía valor serão lançadas ao esquecimento e desvalorizadas". E concluindo sua tese sobre a aceleração acrescenta: “Dessa maneira uma reestruturação da ordem dos valores pode derivar, simplesmente, de problemas temporais".[3]

Na época que Rosa realizou o seu estudo, ainda não havia as redes sociais e o smartphone. Estas invenções recentes, sem dúvida, ocupam grande parte do tempo livre das pessoas que habitam as sociedades industriais.

O smartphone concentra praticamente quase tudo que a sociedade produz de imediato, filmes, jogos, notícias, entre outros. A prática excessiva de se dedicar aos aplicativos do smartphone leva as pessoas a desvalorizar o conhecimento adquirido a longo prazo.

Por exemplo, a pessoa que assisti a um vídeo ou ouve um podcast de 10 minutos sobre Marx e acha que entende tudo sobre a teoria marxista desenvolvida, debatida e reformulada ao longo de mais de um século. Recebe um meme criticando uma visão de mundo extremamente resumida e acha que esta suposta crítica é capaz de desconstruir ideias complexas que levaram milhares de anos para se constituírem.

A cultura imediatista permite que conheçamos sobre quase tudo, mas é um conhecimento de péssima qualidade, que visa a atender apenas aos interesses do capital.

Youtubers, sejam eles de esquerda ou direita, marxistas ou da escola de Chicago, postam vídeos diariamente contribuindo para esse imediatismo que alimenta a indústria do entretenimento. Seus seguidores nada aprendem, não irão, após assisti-los, pegar um livro sobre o assunto e começar a ler; vão, na verdade, aguardar o próximo vídeo que abordará um outro assunto.

Foi assim que a extrema direita chegou ao poder numa velocidade absurdamente maior que a esquerda. Lula conseguiu chegar à Presidência somente no quarto pleito presidencial, enquanto que Bolsonaro conseguiu na primeira eleição que disputou ao cargo. A cultura imediatista na qual o petista vivia estava dominada em grande parte pela televisão, a qual atendia aos interesses das grandes corporações que tendiam a apoiar os candidatos liberais contrários à esquerda. Já Bolsonaro vive em uma época em que a cultura imediatista se espalhou, ganhou corpo, e acabou por desvalorizar as atividades que exigem uma maior dedicação intelectual em termos de tempo e energia.

As ideias de Bolsonaro agradam principalmente a classe média submersa nessa cultura do imediatismo, que preenche o seu tempo livre com séries de TV e com o ciberespaço das redes sociais. Com soluções instantâneas para problemas estruturais que assolam há séculos a sociedade brasileira, o político de direita adaptou-se facilmente às exigências do público.

As pessoas envoltas pelo vórtice da cultura imediatista, querem uma solução objetiva, a curto prazo. Presas ao presente, não querem explicações históricas, muito menos se preocuparem com as consequências de um futuro a longo prazo (nem mesmo a médio).

Quando ocorreu a fatídica operação do Jacarezinho, a maior chacina protagonizada pela polícia na história do Rio de Janeiro, muitos concordaram com tal atitude, com direitos a arrancar aplausos do governador e do presidente da República que, por seu turno, possuem uma multidão fiel que se alimenta desta lógica imediatista de contornos genocidas.

O sangue das vítimas ainda nem havia secado quando o vice-presidente disse que eram todos bandidos, com exceção do policial alvejado e morto. Mesmo com a investigação, que demora bastante, ainda mais em termos de Brasil, a explicação imediata já ocupou grande espaço e atendeu as expectativas imediatas dos ouvintes.

E assim o triângulo amoroso se completa. Bolsonaro, a chacina do Jacarezinho e a cultura imediatista são frutos de um mesmo processo que satisfaz os interesses do capital em detrimento dos interesses humanos e principalmente da classe trabalhadora.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: ______. Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: EDUNESP, 1999.

[2] HARTOG, F. Regimes de historicidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 142.

[3] ROSA, H. Aceleração. São Paulo: Ed Unesp, 2019,p. 279.