Corpo e movimento como marcas identitárias

Em muitos lugares que fui havia um estranhamento pelo fato de uma jovem negra desejar entrar para o hipismo, um esporte não comum para negros

Foto: Pixabay
Escrito en OPINIÃO el

Todos que me acompanham na Revista Fórum sabem que um dos meus principais focos de interesse, estudo e preocupação é a economia criativa, que tem como fonte de produção a criatividade e a cultura.  Porém, de onde vem a criatividade? Qual a origem da cultura humana? Quem é o agente produtor de cultura? Não é outro, senão o ser humano, portanto, antes de debatermos sobre a cultura e criatividade, não podemos esquecer que nós somos o ponto central da construção desses dois conceitos. “Lemos” o mundo pelos nossos olhos, dessa forma, toda cultura tem uma estética que a representa. O modo como nos vestimos ou nos movimentamos são indícios de cultura a qual pertencemos. Como exemplos podemos citar uma mulher com um hibaj, quando a olhamos, presumimos que é uma muçulmana ou a cultura hip hop: nela há uma estética muito marcante como calças largas, tênis e outros elementos que fazem parte dessa cultura. Por isso, é impossível falar de cultura sem falar de estética. A compreensão dos corpos e da maneira como ele se movimenta, assim como a estética utilizada são elementos culturais. Pensar sobre isso é importante para a compreensão do conceito de cultura e para entender cada uma. Assim como é importante refletir e estudar a relação entre corpo e expressões culturais.

Há 10 anos, eu resolvi que queria aprender andar a cavalo como prática esportiva. Desde pequena, convivi com cavalos e outros animais rurais de grande porte, já que minha família por parte de mãe morava no interior do estado de São Paulo, onde eu passava férias, feriados etc. Assim, desde cedo, aprendi a tirar leite da vaca, montar e realizar outras tantas atividades que essa convivência com o campo me proporcionava. Graças a essa experiência, tornei-me um ser humano capaz de valorizar a natureza, entendendo não só as origens dos alimentos, mas também o caminho que eles percorrem até chegar à nossa mesa. Aprendi a respeitar a biodiversidade e a sustentabilidade e incorporei esses cuidados à minha cultura e à minha identidade.

Quando então decidi me desenvolver no hipismo como prática esportiva e terapêutica, já tinha facilidade para a montaria, porque além da convivência com o campo, eu tive pais que se optaram por me dar uma formação clássica na primeira fase de vida, na qual tive aulas de balé e outras atividades corporais. Apesar disso, em muitos lugares que fui havia um estranhamento pelo fato de uma jovem negra desejar entrar para o hipismo, um esporte não comum para negros – hípicas são espaços sociais com presença hegemônica da etnia branca. Cheguei a ouvir comentários racistas de muitas pessoas, inclusive de tratadores de animais – alguns sinalizavam que meu lugar estaria destinado apenas para o trato dos cavalos e não para a prática da montaria. No entanto, acabei por encontrar um espaço acolhedor, onde me compreenderam e onde me ensinaram, enfim, a cultura do hipismo. Nos momentos das aulas, muitas vezes, acompanhei olhares de espanto, estranheza e também de admiração por um corpo negro montar um cavalo com destreza. O racismo estrutural fazia parte daquele ambiente, uma vez que a presença do negro nas atividades esportivas de hipismo foi historicamente impedida, pois um cidadão negro encontra mais dificuldades para alugar ou comprar um cavalo, por exemplo.

O corpo como construção cultural

Meu corpo foi se moldando às experiências do hipismo assim como já havia se moldado ao balé - que foi responsável por melhorar minha postura e criar minha identidade corporal. Compreender o papel da cultura (enquanto formadora de cidadãos) no processo de identidade corporal é fundamental para refletirmos sobre nosso espaço como seres humanos, como seres diversos e também para identificar como vamos construindo padrões sociais. 

Nosso corpo pode ser visto como uma máquina cujos movimentos são inspirados nas leis da física mecânica e o movimento é o resultado de uma síntese metabólica, originário do processo de gasto e ingestão de energia. Quando executamos um movimento, por exemplo, estamos gastando energia. Mas, o movimento corporal pode também ser pensado a partir da psicologia, ou seja, o movimento pode ser considerado um resultado de nossa experiência cultural, do contexto social em que vivemos, das nossas escolhas de hábitos e das nossas vivências. Nessa perspectiva, ao nos movimentarmos, estamos produzindo linguagens. Então, a forma como falamos, como dançamos, como brincamos e como nos reunimos em grupos diferem conforme o contexto social e conforme a maneira como lidamos com o corpo no cotidiano.  Dessa forma, o corpo é uma produção cultural, cujo diálogo é intenso com o ambiente. Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês, em seu livro Sociologia e Antropologia, diz que é possível reconhecer a cultura de uma pessoa, observando-a por meio de seus gestos. Todavia, penso que as interpretações instantâneas, a partir da observação, podem ser fontes de preconceito, portanto, podemos dizer que a forma como uma pessoa se movimenta é apenas um dos elementos de sua cultura. Segundo Mauss, era possível identificar, por exemplo, as moças educadas em escolas de freiras, nos anos 1930, somente por suas posturas, pois seus gestos imprimiam marcas em cada uma.

Todas as experiências que temos em nossos grupos sociais, religiosos e étnicos dos quais fazemos parte constituem nossos corpos e moldam nossos movimentos.  Nada em nosso modo de usar a linguagem corporal é natural, pois nossos movimentos são desenvolvidos a partir de produções de choques culturais, argumentos e experiências, ou seja, aprendemos a empregar recursos corporais apropriados às determinadas ações e atividades que realizamos no dia a dia.

Roseli Cação Fontana, pedagoga pela Universidade Estadual de Campinas, com mestrado e doutorado em Educação pela mesma universidade, avalia em seu texto Educação Física e Ciências Humanas (do livro Corpo Aprendiz), que o processo de constituição da identidade corporal se deve a três aspectos: 1 – às nossas vivências corporais; 2 –  aos discursos que acessamos e com os quais interagimos; 3 – às nossas experiências estéticas. Todos eles, influenciam de maneira diferente em nossos relacionamentos sociais e na construção de nossa linguagem corporal. Assim, conforme os contextos sociais mudam, nossa experiência corporal e identidade corporal também se transformam. 

Muitos fatores de identificação de nossa cultura estão marcados em nossos corpos, nos nossos gestos, em nossas comunicações verbais, em nossas danças e na maneira como comemos. Por isso, o corpo é a maior fonte e maior reprodutor de cultura. Ao longo dos últimos séculos foi se consolidando no Ocidente uma padronização da estética do belo, houve uma forte corrida por intervenções corporais muitas vezes agressivas à nossa essência. A procura pelo corpo perfeito criou um campo vasto para a venda de produtos e serviços que moldam a linguagem do corpo moderno. Antes, nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, ser gordo era sinônimo de pessoa saudável, porque somente quem tinha poder econômico se alimentava bem. Hoje, porém, a sociedade age de forma discriminatória e gordofóbica, fazendo com que pessoas gordas sejam vistas como desleixadas e preguiçosas, o que não é verdade. Precisamos combater todo e qualquer tipo de discriminação de corpos e promover um conceito de beleza democrático.

A beleza democrática e a “democracia” do corpo devem ser estimuladas, apresentadas e precisam ganhar espaços de reflexão em nosso cotidiano. Sem nos darmos conta, vivemos, muitas vezes, sob circunstâncias das políticas corporais: meios de comunicação, partidos políticos e até empresas adotam essas políticas de corpo e nos impõe padrões pouco palatáveis. Mas, ao pensarmos numa sociedade na qual todos possam circular no espaço público, devemos nos permitir não compactuar com os estereótipos estabelecidos e questioná-los com frequência.