O futebol na construção de distopias fascistas – Por Raphael Fagundes

É um esporte que desencadeia paixão. Isto porque podem ser encontrados nele elementos que remetem à justiça, o que se torna mais cativante em países onde a corrupção é alta

Foto: The Gentleman Ultra (Reprodução)
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Quando olhamos para a torcida da Hungria (já eliminada) nesta Eurocopa, vemos uma multidão vestida de camisa preta. Trata-se de um símbolo fascista amplamente disseminado na Europa.

O fim do comunismo na Hungria resgatou velhos ódios contras as minorias, e o clube de futebol MTK, sofreu ataques por ser de origem judaica, muito embora já tenha perdido suas características originais.[1]

O atual presidente do país do leste europeu, de extrema direita, resgatou esses sentimentos e usa o futebol para seus interesses políticos. Para mostrar seu negacionismo frente a pandemia de Covid-19, a Hungria foi o único país da Eurocopa que permitiu o estádio lotado nas exibições futebolísticas. Viktor Orbán não esconde seu objetivo de “tornar o futebol húngaro grande novamente”.[2]

Mas esta é uma prática antiga dos governos fascistas. Mussolini assistia todas as partidas da Copa na Itália, “comemorando com os camisas-negras cada vitória”.[3] Franco usou o futebol para cicatrizar as feridas da Guerra Civil estimulando o nacionalismo por meio do esporte.[4] E aqui no Brasil o futebol foi orquestrado pela Ditadura Civil-Militar na Copa de 1970 e na criação do Campeonato Brasileiro no ano seguinte.

Assim, o uso da camisa da seleção brasileira de futebol para apoiar o governo de Jair Bolsonaro, é algo extremamente normal, usual para os diversos movimentos da extrema direita espalhados pelo mundo. O fato de o Brasil se tornar sede da Copa América em plena pandemia também é parte deste processo.

O futebol desencadeia paixão. Isto porque podem ser encontrados nele elementos que remetem à justiça, o que se torna mais cativante em países em que a corrupção é alta. Christian Bromberger, após analisar os passos de Norbert Elias sobre as emoções esportivas, observa que diferente de uma peça ou um filme, “os jogos não estão decididos antes da apresentação – essa é uma de suas propriedades dramáticas singulares". A graça das competições esportivas é o fato de que os “campeões ou as equipes que se enfrentam têm as mesmas chances de ganhar. Se essa tensão não estiver presente, os espectadores mergulham no tédio”.[5]

A questão da justiça é tão forte no futebol que o aspecto que mais inflama os torcedores é a suspeita de um árbitro ladrão ou de dirigentes e jogadores que se interessam mais pelo dinheiro que pela equipe que defendem.

Como explica Patrick Charaudeau, as emoções, como compaixão, ódio etc., não são frutos apenas de uma pulsão, mas da “representação de um objeto que afeta o sujeito ou que ele procura combater".[6] O futebol representa esforço individual e coletivo, meritocracia e companheirismo, elementos que compõem o que um indivíduo moderno entende como útil para a atuação justa e ética no meio social. Quando o futebol é violado, é atingido pela corrupção, é como se estes aspectos também fossem corrompidos. E quando o futebol é valorizado, é como se estes elementos também o fossem.

O futebol seria um elemento que representa a justiça servindo assim de símbolo no combate contra a corrupção. O discurso fascista se apresenta moralmente correto e contra a corrupção, logo o futebol apresenta-se como um espetáculo manipulável.

Sendo assim, também por ser um fato social, o futebol acaba sendo usado pelas classes dominantes para a manipulação das relações de poder. Podemos dizer que o fascismo, um sistema totalmente apoiado na mentira, faz uso do futebol para criar a ilusão de verdade, de justiça, para assim legitimar suas ações.

O governo Bolsonaro e o de Viktor Orban nos remete a varias distopias, mas uma em particular chama a atenção. É o romance escrito por J. G. Ballard, um dos maiores escritores de ficção científica dos últimos tempos.

Em O reino do amanhã é narrada a história de Richard Pearson, que se desloca para a cidade de Brooklands, nos arredores de Londres, para o enterro de seu pai e acaba por entrar em uma investigação para descobrir as circunstâncias que levaram ao homicídio.

Os cidadãos estavam envolvidos por uma patologia social que levava a uma loucura voluntária racista. Vestidos com camisas com a cruz vermelha de São Jorge, estes cidadãos aproveitavam as emoções despertadas nas partidas do time local para, após a saída do estádio, destruir os negócios de imigrantes. Cometiam vandalismo, linchamentos, contudo, não havia uma liderança. A multidão estava ávida por um líder que os guiassem nesta loucura.

Os imigrantes atrapalham o crescimento do Metro-Centre, um shopping center local, visto como um templo sagrado. Em certa passagem, um dos personagens da trama comenta: “O perigo é que o consumismo vai precisar de alguma coisa parecida com o fascismo para continuar crescendo".[7]

É interessante pensar no Brasil de 2016, no qual uma classe média se via ameaçada pelo crescimento e o aumento de acesso da classe de menor renda ao consumo antes reservado a ela. Relatos de ojeriza aos rolezinhos no shopping e do proletariado em aeroportos eram constantes nas redes sociais. Mais tarde, já em 2019, até o Ministro da Economia do governo Bolsonaro participa destas manifestações no caso da empregada que quer ter o direito de ir para a Disney.

Voltando ao romance de Ballard, o psiquiatra Maxted compara toda aquela agitação à Alemanha dos anos 30: “As pessoas ainda acham que os líderes nazistas conduziram o povo alemão aos horrores da guerra racial. Não é verdade. Os alemães estavam desesperados para escapar de sua prisão. Derrota, inflação, indenizações de guerra grotescas, ameaça de bárbaros vindos do Leste. Enlouquecer os libertaria, e escolheram Hitler para liderar a caçada. Eis por que eles se mantiveram unidos até o final. Precisavam de um deus psicopata para venerar, então recrutaram um zé-ninguém e o colocaram no altar mais elevado. As grandes religiões têm feito isso há milênios”.[8]

No Brasil de 2018 aconteceu a mesma coisa. E muitos das pessoas que seguem Bolsonaro, mesmo com sua política catastrófica que levou milhares de brasileiros a morte, ainda assim o defendem, pois o racional não faz mais sentido para elas, sentem “que podem se fiar no irracional [...] Elas anseiam pela magia e pela desrazão [...] Estão ávidas para entrar numa nova Idade das Trevas”.[9]

Mas nesta distopia descrita por Ballard, havia uma espécie de “fascismo brando". Em uma absurda similaridade com o governo Bolsonaro e com a ideologia que seus seguidores propagam, Sangster, personagem que faz parte da trama que procura controlar a população, faz a seguinte pergunta: “Quem precisa de liberdade e direitos humanos e responsabilidade cívica?” Ele mesmo responde: “Do que precisamos é de uma estética da violência”. “Precisamos de drama, precisamos que nossas emoções sejam manipuladas, queremos ser tapeados e bajulados". “O mal e a psicopatia foram reconfigurados e convertidos em declarações de estilo de vida".[10]

A cidade presenciava “jogos de futebol que eram na verdade manifestações políticas, embora ninguém se desse conta. O esporte era só uma desculpa para a violência nas ruas". O pai de Pearson, que havia observado os movimentos ganhar musculatura, escreveu em seu diário que as “torcidas estão se tornando milícias” e que “mais cedo ou mais tarde um messias vai aparecer".[11]

No caso brasileiro, as camisas da seleção nas manifestações em apoio a Bolsonaro demonstram a forma de usar o futebol para interesses fascistas. O mesmo acontece na Hungria.

As semelhanças do romance do escritor inglês, publicada em 2006, com o mundo atual são impressionantes. Ballard, que uma vez disse “Eu sou totalmente a favor de chocar a burguesia"[12], conseguiu prever a catástrofe política pela qual vivemos, que com doses de loucura e ódio, assombra diversas partes do mundo.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum!


[1] AGOSTINO, G. Vencer ou morrer. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 245.

[2] https://www.google.com/amp/s/veja.abril.com.br/placar/covid-19-por-que-estadio-na-hungria-estava-lotado-na-eurocopa/amp/

[3] AGOSTINO, G. Vencer ou morrer. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 61.

[4] FRANCO Jr. Hilário. A dança dos deuses. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 170.

[5] BROMBERGER, C. Paixões esportivas. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 605.

[6] CHARAUDEAU, P. “A patemização na televisão como estratégia de autenticidade”. In: MACHADO, I. L. e MENDES, E. (orgs.). As Emoções no Discurso. Vol. 2. Trad: Emília Mendes. Campinas: Mercado das Letras, 2010. p. 28.

[7] BALLARD, J. G. O reino do amanhã. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 143

[8] Id., p. 142.

[9] Id., p. 143.

[10] Id., p. 224-5.

[11] Id., p. 261.

[12] BALLARD, J. G. Relatório sobre uma Estação Espacial não identificada. In: RUCKER, R. WILSON, R. WILSON, P. (orgs.) Futuro proibido. São Paulo: Conrad, 2003, p. 190.

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