Ninguém pode furar a fila da vacinação, por Valerio Arcary

Há um imperativo moral de que aqueles que correm mais riscos sejam vacinados primeiro. A fila deve estar ordenada por critérios objetivos e universais e eles são bem conhecidos: os profissionais da linha de frente, idosos e quem tem doenças crônicas

Foto: Getty Images Free
Escrito en OPINIÃO el

O momento apocalíptico da pandemia chegou a Manaus. Acabou o estoque de oxigênio disponível, o principal insumo que garante a luta pela vida para quem viu a doença evoluir para condições que exigem internação hospitalar. O transporte emergencial de pacientes por avião para hospitais de outros Estados já é incontornável. Manaus passa a obedecer a uma situação de toque de recolher, uma forma parcial de Estado de Sítio, e será um laboratório do horror nos próximos dias, confirmando que a pandemia está à deriva. Nesse contexto, a maior prioridade emergencial é a contenção da disseminação do contágio, custe o que custar, e o início da vacinação em massa.

Mas surgirá, em poucas semanas, outro desafio: a questão da ordem da fila. Quem tem dinheiro não deve poder furar a fila da vacinação. Acontece que a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC), uma organização que representa o setor privado, confirmou a negociação para a compra de cinco milhões de doses de uma vacina contra Covid-19 produzida na Índia[1]. Laboratórios como a Pfizer declararam que não venderão vacinas para empresas, somente para Estados. Veremos.

O controle de patentes com a regulação da OMC (Organização Mundial do Comércio) transformou o mercado de medicamentos em um dos mais lucrativos do mundo. Seria tolice acreditar que não teremos uma oferta de vacinas para comercialização. Elas poderão ser fabricadas em laboratórios na Índia, ou qualquer outro país. 

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou na semana passada, em Brasília, uma nota técnica sobre a obrigatoriedade de acompanhamento de efeitos adversos em quem se vacina em clínicas privadas. Mas, isto posto, estaria autorizada.

Já o Ministério da Saúde publicou uma nota indecifrável admitindo que a vacinação poderá acontecer em clínicas privadas. Mas que elas deveriam se integrar ao plano nacional obedecendo à ordem de prioridades[2]. Como isso seria controlado permanece obscuro e, totalmente, duvidoso.

Há problemas de três ordens nesta situação. O primeiro, mais importante e incontornável, é moral. Se clínicas privadas vão poder vender a vacina será inevitável que quem tem dinheiro vai poder furar a fila. Qualquer ilusão na conduta idônea, na lisura de procedimentos, no desinteresse comercial das clínicas particulares seria uma credulidade ingênua. Vender vacinas é um negócio para ganhar dinheiro.

Há um imperativo moral de que aqueles que correm mais riscos sejam vacinados antes de outros. Por isso, a fila deve estar ordenada por critérios objetivos que devem ser universais e são bem conhecidos: os profissionais na linha de frente, os mais idosos, os que têm doenças crônicas graves. Quem tem dinheiro não pode ser vacinado na frente porque isso é uma indignidade. É indecente, repulsivo, abjeto.

Não haverá superação das condições de crise sanitária, econômica, social e, em especial, no Brasil de crise política com o governo Bolsonaro, enquanto não se alcançar a imunidade coletiva. É impossível neste momento ter uma previsão de quando será alcançada a imunidade de grupo ou rebanho. Mas não será, rapidamente, em poucos meses, considerando-se o evidente atraso e improvisação que prevaleceu até agora no Brasil. Mesmo iniciada a vacinação, a nação vai sofrer muito. A eleição de Bolsonaro tem um custo histórico assombroso.

A vacinação individual diminui o risco pessoal, mas somente de forma muito limitada. Limitada, porque não há vacinas com 100% de eficácia. Se a eficácia for de 50%, metade dos vacinados ainda estarão suscetíveis. Ou seja, qualquer um que for vacinado não conquista imunidade diante do perigo de contágio. Além disso, não neutraliza, também, o risco de continuar sendo, involuntariamente, um transmissor do vírus.

Mas, mesmo assim, diminui o risco. A chance de estar entre aquela metade protegida vai criar uma demanda pela vacinação privada, portanto, para furar a fila. Porque quem corre risco tem pressa. O grau de disciplina social que uma sociedade é capaz de construir diante de uma ameaça à vida é a medida do seu grau de civilização. A decisão da Anvisa de liberalização de vacinação privada é inaceitável porque legaliza a corrida pelo “salve-se quem puder”.

O segundo é um problema de gestão pública centralizado da luta contra a pandemia. Há escassez incontornável de vacinas disponíveis nos laboratórios, e por prazo indefinido. Se as clínicas privadas vão poder disputar a compra, diante de um estoque limitado de vacinas, no contexto de um mercado mundial capitalista, regulado pela oferta e procura, estarão concorrendo com o Estado. Os laboratórios são privados e farão contratos com quem pagar mais.

Em qualquer circunstância a vacinação privada é uma aberração. Ninguém fura a fila.        


[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/01/06/no-exterior-governos-bancam-doses-no-brasil-clinicas-privadas-querem-negociar.htm

[2] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/ministerio-da-saude-diz-que-clinicas-particulares-devem-seguir-plano-nacional-de-vacinacao-contra-covid.shtml