O cancelamento deve ser mesmo cancelado? – Por Ingrid Gerolimich

Sobre o BBB e outras coisas...

Foto: Rede Globo / Reprodução
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Há pouco mais de um mês escrevi um artigo para a revista Cult onde falava, entre outras coisas, sobre os riscos de cairmos em armadilhas que nos levam a reproduzir em nossas esferas de atuação social aquilo que podemos chamar de microfascismos. Aqui, podemos falar em microfascismo quando práticas de caráter totalitário e opressivo são adotadas por indivíduos sem que necessariamente se considerem próximos ideologicamente do fascismo como um sistema político, pois o que está em jogo neste caso são as implicações subjetivas que o pensamento fascista clássico promove em todo o conjunto social.

A cultura do cancelamento pode ser considerada em parte um exemplo do que falo acima.  Primeiro, é importante dizer que o movimento que dá corpo à cultura do cancelamento é de extrema importância como forma de ampliar a voz de grupos oprimidos, denunciar e pressionar figuras públicas ou grandes marcas por mudanças necessárias e urgentes, promovendo conscientização e debates sobre assuntos importantes como desigualdade, racismo, machismo, lgbtquia+fobia, etc.

O que pode não estar indo tão bem com a cultura do cancelamento, então? Acontece que em alguns momentos, no lugar de um espaço amplo e saudável de debates, criou-se algo como que um Tribunal da Internet de caráter meramente acusatório voltado muitas vezes mais para pessoas físicas do que para os grandes temas que deveriam permear a discussão. No Tribunal da Internet não há espaço para a defesa e nem para o contraditório, e é aí que entra a palavra cancelar, que, como no dicionário, significa: tornar sem efeito, nulo, sem valor, eliminar. Resta saber o que estamos eliminando e o que sobra no final.

E, por que trouxe esse tema aqui? O que tem acontecido no Big Brother Brasil nas últimas semanas, as torturas psicológicas sofridas por Lucas e Juliette, as perseguições e discriminações e a total falta de acolhimento que levaram Lucas, inclusive, a desistir de permanecer no reality, têm gerado um sentimento de grande revolta entre aqueles que assistem ao programa e suscita um debate importante a respeito de como anda a cultura do cancelamento.

E este BBB é uma representação direta deste ambiente algumas vezes pouco tolerante da internet, pois ali dentro há pouco espaço para as complexidades que regem a vida humana. Ali se acredita que ganha quem cumprir com maior maestria a jornada do herói ou da heroína como quem segue o roteiro de um filme e não a vida real. Elege-se um vilão ou uma vilã, pois sem eles não há mocinhas e mocinhos. Como, por exemplo, o que assistimos sobre o Projota, que num dia promoveu o diálogo mais bonito e profundo até então do reality com o Lucas, mas no dia seguinte precisou voltar ao personagem que acredita ser o do mocinho que salva a casa deste Lucas vilão que merece ser punido, mesmo que ele tenha se arrependido. Nesse sentido, acredita que “cancelar o rapaz, eliminá-lo, é agir por um bem maior, bem este que, no caso, garantiria para si maior apreço entre os seus e o colocaria neste lugar de herói tão almejado por todos”.

Neste contexto, todo debate pode acabar ficando limitado, perigoso, sufocante e qualquer deslize pode levar a um linchamento implacável e sem precedentes, como acontece também por vezes no ambiente das redes sociais. Com isso, ao invés de ser um ambiente pautado na discussão de ideias, limita-se a ser um espaço de um patrulhamento comportamental insuportável e que não faz avançar em nada o debate sobre as pautas de combate ao machismo, racismo, lgbtquia+fobia, entre outras, muito pelo contrário, só produz mais intolerância.

Seria o caso, então, de cancelarmos a cultura do cancelamento? Como disse antes, acredito que a cultura do cancelamento contribuiu e ainda pode ter muito a contribuir no sentido de promoção da justiça social e mudanças de paradigmas. Neste sentido, penso que o problema está mais relacionado à forma do que ao conteúdo, exigindo de nós uma observação mais acurada sobre como e onde estamos concentrando nossos esforços, se dedicamos mais tempo patrulhando e vociferando contra cada deslize alheio ou se usamos nosso tempo direcionando nossa indignação para mudar a engenharia político-econômica e social que nos aprisiona.

Apontar as falhas alheias pode ser muito tentador, pois quando fazemos isso não temos tempo de olhar e refletir sobre as nossas próprias falhas. Devemos ter o cuidado de não cair nesta tentação, sempre buscando enxergar no outro aquilo que há também em nós, quando isso acontece geramos o que há de mais humano em nossas existências, que é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.

Por fim, deixo para cada pessoa que ler este artigo as perguntas levantadas por Foucault (1991) no texto Para uma vida não fascista: Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?

Vamos escrever juntos essas respostas?

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.