O refém do caos

Em novo artigo, Rodrigo Perez Oliveira diz: “O governo de Jair Bolsonaro é a manifestação perfeita dessa atmosfera de colapso. Não é o resultado do colapso. É o próprio colapso. É o caos em si”

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Desde 2013 estamos respirando uma atmosfera de colapso. Trata-se de uma experiência de transição, onde o velho já acabou, mas o novo ainda não chegou. A República que aprendemos a chamar de “nova” envelheceu e morreu. A “IV República” deixou de ser presente para se tornar passado. O governo de Jair Bolsonaro é a manifestação perfeita dessa atmosfera de colapso. Não é o resultado do colapso. É o próprio colapso. É o caos em si. Ao contrário do que disse ao longo da campanha, Bolsonaro não é o “novo”. O novo será outra coisa, algo que ainda não conhecemos. Como nenhuma sociedade consegue viver eternamente em transição, eternamente em colapso, o governo de Jair Bolsonaro tornou-se refém do barro que lhe deu vida. A sociedade está cansada, esgotada. Talvez isso ajude a entender o desgaste prematuro do governo. Geralmente, os governos começam fortes e saudáveis e vão se enfraquecendo com o tempo, adoecendo. O envelhecimento precoce do governo de Jair Bolsonaro é caso inédito na crônica política brasileira contemporânea. Em seus primeiros meses de governo, Fernando Henrique Cardoso surfou no sucesso macroeconômico do plano real. A primeira medida de Lula foi criar um Ministério pra combater a fome e a desigualdade social. No início, Dilma fez uma faxina na esplanada dos ministérios, começando aquilo que André Singer chamou muito adequadamente de “ensaio republicano”. No começo, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma estavam fortes, com capital político sólido. O tempo passou e o tempo não costuma ser generoso com os governos. FHC viu seu candidato ser rejeitado nas urnas. Dilma saiu golpeada, hostilizada pela maioria da população. Só Lula continuou forte até o fim. Lula também é caso único na crônica política brasileira. Ainda antes da posse, Bolsonaro se viu em meio a uma guerra fratricida travada entre seus aliados. De lá pra cá, os conflitos na base só aumentaram, desnudando a fragilidade de sua liderança. Escândalo de corrupção envolvendo Flávio Bolsonaro (filho mais velho do presidente e senador da República). Queda do fiel escudeiro Gustavo Bebianno após conflito com Carlos Bolsonaro, outro membro do clã presidencial. Uso de laranjas pelo partido do presidente durante a campanha. Trapalhadas na política externa que prejudicaram o agronegócio. A investigação da morte de Marielle Franco chegando, literalmente, na vizinhança de Jair Bolsonaro. Juntem isso tudo à crise econômica que não dá sinais de trégua e temos um cenário de tempestade perfeita. O resultado político é imediato: aliados começam a desembarcar, com gestos de afastamento. Rodrigo Maia, que se mostra um político bastante habilidoso, deixou claro que sua única afinidade com o governo é a pauta econômica, especialmente a reforma da Previdência. A bancada evangélica, insatisfeita com aquilo que considera ser descompromisso do presidente com os interesses da “família brasileira”, diz que é independente do governo. Nos bastidores, os militares demonstram insatisfação com a interferência dos príncipes presidenciais em assuntos de Estado. Profissão de fé Vai ficando cada vez mais claro para todos que Bolsonaro atende apenas aos interesses de uma extrema direita que fez da jornada anticomunista sua profissão de fé. O grande capital e os muito ricos, que somente aderiram a Bolsonaro depois que a candidatura de Geraldo Alckmin se revelou um verdadeiro fiasco, têm por hábito adotar uma postura mais pragmática. Quem tem muito dinheiro não está interessado em histeria. Está interessado em ganhar mais dinheiro. Quem goza com histeria é classe média. Os super-ricos apostaram alto quando resolveram apoiar Bolsonaro. Estão preocupados, começando a desconfiar que talvez tenham apostado errado. A Rede Globo, que há muito tempo vocaliza os interesses do grande capital, faz ginástica discursiva diária para desvincular Jair Bolsonaro de Paulo Guedes. Bolsonaro é representado como um ogro, miliciano, corrupto, alvo de denúncias em telejornais e motivo de piadas em programas de entretenimento. Guedes é o “Chicago-boy” inovador, aquele que tem na manga a solução pra crise econômica. Bolsonaro é o preço a ser pago para ter Paulo Guedes. O grande capital quer a reforma da Previdência e a desvinculação do orçamento. Bolsonaro é um detalhe que incomoda. Por enquanto, o incômodo é suportável. O “Estadão”, que sempre foi o veículo da grande mídia mais alinhado à direita, já abriu fogo contra Bolsonaro. Definitivamente, Bolsonaro não lidera toda a direita brasileira. A direita brasileira é um Afeganistão, onde facções disputam cada palmo do terreno. Ainda não há dados para afirmar que os sucessivos desgastes tenham minado a base social de Jair Bolsonaro. Até acredito que não, que ainda não. Mas temos evidências suficientes para saber que essa base não é formada por militantes treinados. Bolsonaro não conta com o apoio de movimentos sociais organizados, com “know-how” de mobilização social. Por isso, ele precisa animar seus apoiadores com frequência. Os assessores mais próximos já perceberam e estão investindo na agenda dos costumes. Reforma da Previdência é tema antipático. As pessoas não gostam de saber que vão precisar trabalhar mais pra ganhar menos. Por outro lado, jatos de xixi trocados entre casal gay excitam o público, em todos os sentidos. Para Bolsonaro, a pauta dos costumes é estratégica. Bolsonaro precisa manter sua militância em constante estado de excitação. A normalidade e a estabilidade não interessam. Desconstruir Em jantar realizado nos EUA, Bolsonaro disse que sua missão é “desconstruir”. Ele tem razão. Talvez essa tenha sido uma das coisas mais inteligentes que ele já disse na vida. Bolsonaro é o presidente da desconstrução, da destruição. Bolsonaro é o colapso. É o caos. Mas e depois? E quando não tiver mais nada pra desconstruir? E se o plano der certo e o regime neoliberal se constituir plenamente no Brasil, com direitos sociais e previdenciários devidamente cassados? E quando o Estado brasileiro não tiver mais nenhuma obrigação com o interesse público? Aí será o momento de outro assumir o controle da nau. O capitão não servirá mais pra nada. O “novo”, seja ele qual for, significará o fim de Jair Bolsonaro.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.