Pierpaolo Cruz Bottini na Fórum – por Ana Beatriz Prudente

Professor de Direito da USP fala de sensação de impunidade, Lava Jato e delação premiada

Foto: Arquivo pessoal
Escrito en OPINIÃO el

A Faculdade de Direito da USP é a mais tradicional instituição jurídica da América Latina e, sem dúvida, uma das maiores produtoras de estudos inéditos nessa área no mundo. Possui um protagonismo em várias temáticas brasileiras, visto que muitas pesquisas jurídicas têm seu marco inicial nesta instituição, como por exemplo o primeiro estudo acadêmico e jurídico que abordava a criminalização do racismo, realizado na década de 80.  Portanto, ser professor nas arcadas é exercer um papel de referência não só nacional como internacional também. Por ser um cargo muito almejado há tempos, sempre despertou muita curiosidade, reverência e admiração. Quando um estudante decide fazer Direito na USP, ele já tem a consciência de que estará diante dos mais respeitados juristas brasileiros, assim, a relação entre professor e aluno torna-se, desde o início, muito especial.

Entre os docentes, na safra dos mais jovens, há um que se destaca por despertar grande admiração pela sua experiência, convicção, confiança e estilo: Pierpaolo Cruz Bottini. Uma unanimidade dentro da instituição, reconhecido por sua gentileza, discrição e elegância (tanto no falar como no vestir). Pier, como prefere ser chamado, soma o sucesso acadêmico ao sucesso na carreira de advogado, com uma passagem brilhante na área pública. Uma figura emblemática, que eu não poderia deixar de entrevistar para a Revista Fórum.

Na advocacia, os colegas afirmam que é sério e competente, muitas fontes com as quais conversei garantem que suas relações com os clientes são fortes e de confiança. Ou seja, ter o Dr. Pierpaolo como advogado garante o sono mais tranquilo de alguns réus. Na vida pessoal, é discreto, no entanto não esconde suas convicções: defensor dos direitos humanos e com valores progressistas, não deixa de afirmar o que pensa sempre com fala pausada e português impecável. Ele é um homem que valoriza a companhia da família e de amigos de longa data. Pai presente na vida de duas crianças, consegue equilibrar as atividades profissionais e as obrigações paternas. Um exemplo de masculinidade positiva, mostrando que o papel paternal é tão ou mais importante que o papel profissional.

Dr. Pierpaolo é listado entre os advogados mais bem-sucedidos e bem remunerados do continente americano, advogando para políticos famosos e grandes empresários. Foi ele quem conseguiu a absolvição do ex-deputado Professor Luizinho (PT-SP), no processo do mensalão. Atuou no Ministério da Justiça, no primeiro mandato de Lula, como pupilo de Márcio Thomaz Bastos. Por tudo isso, sem dúvida, tem muito o que contar, além do notório conhecimento jurídico.

Penso que se estabelecêssemos uma narrativa ou uma metalinguagem para esse processo, diria que: A vida é um mar, um mar bonito, porém, muitas vezes turbulento e o píer é um lugar onde a gente pode sentar tranquilo para olhar essa imensidão de forma segura. Pierpaolo é assim, dá aos alunos, amigos e colegas a sensação de tranquilidade e paciência para aguardar dias melhores. Com todas as reviravoltas desse mar tão agitado, mas surpreendente, tudo se torna mais firme, quando temos a oportunidade de conversar com Pierpaolo Cruz Bottini.

Com vocês, a transcrição da minha conversa com este ícone da nova geração do Largo São Francisco.

Ana Beatriz Prudente – Gostei muito do debate da Brasilianas.Org, de 2015, do qual você participou ao lado do jurista Pedro Estevam Serrano, assim gostaria de conversar sobre algumas ideias presentes naquele debate. Chamou-me muito a atenção, a questão das prerrogativas parlamentares – um dos temas discutidos por vocês. Pelo que sei, um parlamentar só pode ser preso em flagrante de crime inafiançável, estou certa?  Há na sociedade brasileira um desapontamento muito grande em relação à cultura de impunidade. Pesquisas recentes mostraram que muitas pessoas veem os parlamentares como acima da Justiça, ou que não são alcançados por ela. Assim, gostaria de ouvir sua opinião sobre esse tema.

Pierpaolo – Ana, acho que isso permite falarmos um pouco sobre a figura do político no Brasil. Vemos muita gente que já faz cara feia quando se fala em política, que não gosta de debater o tema porque acredita que pode gerar brigas. Mas, é preciso deixar claro que numa democracia a figura do político é fundamental, o político é o nosso representante nos poderes Executivo e Legislativo. Quando votamos, então, estamos escolhendo uma pessoa que vai representar publicamente a população brasileira. Votar é o primeiro ato de responsabilidade de uma população. Muita gente tem ojeriza à classe política, porém, veja, a responsabilidade pelos políticos que lá estão é nossa. É preciso sim conversar com os amigos, com os vizinhos, sobre política, sobre a qualidade do candidato, sobre o perfil do candidato, sobre seus projetos. Precisamos pensar o que é bom para o nosso bairro, para a nossa cidade e para o nosso país. Isso é exercer a cidadania. Muitos lutaram para que tivéssemos democracia no Brasil e lutaram ardentemente. Dessa forma, não podemos simplesmente deixar isso de lado.

Uma vez o político estando lá, ele tem prerrogativas? É claro que sim, até porque o exercício da atividade política exige, muitas vezes, se opor às autoridades constituídas ou ao próprio governo inclusive. Assim, é evidente que este representante do povo precisa ter algumas prerrogativas. Prender preventivamente um político pode ser necessário a depender de sua conduta, por outro lado, também pode ser um ato de força ou atitude para calar a oposição ou uma ação autoritária do governo que não gosta daquele político específico, de suas ideias ou da forma como expressa suas ideias. Portanto, quando dissemos que não se pode prender preventivamente um político é justamente para o salvaguardar – no entanto, não significa que ele não possa ser processado e, se estiver em flagrante delito, deve ser preso. O que não se pode fazer é prendê-lo no decorrer do processo: a regra é que o parlamentar responda ao processo em liberdade.

Concordo com você quando diz que há uma sensação de impunidade, porque poucos parlamentares são julgados e esse problema tem origem em nosso sistema de julgamento. Quem julga os parlamentares são os tribunais superiores e não os juízes de primeiro grau. Os tribunais não têm capacidade ou vocação para o fazer, por isso, esses processos demoram tempo demais. O país necessita de uma reforma nesse ponto. Veja que não é uma questão política, é preciso uma reforma para capacitar e permitir que esses processos caminhem na mesma velocidade que caminham para o cidadão comum. Talvez, criar ou fazer um sistema em que o processo penal contra um político, seja ele qual for, caminhe no juiz de primeiro grau como caminha para todo mundo e deixar para os tribunais aquelas decisões que afetem o exercício do mandato.

Ana Beatriz Prudente – Entendo que a Lava Jato foi importante para o mundo jurídico porque trouxe alguns elementos que talvez a gente não explorasse tanto.  Por isso, quero te ouvir sobre esta operação, ou seja, qual sua importância para o mundo jurídico? Quais novidades ela trouxe para o universo jurídico brasileiro?

Pierpaolo – Em primeiro lugar, temos que entender qual a razão da Lava Jato existir. É importante que tenhamos consciência que ela existiu porque algumas leis foram aprovadas em 2012 e 2013. Ou seja, criou-se basicamente uma nova lei de lavagem de dinheiro, uma nova lei de organização criminosa que organizou a delação premiada e a lei de corrupção. Com base nesta nova lei, a Lava Jato se desenvolveu em cima do instituto da delação premiada e colaboração premiada, ou seja, organizou esse instituto. É inegável que foi descoberto um clima de corrupção, eu não tenho dúvida nenhuma, aqueles fatos existiam na Petrobras, toda aquela corrupção, a caracterização das empresas, boa parte do que apontou a Lava Jato é verdadeiro. Porém, seu principal problema está relacionado com o método utilizado para esses processos penais. Um método que, muitas vezes, estava fora da realidade. Precisamos, portanto, olhar isso também. Não podemos entendê-la somente como um instrumento de combate à corrupção, pois ela também é o poder público, é o Estado exercendo o processo penal – e o Estado quando processa alguém criminalmente precisa seguir a lei. Quando ele não dá o exemplo, os cidadãos também não se sentem obrigados a cumprir as leis. E muitas vezes a Lava Jato não seguiu a lei. Cito aqui alguns exemplos: a prisão de pessoas só com base na delação premiada; as conduções coercitivas para pegar a pessoa à força para prestar depoimento; o vazamento de informações sigilosas – e algumas claramente obtiveram a participação da sociedade. Então, vemos uma série de comportamentos ali que prejudicou muito nosso sistema de garantias, pois quando o Estado (o poder público) flerta com a ilegalidade, por melhor que seja o seu objetivo, por melhor que seja a intenção, ele descumpre a lei. Portanto, apesar de ter descoberto importantes atos de corrupção, os métodos dispendidos pela Lava Jato, após essa descoberta, foram questionáveis. Acho que os tribunais estão percebendo isso agora, estão tentando se encaixar nos métodos da legalidade. Veja, quando não se cumpre a lei, todos são iguais - tanto o corrupto quanto aquele que combate o corrupto.

Ana Beatriz Prudente – E a delação premiada? Como funciona e quais são seus riscos?

Pierpaolo – Você tocou em uma questão que é importante que todos nós saibamos, conhecedores do sistema jurídico ou não: colaborador premiado é aquela pessoa que participou de uma organização criminosa ou de um ato criminoso e que, posteriormente, arrepende-se e vai até às autoridades para contar o que sabe. Assim, aponta seus parceiros, esclarece como funciona determinada organização criminosa e ajuda as autoridades na reparação dos danos e na recuperação do produto do crime. Para isso, esta pessoa tem em troca alguns benefícios, em especial, a redução de sua pena.

Muita gente pensa no delator como um dedo duro ou traidor. Quando era pequeno me lembro muito de todos me dizerem que a pior situação de alguém é ser dedo duro. Esse pensamento tem origem em nossa história humana, pois a figura do delator foi sempre equiparada e usada em contextos muito ruins. O primeiro grande delator da história foi Judas. Já no Brasil, tivemos Joaquim Silvério dos Reis, que delatou Tiradentes, e mais para a frente o cabo Anselmo. Então, estudamos ou conhecemos várias figuras que efetivamente acabaram passando para a história como vilões - e o eram, mas não porque delataram. Foram considerados vilões por conta das razões pelas quais houve delataram. Além disso, a forma como a fizeram tinha outro contexto. O que quero dizer é que o problema não é a delação em si, mas sim contra quem ela é usada, e como.

Quando falamos na colaboração premiada, estamos nos referindo a uma lei que prevê um benefício a quem participa ou participava de uma organização criminosa para delatar os colegas de crime. Portanto, não estou mais delatando um líder religioso, ou alguém que luta pela independência do país ou pela democracia, estou delatando pessoas que praticaram crimes: o tráfico de drogas; comércio de armas, etc. Hoje, a colaboração passou a ser um instrumento importante para a investigação e para desvendar o delito. E claro, mais uma vez, afirmo aqui que tem que ser usada dentro da lei.

Precisamos lembrar que o colaborador quando vai até às autoridades e conta o crime do qual participou é alguém interessado em contar uma versão da história para se beneficiar, por isso, é evidente que o valor de seu depoimento não é tão grande.

*As opiniões emitidas pelo(a) autor(a) do texto não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.