Primeiro balanço da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – Por Filippo Pitanga

Começou um dos mais esperados festivais de cinema e, dentre os 264 filmes espalhados de modo híbrido, online e presencialmente por 15 salas de SP, confira dicas para não se perder, como “A Mulher que Fugiu” e “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”

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A Fórum irá trazer para vocês algumas dicas bastante valiosas em balanços periódicos da 45ª Mostra Internacional de São Paulo, com filmes de todo o mundo disponíveis tanto online quanto alguns exclusivamente presenciais, distribuídos por 15 salas de São Paulo.

Vamos começar por um dos diretores favoritos do Festival: o sul-coreano Hong Sang-Soo e seu premiadíssimo “A Mulher que Fugiu”. Aliás, até mesmo este que vos escreve teve a oportunidade de premiar no final do ano passado este belo exemplar quando da ocasião do júri da crítica internacional FIPRESCI no Festival Internacional de Estocolmo, do qual fiz parte com Moira Jean Sullivan (Suécia) e Ola Salwa (Polônia).

Mas nem havia sido a primeira vez em que este crítico havia assistido de perto a esta pequena jóia rara, pois estava presente no 70º Festival de Berlim em 2020, último evento de grande porte presencial antes de as portas fecharem devido à pandemia, e onde Sang-Soo havia levado melhor direção entregue por nosso cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, que havia feito parte do Júri.

Pode até ser gatilho depois de tanto tempo em que os cinemas ficaram fechados, mas imaginem a seguinte catarse coletiva: a impressionante capacidade de 2 mil pessoas na mesma sala rindo em conjunto no prestigioso Friedrichstadst-Palast, um verdadeiro palácio da sétima arte. A causa das risadas? “The Woman who ran”, o novo filme do mestre Hong Sang-Soo com sua atriz-assinatura, Kim Min-Hee. No entanto, para se entender de fato essa experiência, alguns fatores devem ser levados em consideração.

Primeiramente, o tipo de humor dos filmes do cineasta costuma ser de uma fina ironia, através dos usos e costumes, e na repetição do olhar sobre fatos do cotidiano mais mundano, até que a mera reiteração das manias e minúcias comportamentais eclodam numa catarse de hilário constrangimento. Não apenas para o espectador, como para as personagens também, que em geral possuem a habilidade de rirem de si mesmas.

Em segundo lugar, aquela catarse coletiva no Friedrichstadt-Palast teve outro fator crucial: a representatividade crucial para o cinema contemporâneo, e o fato de Sang-Soo estar concorrendo ao Urso de Ouro no aniversário de 70 anos do Festival de Berlim. Mais de um terço do público que foi prestigiar a sessão era de origem oriental, especialmente sul-coreano, por um forte orgulho de se sentir representados na tela.

Ou seja, se o fino humor de Sang-Soo talvez não faça todo tipo de público rir, já que não gera o tipo de gargalhada rasgada, decerto as circunstâncias daquela sessão convergiram de modo perfeito para o melhor aproveitamento do filme numa reação em cadeia.

Agora, pelo terceiro fator que faltou comentar, já adentrando a escrita e direção do mestre coreano, “The Woman Who Ran” agrega um novo frescor para sua mise-en-scène: uma história voltada exclusivamente para as personagens femininas. E isto não é negligenciar que seus filmes já tivessem forte protagonismo feminino e múltiplas personagens escritas de modo bastante tridimensionalizado. A questão não é esta. Sang-Soo fez um filme desta vez praticamente sem homens e, quando aparecem, só poderão ser vistos intencionalmente de costas ou de soslaio à meia luz. A trama se concentra no universo feminino com extrema sensibilidade e agenciamento de suas personagens, todas interpretadas por grandes atrizes com quem ele costuma trabalhar reiteradamente em seus projetos.

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Essas relações focadas em diálogos sobre a vida, sobre amizade genuína, sobre superação das rivalidades e solidariedade no compartilhamento de experiências que superem a irresponsabilidade masculina em suas vidas, quando há, é facilitada ainda por todas elas estarem desplugadas de tecnologias o filme inteiro. Estas personagens se reconectam com o que há de essencial nas relações humanas, sem pegar em celulares ou assistir a qualquer televisão… — Quer dizer, na verdade, um único aparelho eletrônico é aproveitada na dramaturgia, que é o vídeo das câmeras de segurança dos prédios onde essas personagens vivem, pois demonstram que são vizinhas solidárias com uma rede de segurança, e sempre estão lá para apoiar umas às outras.

Esse dispositivo tão simples desdobra várias outras possibilidades narrativas que permitem com que estas personagens compartilhem novas experiências. É bastante interessante esta bolha que cria um universo tão poderoso para as suas personagens, e onde piamente acreditamos que possam resolver qualquer problema do mundo.

É aí que entra o pulo do gato, literalmente, já que a relação destas mulheres com os animais será mais um diferencial, com destaque para os gatos, numa das melhores cenas do filme e da carreira do diretor (que causa comoção no cinema em toda sessão exibida). Não há de se falar mais sobre a trama para não cometer spoilers, até porque o arcabouço é super simples: mulher que vivia focada no novo casamento há uns cinco anos finalmente viaja separada do marido e vai visitar várias amigas que não via há muito tempo.

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Isto libera as porteiras para falar como alguns relacionamentos apagam as individualidades, e outros chegam ao nível de serem abusivos, inclusive. Tudo isto na base da sutileza e inserido nas metáforas do próprio desenvolvimento da ação nos arcos narrativos: e o perfeito exemplo é como a relação de vizinhança com os animais de estimação, como os gatos, por exemplo, podem descortinar uma falsa cordialidade que na verdade é uma etiqueta bastante agressiva entre vizinhos. E a forma de tratar o próximo diz muito sobre como as pessoas são em casa.

O filme pode até parecer simples, porém jamais simplório, o que lhe funciona como vantagem. Cheio de camadas, a estrutura geral não se pretende maior do que o que apresenta, cabendo a cada espectador ampliar a experiência pessoal com a respectiva bagagem trazida a dialogar com os signos e códigos do macro que Sang-Soo colocou no micro, numa lente de aumento intimista e facilmente acessível, até para o espectador masculino. Com tudo isso, e a desde já famosa cena do close no gato, que consegue dizer mais sobre as relações humanas do que quaisquer diálogos conseguiriam, o cineasta comprova mais uma vez a habilidade de se reinventar e ser mais um dos grandes representantes do reconhecimento ao cinema coreano atual.

Outro destaque da 45ª Mostra de São Paulo advém de mais um cineasta bastante concorrido do Festival, que é o romeno Radu Jude. Dono de inúmeras obras disputadas nos anos anteriores, como “Aferim!” (2015), desta vez ele ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim 2021 com o complexo e polêmico “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, numa coprodução entre a Romênia, a Croácia, República Tcheca e Luxemburgo.

É curioso como o experiente diretor conseguiu fazer um equilíbrio entre uma proposta extremamente pop, ao mesmo tempo com pegada experimental e militante ao mesmo tempo, sem parecer em nenhum momento uma obra panfletária. Mas como isso é possível? Então, vamos destrinchar em partes para entender.

Não é a primeira vez que vemos o aparato total da sétima arte se debruçar sobre algo talvez tão precário e mambembe quanto um vídeo pornô caseiro, especialmente quando se trata de comédias ou paródias... As pessoas gostam de rir de suas próprias idiossincrasias, mesmo aquelas feitas na alcova às escondidas, ainda mais quando os segredos vêm à tona e desnudam certas verdades inconvenientes. Até o purismo de Hollywood já brincou com isso mais de uma vez, como em “Sex Tape – Perdido na Nuvem” de 2014 com Cameron Diaz e Jason Segel ou “Pagando bem, que mal tem?” de 2008 com Elizabeth Banks e Seth Rogen.     

Estas acima são citações bobas, de humor mais ingênuo do que saliente... E ambas na esfera do âmbito moral, individual, e não social. Eis o pulo do gato do filme de Jude, já que ele consegue fazer um potente manifesto politizado e engajado sobre a sociedade romena e, na verdade, um reflexo que pode ser enxergado em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil.

O longa-metragem é dividido em 3 partes, sem contar com um pequeno prólogo (o vídeo pornô em si, de um casal protagonista da história, e que irá vazar ao longo dos capítulos), e um epílogo anárquico que irá exibir vários finais possíveis ao gosto do freguês. Já começa com o diferencial de filmar algo de forma bastante explícita, desajeitada e cômica ao mesmo tempo, como a vida real, não coreografada, e com ruídos de comunicação bastante interessantes a invadir a tela. De fato parece algo amador, não dirigido, e muito menos assinado pela grande experiência de Radu Jude... Mas isso é só uma pegadinha, bem como o fato de que o parceiro masculino depois disso irá desaparecer da trama, apenas participando vocalmente por ligações de telefone celular.

Quem importa aqui é a protagonista arrasadora na pele de Katia Pascariu (de “Além das Montanhas” de 2012), professora que irá receber todo tipo de ataques e suspeitas por ter tido uma fita íntima vazada, e que será colocada à prova não só como profissional, mas como cidadã, apenas porque as pessoas estão agora vendo publicamente o que todos fazem na intimidade. Dois pesos duas medidas? Hipocrisia?

O primeiro episódio do filme é um interessantíssimo exercício de observação, e que muitos brasileiros conseguiram reconhecer como se fosse aqui mesmo, em nosso país. A protagonista simplesmente anda pelas ruas da Romênia de forma desenfreada, passando por lojas, restaurantes, farmácias e muitas publicidades e outdoor de rua, de modo que os dizerem nas fachadas e marquises e placas dizem tanto quanto as ligações que ela faz ou atende pra tentar evitar que a história da fita exploda em sua face.

É raro lembrarmos de filmes que tão corajosamente filmem as ruas de forma tão central narrativamente quanto a própria personagem transeunte através delas... Seja “Corra, Lola, Corra” (1998) ou “A Viagem do Balão Vermelho” (2007), são poucos os exemplares que utilizam da dramaturgia das vias públicas para contar tantas histórias quantas as que o roteiro enuncia em sua espinha dorsal. Assim como no Brasil, existem várias infrações de trânsito que são pegas pela câmera, existem várias brigas de rua entre “cidadãos de bem”, existem seqüências contrapostas de planos onde a andança da esquerda para a direita (da emoção para a razão) ou o inverso, da direita para a esquerda (da razão para a emoção) saem de lugares opostos de sentidos para criar tensão nas imagens – tática muito usada por algumas pessoais autorais do cinema como a saudosa Agnès Varda, há de exemplo o clássico “Os Renegados” de 1985.

Não deixa de ser surpreendente o quanto a dramaturgia se sustenta apenas nos percursos da personagem e nas conversas por telefones, crescentemente mais conflituosas, de acordo com que ela vai sabendo o quanto o vídeo íntimo se espalhou... Muito curioso sair de um prólogo totalmente explícito para um lugar da trama completamente implícito, e que se sustenta por um terço da projeção. Vale ressaltar ainda que, assim como na vida real, a Romênia também está em plena pandemia durante as filmagens desta obra. Portanto, vemos as mesmas discrepâncias populares refletidas na tela: os negacionistas, as máscaras abaixadas no queixo, as pessoas teorizando sobre teorias conspiratórias do governo e ameaçando cuspir umas nas outras para passar o coronavírus... Ou seja, a mesma balbúrdia que nos torna animais humanos em qualquer lugar do mundo.

Como se esta primeira fatia do bolo já não fosse deliciosamente sarcástica o suficiente, e caso você ainda esteja se perguntando onde o filme quer chegar com isso, ainda há uma segunda terça parte onde nós somos abstraídos do enredo principal e lançados diretamente na frigideira contestatória... Começa uma sucessão de imagens a princípio sem explicação, apenas com recortes de temas básicos, como coisas da vida cotidiana e das relações de organização ou poder em comunidade, como o dinheiro, a igreja, o amor, o sexo, o governo, a felicidade, as questões de gênero e etc...

Este capítulo todo narrado em off, com uma voice over por cima de imagens aparentemente desconexas, na verdade são um glossário ou uma enciclopédia de conceitos sociais desconstruídos com imagens irônicas que, muitas vezes, ou querem dizer o contrário do que está sendo dito, ou acrescentam camadas sob a hipocrisia do que se quer acreditar que signifiquem. Muitas destas palavras exemplificadas acima e tantas outras mais possuem sentidos comerciais tanto quanto políticos, assim como às vezes sentido algum – e noutras vezes são usadas como formas de opressão simplesmente porque as pessoas precisam acatar e obedecer.

É impressionante o quanto o diretor se arrisca aqui e experimenta com linguagens frenéticas e anárquicas sem necessariamente perder a platéia, já que isso significa um corte abrupto na trama, cuja linha narrativa original só permanece aqui metaforizada pelos temas da relação de forças que o cabo de força gerado pelo pornô acidental estaria gerando. Tanto que a protagonista do filme só aparece uma única vez no segundo episódio, como exemplificação de uma das palavras conceituadas na enciclopédia parodiada.

Por fim, mas não menos importante, haverá todo um terceiro capítulo onde a atriz Katia Pascariu realmente irá brilhar, já que até agora continuamos a vê-la de máscara e com expressões reduzidas (ironicamente tendo visto seu rosto desnudo mais na fita pornô do que no resto do filme inteiro, redimensionando o que de fato nos descortina na vida e nos permite nos abrir voluntariamente). Será na reunião com os pais de alunos da escola onde trabalha, ante o difícil tribunal de exceção que irá julgá-la e sabatiná-la, sem quaisquer escrúpulos do tipo “atire a primeira pedra quem nunca pecou”, que veremos um embate no tom de voz e nos olhares bastante captados por closes desconcertantes que Pascariu dominará de vez a cena.

Não iremos dar nenhum spoiler aqui, mas resta dizer que inúmeros arquétipos sociais irão emergir na tela, de modo que a personagem e atriz terão muito jogo de cintura para tentar rebater e, de muitas formas, acabar representando o próprio povo, ou melhor, o próprio espectador, colocado na berlinda, e sendo julgado por simplesmente existir. Onde está a liberdade de expressão? Onde está a credibilidade por uma vida seguindo regras e ajudando a formar as crianças do amanhã? Então, basta se ver o que fazemos na intimidade que perdemos qualquer segurança ou esteio? Podemos ser descartáveis?

Muitas das hipocrisias que o mundo está vendo na atualidade do lado de fora do filme estão perfeitamente encapsuladas e metaforizadas ali num só ocaso simbólico que representa a todos nós. Isso sem falar no epílogo impagável que de certa forma quebra a quarta parede e escandaliza de vez num tom fantástico com todos os avanços de políticas afirmativas e identitárias que foram silenciados durante a opressão do filme e que talvez venham à tona apenas no final, numa metáfora indignada. Uma obra necessária para os tempos em que vivemos.

Altamente indicamos também algumas outras obras já conferidas e que receberão crítica completa em breve, como a poética ficção-científica portuguesa “Mar Infinito”, com referências desde “Gattaca” à “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”; e o bonito drama britânico “Coisas Verdadeiras”, que, apesar de usar de alguns clichês imagéticos para falar de emancipação feminina, consegue transcender isso com a poderosa interpretação de Ruth Wilson (a excelente atriz da série “The Affair”).