Quando a realidade sufocar, continue a nadar - Por Adriana Mendes

A primeira coisa que aprendemos ao nadar é controlar a respiração, depois fazer “bloqueio”. Cada respirada entre as braçadas nos lembra a importância do oxigênio.

Foto: The British Olympic Association
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O primeiro texto do ano deveria ser positivo e cheio de esperança, como o de 2020, em que eu já escrevia sobre a pandemia (ainda epidemia) e a importância de manter o corpo e a mente sãos. Por isso voltei a treinar para o Campeonato Brasileiro de Master, que aconteceria em Santos, no mês de abril. Não houve competição e as piscinas fecharam. O mar “também fechou” e 2021 parece ser uma continuação mais sombria do ano que passou. Ser uma brasileira consciente nesse período da história, não está fácil. Manter a sanidade física e mental, minha e dos meus próximos, não está fácil. Respirar não está fácil. Fortaleço-me com as pessoas que pensam como eu. Desisto de querer furar a bolha, acho minha bolha bem grande, inclusive.

Conversando com uma profissional que trabalha em clínica de reabilitação, quando falava sobre leitura para os internos, soube que livros são proibidos, pois significam fuga da realidade, assim como os filmes, em que você vive a história dos outros. Então lembrei da minha infância e juventude. Ainda criança, morei um ano num prédio com cinema no térreo. Assistia a todos os filmes e desenhos da Sessão Coca-Cola. Segui cinéfila e, enquanto estudava jornalismo, fazia vários cursos de cinema paralelos, quanto mais cult e “cabeçudos”, mais eu gostava dos filmes. Assim que aprendi a ler me transformei numa devoradora de livros. Eram meus companheiros, já que sou filha única. Pratiquei natação, um esporte solitário, em que ficava horas ouvindo o barulho da água e os meus pensamentos.

Ano passado lia diariamente muitas matérias e artigos, mas abandonei os quatro livros que iniciei (já houve tempo em que lia um por semana). Fiquei pensando no que a profissional me disse. “Seriam os livros uma abstração? Uma fuga da realidade?”. Recebi dois presentes no início desse ano, dois livros sobre natação, de dois atletas: Renato Cordani (autor de ‘80 anos de História da Natação Brasileira’) que conheço há 35 anos, e Ana Mesquita (autora de ‘A Travessura do Canal da Mancha’), que “conheci” no final do ano passado, num grupo de atletas e jornalistas (Esporte pela Democracia). Ambos nasceram no mesmo ano que eu (1.970). O livro do Cordani recebi há dois dias e ainda não iniciei a leitura, apenas folheei e já sei que é fundamental e necessário. O da Ana Mesquita estou devorando. Fugindo da realidade? Não. Reencontrando-me nas palavras dela e, assim como acredito na teoria do caos, também acho que quase nada é por acaso. A primeira coisa que aprendemos ao nadar é controlar a respiração, depois fazer “bloqueio”, cada respirada entre as braçadas nos lembra a importância do oxigênio, valorizamos algo que está sempre aí, mas que se nos faltar por cinco minutos, é a morte (com ressalvas para os praticantes de apneia, que também não duram muito mais que isso se lhes faltar o ar).

E leio o livro da Ana Mesquita, enquanto falta oxigênio no Amazonas, e me enche de ansiedade e aflição, pensando que logo isso ocorrerá em outras partes do país. Leio e me encontro na pessoa que não acredita muito ser capaz, que chama de travessura uma realização de poucos, mas que decide cumprir uma missão heroica: atravessar o Canal da Mancha. De quebra, bate o recorde latino-americano da prova, em 1.993, que segue até hoje. A obra me toca ainda mais porque tive uma companheira de equipe, Renata Agondi, supercampeã de águas abertas, que morreu nessa travessia. Renata é outra história, que me marcou profundamente, mas não é para ser contada hoje.

“E algo no ambiente das competições me incomodava: era verdade que a gente fazia muitos amigos e havia muita coisa bacana. Mas tinha também aqueles que estavam torcendo para que o adversário tivesse uma câimbra ou dor de barriga na hora da largada. Eu continuava treinando e competindo porque achava que as coisas boas superavam as ruins. Meus melhores amigos eu conheci no esporte. E algumas das lições que eu considerava mais importantes também. Como essa, de perceber que competir nunca era bom de tudo, pois no fim, alguém tem sempre que perder. O melhor do esporte não estava na competição, e sim na busca diária da excelência e no convívio com gente que compartilha a mesma busca”. Esse e outros trechos do livro poderiam ter sido escritos por mim, porque é exatamente o que sinto e penso. E essa leitura que “me abstrai da realidade” também me emociona (os tempos difíceis costumam sensibilizar os mais humanistas) porque faço uma analogia com o que está acontecendo: médicos precisam decidir quem ganha a vida e quem perde. Por pior que esteja esse país, por mais que pense em deixá-lo, quero estar com gente que compartilha minha busca por um mundo mais justo. Sei que em toda a parte do mundo tem essa gente, mas será que todos entenderiam as músicas do Chico Buarque como meus amigos? Saberiam o significado de saudade?

Se essa realidade nos tira o ar, por que não mergulhar numa leitura que nos devolva a esperança? Obrigada, Ana Mesquita, por me lembrar um pouco de quem fui e quem ainda posso ser.

 A Travessura do Canal da Mancha, Editora Grua

Autora: Ana Mesquita

1ª edição 2009, 2ª edição 2013