Réquiem para um cadáver insepulto – Por Lelê Teles

Em meio a grande agitação, gritaria e protestos, Napoleões de hospício e sebastianistas de araque virão à boca do palco

Foto: Redes sociais
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“Senhoras e senhores, trago boas novas.

Eu vi a cara da morte e ela estava viva”. Cazuza

Mestre Cafuna, o maior de todos os futurólogos, adiantou-me o que se passará no Brasil nas eleições de vinte e dois.

Faço um breve resumo aos tuiteiros preguiçosos: o Necrarca perde pelo voto expresso e cai da própria altura, o gado bípede surta e estabelece-se não mais que 15 minutos de uma algazarrante guerra civil.

Correria, xingamentos e foguetório.

O exército, chamado para conter os insurgentes, entra em cena com seus cães vira-latas, seus bacamartes enferrujados e suas tranqueiras fumacentas.

Muitos civis incivilizados morrem daquela que ficará conhecida como "bala pedida".

E, assim, finda a Revolta dos Canjicas, num breve e bisonho capítulo do nosso Capitólio na capital.

Agora, faço o relato literário que fiz aos sábios da minha aldeia, assim que retornei de um retiro.

Os leitores preguiçosos já podem se retirar.

Foi assim que tudo se passou:

Após vários meses lutando contra a depressão e a ansiedade, procurei refúgio na Tenda da Cafunagem.

Fui recebido pelo magnânimo Mestre Cafuna, criador  do cafunismo; o homem que cheirou os seis sovacos de Shiva.

Tive o prazer da companhia do sapientíssimo Cacique Papaku, polímata sem nenhuma formação formal.

E passamos a tarde nus como vimos ao mundo.

Ao longe, saltitantes sátiros com chifres retorcidos e patas de bode, tocavam, tântricamente, suas flatulantes flautas de pã.

Aves haviam em voos e voltas.

Estávamos às margens plácidas da cachoeira de Sofia de Iansã.

Cafuna, magro como um faquir, estava deitado em seu catre de pregos pontiagudos.

Papaku, em lótus, iogava numa esteira de palha de buriti.

Eu, por minha vez, permaneci esparramado numa cama feita de varas de bambu.

Sim, fumamos a erva do diabo.

Após longos exercícios de respiração diafragmática, cada um pegou um didgeridoo e passamos a soprá-los, em respiração circular, até desoxigenar o cérebro.

Então, leve como uma pluma, Cafuna abriu um portal para o futuro e tudo se mostrou diante de nossas vistas, claro e cristalino como num filme.

Relato, agora, o que os meus olhos viram e os meus ouvidos ouviram.

Prepara-te.

No ano da graça de vinte e dois deste nosso século, precisamente no dia 31 de outubro, é exatamente isso o que ocorrerá.

Haverá eleições, grande será a euforia.

Porém, o voto não será impresso e tudo terminará numa desgraçante catarse cívica, como num filme sertanejo de Glauber Rocha.

Em meio a grande agitação, gritaria e protestos, Napoleões de hospício e sebastianistas de araque virão à boca do palco.

Nesse dia, o diabo estará à solta na terra do sol.

Quais centauros hibridificados em motocas possantes, milicianos e playboys, treinados em stands de tiro, iniciarão o papoco.

O Necrarca, foice em punho, tocará o berrante, como um demônio a soprar as trombetas do inferno.

Os MotoBois, iracundos e belicosos, invadirão a praça dos três poderes.

Nesse dia, o nosso Capitólio será lavado a sangue.

Haverá choro e ranger de dentes.

Poucas horas antes da refrega final, em todos os estados da federação, o rebanho de gado bípede, brandindo archotes incandescentes, invadirá as zonas eleitorais ameaçando eleitores.

Aquelas imagens de machões votando com o cano da pistola, vistas nas eleições passadas, se multiplicarão mil vezes dessa vez.

Mesmo assim, a derrota dos facínoras será fragorosa.

O Pavão Misterioso será depenado em praça pública.

A mídia anunciará a vitória de Lula da Silva antes mesmo do resultado oficial, é que as pesquisas de boca de urna darão larga vantagem ao Barba.

Após o anúncio oficial do TSE, o Jornal Nacional exibirá o meme imorrível: foto, sala de apartamento, turma olhando pra tevê; no lugar da cara de Aécio, surgirá a face triste do Necrarca, ladeado por Hulk e Agripino; broxados.

Essa será a senha para a turba se assanhar.

Ensandecidos pelo clangor da derrota, senhores e senhoras da terceira idade, liderados pelo valente Bob Jefferson, preso pelo tornozelo como um papagaio doméstico, forçarão as paredes de vidro do STF.

Os 300 midiotas de Sara Winter, ressurretos, soltarão rojões no teto do palacete.

Uma mulher de pele lívida, nua, exibindo a cirurgia nos seios e marquinhas de  bronzeamento artificial, sexuará a estátua da justiça.

Salva de tiros, urros, coices e relinchos.

A pacata Brasília, sacolejada pela turba revoltosa, se converterá num misto de Itaguaí e Sucupira.

Assombrosas sombras serão projetadas na cúpula do Senado, como se os prisioneiros da caverna de Platão entrassem em convulsão.

Será uma noite de pavor e pânico.

Um homem, ostentando um par de chifres e vestindo um casaco de pele de rola de jumento, guiará os bravos desordeiros, faca nos dentes, pelos largos e frios corredores do palacete.

Ameaçarão tocar fogo nas vestes togosas de Moraes e Barroso, quadros são arrancados das paredes, estatuetas são decapitadas, livros rasgados abrasam pelo caminho.

Balas de borracha, cães e gases lacrimogêneos tentarão, debalde, aplacar a fúria dos insurgentes.

Surgirão botas, fuzis e capacetes.

Haverá troca de tiros, golpes de punhais e adagas, murro no olho, pernadas, dedadas, cabeçadas e rabos-de-arraia.

Ao final, estilhaços de vidro, sangue e corpos idosos forrarão o chão.

Fogo por todos os lados, cheiro de pólvora no ar.

Mas a refrega será breve e bravatosa, praticamente uma repetição d’A Revolta dos Canjicas da qual nos fala Machado de Assis, n’O Alienista.

Sob raios e trovoadas, cairá uma forte chuva dos céus, como se um deus arrependido chorasse a satanagem que fez com os brasileiros.

Pela manhã, um homem com crachá da prefeitura fará a contagem dos canjicas abatidos.

Os mortos serão recolhidos aos cemitérios e crematórios, os vivos irão para a tranca.

Ao fim da tarde, ao por do sol, na praça dos três poderes, de frente ao panteão, enorme bandeira rasgada ao alto, o tromPeTtista tocará, em marcha fúnebre, o fagueiro Lula Lá.

Assim, pós catarse, o Brasil voltará à sua anormalidade de sempre.

Mas nunca mais será tão fora do normal.

No fundo, essa loucura toda servirá para nos redimir; por isso é catártica.

Dessa vez, os militares, vacinados, aprenderão de uma vez por todas que são incompetentes para governar e que jamais serão vistos como as forças amadas.

Igrejas proibirão reverendos de tomar chope em shoppings, empresários da fé, os chamados malafaias, serão desmonetizados pelos dizimistas ressabiados.

ZeroZero, ZeroUm, ZeroDois, ZeroTrês e ZeroQuatro ocuparão uma cela na Papuda; bola de ferro nos calcanhares.

Queiróz tentará uma delação premiada, mas será um arquivo queimado assim que botar os pés fora da casa de Wasseff; ninguém sabe, ninguém viu.

O Véio da Havan, esquecido atrás da mobília empoeirada, sentirá no cangote o rugir do leão a lhe cobrar o que é devido, wolverínicas garras.

Os marecháis, uma vez marechados, calçarão as pantufas -, tampão nos olhos -, e descansarão o sono dos justos.

O Centrão, de bolso cheio, cretínicamente negará que apoiou o cadáver político insepulto.

Vaias, assovios e impropérios.

PMs, temendo um revoar de cídicas retroescavadeiras, voltarão aos quartéis; rabos murchos, ordem unida.

Eu, por minha vez, erguerei uma taça em libação, ao som da bela Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá, na voz de Elizeth Cardoso:

"Manhã, tão bonita manhã / de um dia feliz que chegou / o sol no céu surgiu / e em cada cor brilhou / voltou o sonho então ao coração...”

Nesse momento, aboletados num Rolls-Royce, Lula e Janja desfilam entre a multidão na Esplanada.

Chuva de papéis picados.

O povo, chorando e sorrindo, festeja o fim dos tempos trevosos.

“Canta o meu coração /  alegria voltou tão feliz / a manhã desse amor”.

Oremos ao senhor.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.