The Green Knight – Por Filippo Pitanga

Já começamos a ver prováveis candidatos ao Oscar 2022 chegando aos poucos ao circuito de plataformas de streaming e nas salas comerciais que já foram reabertas desde o avanço das vacinas

Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Na coluna da semana passada, falamos sobre um dos três melhores filmes lançados neste segundo semestre no circuito de festivais, plataformas de streaming ou salas comerciais, que foi “Carro Rei” de Renata Belo Pinheiro, e apenas mencionamos de leve os outros dois, que seriam “A Lenda de Candyman” de Nia DaCosta e “The Green Knight” de David Lowery. Pois agora, na coluna de hoje, iremos abordar este último, do mesmo diretor do Cult “Sombras da Vida” (“A Ghost Story”, 2017), e que acaba de estrear na Amazon Prime Vídeo britânica, acessível para quem assina com cartão de crédito internacional ou se tem acesso familiar e de amizades que morem lá. Decerto, um dos filmes mais impactantes em construção imagética e semiótica deste ano.

Poderíamos começar falando desta obra ímpar a partir de seu elenco encabeçado pelo trio irresistível formado por Dev Patel (“Quem quer ser um milionário?”, 2008), Alicia Vikander (“Ex Machina”, 2014) e Joel Edgerton (“Ao Cair da Noite”, 2017). Um triângulo amoroso que gira em torno do sobrinho do famoso Rei Artur da lenda de Excalibur, Gawain (Patel), e cujo interesse romântico é interpretado por mais de uma personagem na pele de Vikander, num fracionamento de seu duplo entre Patel e Edgerton: dois lados da mesma moeda, atraídos também um pelo outro, inclusive... – Algo bastante importante para a história, ou seja, analisar a faca de dois gumes de cada decisão que tomamos em vida.

Mas o mérito plástico deste colírio para os olhos vai muito além da atuação ou figurino – não obstante tudo estar harmonizado imageticamente, até mesmo os closes em expressões e na forma destas personagens recitarem parábolas e mentiras sobre vergonha e honra, sempre através de pequenos gestos quase velados.

Sem falar na semiótica das cores, que narram a história tanto quanto quaisquer diálogos poderiam, já que os 50 tons de verde e amarelo falam sobre as nuances inebriantes que vão da cura ao veneno, ambos provenientes da mesma origem de plantas, dependendo de seu uso. Um chiaroscuro entre a luz e as sombras, tipo pinturas renascentistas, para se falar da ambigüidade que todo ser humano carrega. Tudo graças à fotografia de Andrew Droz Palermo, parceiro habitual do diretor David Lowery, responsável por fazer as peças citadas acima parecerem encaixadas num quebra-cabeça pictórico, como cores e tintas pintadas à mão e envelhecidos para dar um ar de quadro antigo.

Mas como você sabe que um filme lhe afetou tão profundamente a ponto de você senti-lo dentro de si mesmo após a sessão? Como saber que lhe atravessou de tal forma que você consegue enxergar para além da bela pintura que lhe hipnotiza à primeira vista?

Quando escrevemos uma crítica de cinema, para além de falar dos dados objetivos que compõem a obra e quais identidades subjetivas estão envolvidas na execução da mesma, a fim de gerar um resultado que exceda as expectativas e aplique da melhor forma as potencialidades da sétima arte, antes de tudo nós nos perguntamos o que sentimos? Amor? Decepção? Ranço? Asco? Esta sensação pode provavelmente estar associada a alguma experiência pregressa do próprio espectador, e que facilita ou não com que mergulhe na arte. Quais são as memórias que um filme lhe desperta? Boas ou ruins? E tocá-las, inadvertidamente, conseguiria lhe trazer algum tipo de catarse transformadora?

Catarses nem sempre são indolores e amenas, muito pelo contrário. Apesar de filmes existirem também para nos divertir ou entreter, quando algo realmente possui o poder de nos gerar uma transformação, em geral este processo costuma ser profundo, lento e deixa cicatrizes emocionais. Por exemplo, quando mais jovem, um videogame impactou profundamente este crítico que vos escreve, com um jogo chamado “Shadow of The Colossus”.

Nele, você interpretava um andarilho solitário com seu cavalo num mundo gigantesco à caça de gigantes poderosos do velho mundo que resguardavam toda a magia ancestral: era dita a lenda que se derrubasse a todos (mesmo contra a vontade deles, pois, como todo ser vivo, eles não querem morrer), você receberia um poder inimaginável que poderia trazer até uma pessoa amada de volta à vida... O altíssimo custo seria que você daria fim a toda a magia de outrora, mergulhando a vida num realismo atroz que talvez muitos não fossem capazes de suportar. Você estaria disposto a pagar esse preço em troca da vida de uma única pessoa? E se ela não voltasse da forma que você se lembra? Valeria a pena? E se você estivesse no lugar de um destes gigantes, e sentisse o que eles sentiram ao ser derrubados, manteria o curso de seus atos? 

Estas perguntas ambíguas e ácidas poderiam parecer contidas num “simples” jogo eletrônico... E talvez jamais fôssemos sentir esta catarse à altura no cinema, até porque a fama de adaptações de games para a telona foi em grande parte de fracassos retumbantes. É difícil verter o livre arbítrio de um avatar virtual que você comanda num universo interativo para um filme com roteiro fechado e um caminho imutável.

A primeira vez que assisti a uma verdadeira catarse se utilizando de um game na vida real foi com o filme “Reine Sobre Mim” de Mike Binder (2007), que fazia uma analogia entre a queda dos Colossus com o atentado às torres gêmeas do World Trade Center na data de 11 de setembro de 2001. O protagonista, na pele de Adam Sandler, havia perdido sua família na tragédia, e passava a jogar num looping infinito, preso dentro de casa, o game “Shadow of the Colossus”, como se desejasse trazer de volta à vida seus entes amados. Não é uma adaptação direta, mas foi um dos melhores usos metalingüísticos que já havia visto entre duas mídias eletrônicas que não conseguiam uma fusão bem-sucedida até este ponto.

Eis que o novo filme “The Green Knight” de David Lowery (do Cult “A Ghost Story”, 2017), fazendo uma parábola da época medieval com toque gótico soturno e fantasia surrealista delirante, coloca o espectador de volta na lenda dos cavaleiros da Távola Redonda, a partir do sobrinho do Rei Artur... Uma adaptação do romance perdido do século XIV “Sir Gawain e o Cavaleiro Verde”, de autoria desconhecida, e que só foi ficar conhecido com sua publicação no século XIX. O diretor David Lowery atualiza o arquétipo clássico para o cinema com estéticas e questionamentos existencialistas que vão de intertextualidades com “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman (1957) a “Shadow of the Colossus”, surpreendentemente.

Mesmo se passando num período histórico da Idade Média que, apesar de sombrio e violentamente materialista, apelava bastante para explicações sobrenaturais sobre os mistérios da vida, essa atualização feita pelo cineasta acontece não apenas temporalmente, como também pela estética do cinema que costuma se debruçar sobre essa Era. Ele mistura gêneros narrativos desde a aventura épica à interiorização lírica, pincelando flertes com o horror psicológico ou o tom de fábula, como o próprio mito da lendária espada mágica de Excalibur já carregava em seu arquétipo original. 

Isso porque, a despeito do pedestal em que colocamos o mito clássico de personagens centrais a coadjuvantes do naipe de Lancelot, Morgana, Merlin e tantos outros que giram em torno de Camelot, o cerne da questão sobrevive a todos eles e se mantém quente diante dos tempos atuais. Existe uma forte carga histórica com sinalizadores verídicos advindos da realidade histórica, mesmo por sob tantas camadas do gênero fantástico. Vide temas atemporais como as relações de poder no governo despótico, medida pela força (simbolizada na nova versão pelo machado do cavaleiro verde); ou a extrema pobreza em meio à fome e à peste, num abismo social a orbitar vassalos em mendicância e sem moradia em torno dos castelos suntuosos e seus nobres, e etc.

Se a Idade Média começa com as chamadas ‘invasões bárbaras’ no antigo Império Romano clássico pela Europa, a grande verdade é que a forma de governo centralizada em figuras totalitárias e despóticas a impor sua autoridade pela força continua em plena vigência até hoje... Isso porque a própria lenda da espada Excalibur fundava uma espécie de poder incontestável e de origem divina que simplesmente precisava ser aceito: quem a empunhava devia ser obedecido. Seus exércitos ganhariam todas as batalhas e seriam invictos. O valor pessoal dos agentes da história pouco importava, e só serviam para provocar a própria derrocada até que outro pudesse herdar o trono (a famosa ‘lição de moral da história’ residia mais na derrota do que na vitória).

Divulgação

E o novo filme rejuvenesce o conto através da persona do sobrinho do famoso Artur, um herdeiro indireto na linha sucessória, de modo a que o poder seja discutido de forma um pouco mais ampla pelo conceito mais moderno e ambivalente da fama e da infâmia. O velho “falem mal, mas falem de mim”. A história começa justamente na visita de um misterioso e cavaleiro verde que dá título ao filme, e uma aposta ou desafio a ser aceito: quem aceitasse desferir um golpe contra o gigantesco oponente esmeralda, e derramasse seu sangue, teria direito a ficar com seu machado e a glória da vitória. Porém, haveria um revés: o mesmo golpe que ele desferisse deveria lhe ser desferido de volta, contado um ano depois desse primeiro encontro... E, da mesma forma com que o cavaleiro verde não reagiu e aceitou ser golpeado, o ganhador do desafio deveria aceitar ser golpeado de livre e espontânea vontade.

Dito isso, o sobrinho do Rei Artur, Gawain, acaba adquirindo toda a notoriedade por ter derrubado o cavaleiro verde, algo que pode voltar contra si quando for hora de cobrarem a dívida. Isso porque o jovem poderia ter desferido um golpe não mortal no algoz, contudo, cede à tentação de um ato supostamente glorioso, decepando o gigante que, por ser imortal, levanta e vai embora com a cabeça debaixo do braço. Lembrando que qualquer gota de sangue derramada poderia lhe valer a aposta, e não ser tão perigoso de cumprir a recíproca quando passasse um ano daquela data. Em outras palavras, a truculência da guerra e sua violência exacerbada muitas vezes eram somente metáfora de um coliseu moderno, de expor práticas selvagens de modo a saciar a sede do povo por carnificina, independente do alto custo que poderia advir.

A infâmia é importante aqui, especialmente porque existe outro elemento da história clássica trazido pro filme: o cinto mágico igualmente verde que deveria proteger Gawain da réplica do cavaleiro. Existe uma analogia com o poder das personagens místicas da trama com a busca pela integridade do poder, algo ambivalente desde a história original que contava com Morgana em contraponto a Merlin. Aqui, proporcionalmente, as mulheres não são garantia de um cumprimento da honra pelos homens em geral mesquinhos e ególatras, mas sim a possibilidade de testar seu caráter. De início, a mãe do protagonista, interpretada pela subestimada e maravilhosa Sarita Choudhury (de filmes como “Negócio das Arábias”), é a primeira a dar o cinto para seu filho, que será perdido por erros de julgamento na jornada de provações (assim como um bebê que cresce e se afasta do colo da matriarca). Sarita possui pouquíssimas falas, no entanto, rouba todas as cenas em que aparece, mostrando a força feminina do elenco.

Depois, uma das personagens encarnada por Alicia Vikander será a portadora que trará de volta o cinto de proteção, e que testará pela segunda vez a palavra do personagem de Dev Patel... Teria sido o cinto recuperado com honra? Seria justo confrontar a promessa feita ao cavaleiro verde com o auxílio mágico de um objeto que lhe dá extrema vantagem? Não seria um desequilíbrio da promessa? No conto original, este cinto dividido entre a vergonha e a ética será legado a todos os descendentes do Rei Artur como um lembrete dessa mesma provação.

Porém, no filme, o cinto possui destino diverso, bem como os desdobramentos do personagem de Joel Edgerton, que, no conto, seria também a identidade por trás do cavaleiro verde, e que aqui é igualmente modificado, já que o intérprete da voz do gigante é Ralph Ineson (“A Bruxa”, 2015), com seu impressionante timbre grave. Essas mudanças não deixam de ser bem aplicadas, levando-se em consideração o truque temporal que o cineasta David Lowery costuma aplicar em todas as suas obras. Aqui também, assim como em “A Ghost Story”, ele irá recorrer à metafísica através do espaço-tempo para estabelecer algumas surpresas ao olhar do espectador.

Divulgação

Se no longa-metragem anterior era a velocidade cíclica do relógio o principal dispositivo narrativo daquele fantasma interpretado por Casey Affleck, uma vez que o tempo se tornava único após a morte, e passado e futuro se confundissem, em “The Green Knight” veremos isso dar asas à suspensão da descrença de forma tão sutil que, quando o surrealismo chega, parece tão natural para nós quanto a espada Excalibur para os livros de história.

É talvez neste quesito que o filme mais se aproxima do clássico de Ingmar Bergman, “O Sétimo Selo”, onde passávamos a crer que a peste negra poderia ser encarnada pela própria morte, um ser lívido trajando manto preto e uma foice afiada em mãos a perseguir o elenco desafortunado... Parábolas com religião e ciência, lá e cá, tornam-se o salto para que cada alegoria dramatúrgica possa flertar com o non sense tal qual estivéssemos diante da morte de Bergman, a jogar xadrez na praia com um cavaleiro templário. Uma espécie de Road movie a cavalo.

O estofo filosófico de ambos estes filmes é muito próximo um do outro, pois não há desonra alguma em encarar a morte de frente sem ter nada a esconder ou mentir. Todavia, enquanto a obra de Bergman alternava entre o humor da caricatura e o drama sombrio, aqui o fato de “The Green Knight” ser produzido pela A24 Films decerto puxa o filme para uma pegada de horror psicológico, assinatura de grande parte dos trabalhos da produtora. Até mesmo parte do elenco de outro clássico distribuído por eles, “A Bruxa”, dirigido por Robert Eggers (2016), está presente no exemplar atual, como o já citado Ralph Ineson e Kate Dickie (a rainha esposa do Rei Artur).

Tal pegada estilística permite com que vejamos mulheres que podem ser bruxas ou fantasmas com tom naturalista, pois não saberemos distinguir suas particularidades até que elas nos revelem (como a interessante cena do lago, que nos atualiza também a dama do lago que entregava Excalibur, uma importante sacerdotisa de Avalon). Ou mesmo a raposa feita por computação gráfica que acompanha Gawain como no conto do Pequeno Príncipe, não mais absurda do que a cena de gigantes entre as montanhas a aludir diretamente ao jogo “Shadow of the Colossus”.

Reprodução

E nem seria a única seqüência que remete ao game, pois muito da ambientação e dos pastos e prados verdejantes que vão ficando cada vez mais sombrios podem se parecer muitíssimo com o jogo eletrônico na tônica do filme. Até mesmo o possível destino cruel que todo o poder do machado do cavaleiro verde é passível de conceder também se parece bastante com as reviravoltas obscuras envolvendo ambos protagonistas, tanto em “The Green Knight” quanto em “Shadow of The Colossus”, já que obter a pretensão cobiçada pode destruir qualquer sentido da magia nas duas histórias e aproximar a vontade egoísta dos dois indivíduos de déspotas indiferentes à humanidade do coletivo. Ambos conseguem o poder absoluto, mas a que custo?

Da mesma maneira, há muito neles de uma crítica à recente ascensão do conservadorismo nos países de maior poder no mundo, como os EUA. A queda das Torres Gêmeas acima citadas, que completou 20 anos em 2021, nunca foi uma ferida tão aberta quanto diante da retirada dos soldados norte-americanos do Afeganistão nos últimos meses. Uma saída estratégica nada inocente, que culminou de anos de manipulação desde muito antes da ocupação pelo exército de George W. Bush após o 11 de setembro e a guerra no país. Tudo isto vindo da influência na condução de territórios estrangeiros que são deixados confusos e revoltados quando alguém tenta ser seu padrasto e só sabia agir com violência como único testamento.

A Idade Média acabou por razões parecidas, quando de fato começaram a surgir Estados-Nações e, posteriormente, Repúblicas Democráticas de Direito. A decorrência de Guerras Frias ou sangrentas por disputas de poder mais se aproximam dos déspotas de antigamente do que de revoluções populares por igualdade de direitos para todos. Esta é a diferença de um governante ditador e um líder emancipador. Uma pessoa ciente de que a sua vida está ali para servir a todos, e não o inverso. Qual dos dois tipos estaria à altura dos colossos naturais da Terra para nos representar? Este é o fardo da ‘coroa’ (ou, atualmente, de uma faixa presidencial) que pode queimar a cabeça (ou o peito) sobre a qual ela se coloca.

Esta é a diferença não em se ostentar uma espada mágica como Excalibur ou o machado do cavaleiro verde servindo de legitimadores de extremismos, e sim a diferença entre saber a honra de ser detentor de tal poder e não precisar desembainhar sua lâmina sem necessidade. A diferença de ser consciente da proporcionalidade de seus atos e se responsabilizar por eles, não se permitindo esconder por trás de artifícios egoístas. E que lutar pelo que é certo é às vezes se sacrificar por uma causa maior em nome de todos. Isto sim deveria ser passado de pai para filho. E, mesmo numa história em que estamos falando mais de reis do que de rainhas, espere um pouco até a cena pós créditos em “The Green Knight” para ver que até o filme irá se posicionar em relação a outras representatividades que o presente nos oferece para além da estrutura patriarcal.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.