Virão outros Jacarezinhos? – Por Chico Alencar

Dos 27 moradores mortos, apenas quatro eram alvos de mandados de prisão. Os demais foram classificados como bandidos – pela cúpula da polícia e até pelo vice-presidente da República – porque moravam na favela

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O Brasil é sabidamente um dos países em que há mais violência contra as camadas populares no mundo. E o Rio se destaca neste quesito. Nos últimos anos tivemos muitas chacinas no estado. O pano de fundo de todas é a habitual violência contra os pobres – tratados como carne barata no mundo cão em que vivemos. Mas, cada uma dessas chacinas tem características e, às vezes, até motivações próprias.

Na chacina do Jacarezinho, semana passada, de início foram lembradas duas razões específicas para explicá-la.

A primeira, a morte de um policial logo no início da operação. Ela teria amplificado a selvageria, a "vingança", numa incursão que talvez, não fosse essa morte, seria igual a outras tantas outras.

Em seguida, surgiu outra explicação, a partir do crescimento das milícias no Rio e da cumplicidade da polícia com elas. O objetivo do massacre, então, seria uma limpeza de terreno para as milícias controlarem a comunidade. Registre-se que, ao contrário de outras facções criminosas, a que controla a venda de drogas no Jacarezinho é mais refratária a acordos com as milícias.

Depois outra possível motivação surgiu, talvez mais plausível: a chacina teria sido algo ligado à “grande política”, com raízes no Planalto, e com dois objetivos.

O primeiro, afrontar o STF, que tem sido uma pedra no sapato de Bolsonaro. O Supremo – por determinação do ministro Edson Fachin – proibira operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia, “salvo em ocasiões excepcionais” e sempre tendo que informar antes o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Ora, no caso não havia excepcionalidade e MP ou Defensoria não foram informados previamente.

Assim, o descumprimento à determinação da mais alta instância judicial seria uma tentativa de emparedar o STF. Se não houvesse uma reação do Supremo à altura, a corte estaria desmoralizada e se enfraqueceria. Bolsonaro avançaria uma casa, conquistando espaços no seu jogo de emparedar as instituições.

Mas, de acordo com essa interpretação, havia um segundo objetivo com a chacina: mudar a pauta do debate político, num momento em que Bolsonaro tem diante de si a CPI da Pandemia no Senado, que se afigura extremamente incômoda para ele.

A mudança de pauta ajudaria Bolsonaro. O combate ao crime é um terreno em que ele navega de forma mais cômoda e, estando no centro do cenário político, lhe permitiria buscar a retomada da iniciativa.

Assim, mesmo que as duas primeiras explicações aventadas – a morte do policial e a ajuda às milícias – possam ter sentido, a terceira teria sido determinante. Assim, a chacina teria sido de caso pensado, com aval de Bolsonaro e do governador Cláudio Castro, que, aliás, estiveram reunidos no Rio na véspera da operação.

Assim, diferentemente do que houve em outras ocasiões, essa operação não teria fugido ao controle dos policiais. Salvo em seu início, quando um agente morreu, transcorreu como planejada.

Praticamente não houve confronto, balas perdidas ou feridos (à exceção de dois passageiros do metrô que passa ao lado da favela). Não seria assim se tivesse havido troca de tiros com os traficantes.

A polícia entrou com uma força muito acima do costumeiro: eram vários “caveirões” e 250 policiais fortemente armados, com apoio de helicópteros blindados. Isso inibiu qualquer tentativa de resistência. Ela foi para matar.

Muitos jovens foram assassinados em suas casas ou na casa de vizinhos. A polícia dava ordens para que idosos, mulheres e crianças saíssem e, depois, matava os que considerava com “perfil de bandido”. Ela sequer sabia os nomes das vítimas. Mas já as classificava como criminosos e, como tal, já os condenava à morte. Sem passar pelo Judiciário e sem se importar com o fato de, no Brasil, não existir pena de morte.

Dos 27 moradores mortos, apenas quatro eram alvos de mandados de prisão. Os demais foram classificados como bandidos – pela cúpula da polícia e até pelo vice-presidente da República – porque moravam na favela. Simples assim.

As vítimas foram, assim, duplamente mortas. No momento da operação e, depois, quando tiveram a reputação assassinada.

Numa coletiva de imprensa no próprio dia da chacina, em entrevista na TV, um integrante da cúpula da polícia teve o desplante de acusar o Supremo, afirmando que seu “ativismo judicial” ajudava a criminalidade. Nada aconteceu com ele.

É preciso ver agora o que vai fazer o STF diante da afronta que sofreu. Já não reagiu prontamente. Fachin não tomou providências imediatas, preferindo mandar o caso para ser examinado pelo pleno do STF, o que só ocorrerá dia 21 deste mês de maio.

Resta, por fim, uma questão a examinar: se a hipótese aqui levantada – a de que a operação teve objetivos políticos, afrontar o STF e mudar a pauta do debate – fica a pergunta: até que ponto ela não terá sido o ponto de partida para outras do mesmo estilo e com os mesmos objetivos?

Se for isso, é preciso que os setores democráticos se preparem para a resistência.

Podem vir por aí – com apoio de Bolsonaro e sua gente – Jacarezinho 2, 3, 4 e assim por diante.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.