Vitrolas, plataformas de streaming e a música nossa de cada dia

O leitor incauto que resolver presentear alguém com um disco, seja ele CD ou LP, é capaz de ouvir que o presenteado nem tem onde tocar o artefato

Foto: Vitor Santos/Divulgação
Escrito en OPINIÃO el
O disco acabou. Este talvez tenha sido o primeiro Natal da história onde ninguém – ou quase ninguém – deu discos de presente. Os artistas costumavam guardar esta data para seus lançamentos. Não pouco tempo que lembro de ver as lojas cheias por esta época, gente pedindo indicações etc. Pois é. Acabou. O leitor incauto que resolver presentear alguém com um disco, seja ele CD ou LP, é capaz de ouvir que o presenteado nem tem onde tocar o artefato. Algumas lojas, no entanto, ainda resistem e vendem, sobretudo usados, de todos os formatos. Estava numa dessas lojas por estes dias e uma garota, que devia beirar os vinte anos, perguntou onde poderia comprar uma vitrola. O dono da loja espantado deu algumas indicações: “em São Paulo, pela internet” etc. Não resisti e perguntei pra que ela queria uma vitrola: “você têm muitos LPs?”. Ela sorriu e disse que não, não tinha nenhuma, mas que pretendia começar a comprá-los. Não precisei perguntar mais nada. Ela mesma seguiu contando que adorava as capas, as informações, a arte dos álbuns, a ficha técnica etc. Ao ouvir pelas plataformas de streaming mal conseguia saber o que tocava, a época da gravação, informação alguma. E, o que é pior, nunca mais iria ouvir aquela canção novamente. A moça reclamava da relação fugaz com as playlists que costumava ouvir. Mesmo os álbuns que salvava acabavam perdidos naquele mundo imenso de canções, álbuns e gravações. Tudo, no final das contas, parecia uma coisa só. O disco “Transa”, do Caetano Veloso, por exemplo, se mistura com um outro qualquer, mais recente do mesmo artista. E tudo, no final das contas, se embaralha num mesmo signo, apesar de terem, muitas vezes, quatro décadas que os separam. Ao ouvir aquela explanação simples e direta daquela pré-adolescente, que mal entrava na idade adulta e toda a sua trajetória tinha sido cumprida entre arquivos digitais, achei aquilo tudo muito curioso. Sou entusiasta da tecnologia, não me atrapalho nem um pouco com ela e, muito ao contrário, acho uma benção carregar todos os discos do mundo no bolso. Mas ali, naquele momento, me dei conta de um pequeno detalhe que muda tudo. Cresci e passei a vida ouvindo discos que ganharam apelidos por conta de suas capas. O “Álbum Branco”, dos Beatles, o “Velho Lenhador”, do Led Zeppelin e por aí afora. São objetos que aprendemos a amar e são inseparáveis de suas embalagens. Na música por streaming não há objeto. Quem são os músicos que participam? Que instrumentos tocam? Quem produziu a gravação? Onde ela foi feita? Estas entre tantas outras perguntas estavam lá, à nossa disposição. Ouvir música fazia parte da arte do convívio. Ir à casa de amigos e vice e versa, ouvir com a capa na mão lendo o encarte, suas fotos, imaginar cada passo da gravação. Por outro lado, é dado a este novo mundo a oportunidade de ouvir a música pela música. Não há nenhum apelo a não ser o som que, no final das contas, é mesmo o que interessa. Aos curiosos, como aquela moça, resta correr atrás de LPs – e um local adequado para tocá-los – ou procurar as informações sobre as gravações na internet, é claro. A música, que é o centro de tudo, sempre vai estar por aí, intacta, profusa e pronta para nós.  

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