Afetos indomáveis – MOV dia 3

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O Sorriso de Dora

As coincidências muitas vezes não são mais que uma construção aliada de eventos que eventualmente vão se deparar e ficar visíveis frente a frente. Por exemplo, a insatisfação de um grupo que produz cinema na cidade do Recife com o curso da UFPE — partindo de uma justificativa nefasta de que este não estaria ainda nutrindo o mercado de audiovisual pernambucano, como se fosse o único motivo para se existir um curso — estava ligada à construção de um festival de cinema exclusivamente com filmes universitários apenas por um debate ideológico silencioso. É interessantíssimo que as duas perspectivas venham à luz quase ao mesmo tempo, com o MOV – I Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco começando pouco mais de um mês depois de acaloradas discussões nas redes sociais sobre a validade do curso local.

E aí o MOV se encontra na ingrata missão de responder à pergunta da vez “E aí? Como anda a produção universitária local em relação à brasileira e brasileira em relação ao resto do mundo?”. Não é saudável que se olhe para cada filme como um atestado da qualidade de seu meio de estudo, até porque o cinema mais interessante, acredito, é construído aos poucos pelos seus realizadores, passo a passo. Não gosto de Ventos de Agosto (Gabriel Mascaro, 2014) e tem crescido em mim incômodos com Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014), mas isso de maneira alguma significa uma crise na produção local. Primeiro porque, lógico, nem as minhas impressões nem as de ninguém isoladas determinam o valor de filme. E segundo porque, mesmo que eles sejam realmente problemáticos, não estarão invalidados dois trabalhos espetaculares de construção do cinema como são os de Mascaro e Pedroso. Criticar Um Lugar ao Sol (Mascaro, 2009), por exemplo, já virou lugar-comum, e todos os problemas do filme são certamente reais, mas o quanto ele não é essencial como parte da busca de seu diretor? É lindo que possamos ver Doméstica (Mascaro, 2012) dialogando com um filme anterior, aprendendo com ele.

Então voltamos à questão: como está o cinema universitário? Três dias de MOV e principalmente o dia de ontem talvez sejam o bastante para responder, com pouca pretensão, “Muito bem, obrigado”. Lógico que ainda há longos caminhos a serem percorridos por esses cineastas, mas a estrada está visível, é isso que importa. Hiperselva (Helena Lessa, Jorge Polo, Lucas Andrade e Pedro Lessa, RJ), Tenho um Dragão que Mora Comigo(Wislan Esmeraldo, CE), Autoridade(Danilo Daher, PR), O Sorriso de Dora (Diogo Condé, PE) e Nua por dentro do couro (Lucas Sá, RS) demonstram um interesse criativo pessoal atrelado a um belíssimo descaso com o que é considerado correto dentro da estética cinematográfica contemporânea. Gosto muitíssimo do texto de Ivana Bentes para Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014), em que ela define o filme como uma ficção-científica que deu errado, sem glamour e sem cinefilia. Sem concordar com Ivana no “sem cinefilia” — porque acho que o fascínio pela narrativa audiovisual é bastante cinéfilo —, mas entendendo a significação que ela dá à palavra, acho que o mesmo pode ser dito dos quatro primeiros filmes do programa nacional (pois Nua tem uma mise-en-scèneque realmente se destaca em relação aos outros). Inclusive, que maravilhoso nome a curadoria do festival deu ao programa! Afetos indomáveis deve ser realmente a melhor maneira de descrever esse cinema. Nenhum dos cinco se repete dentro da linguagem, nenhum também poderia ser feito por qualquer outra pessoa.


Os filmes tampouco fazem uma tentativa de esconder suas falhas. Estas são muito humanas e inocentes, nada arrogantes, como as cartelas que desnecessariamente explicam o filme ao final de O Sorriso de Dora e perturbam o que seria um filme claramente melhor e mais “puro” ou o laranja chapado de Tenho um Dragão que Mora Comigo. Seus tropeços têm o charme de um cinema que vive, está inquieto e desconfortável e que, mais importante, não se reconhece completo, porque nunca foi e nunca será.