Heli

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Armando Espitia em Heli

A violência tem sido usada com muito fascínio pelo Cinema. Não se trata de uma manipulação unilateralmente condenável de cineastas mais sangrentos. É apenas mais uma manifestação do sensacionalismo — e não entendam pela palavra um sentido pejorativo ou que suponho a violência dos filmes distante da realidade; o filme violento, e que expõe visualmente sua violência, é sensacionalista da mesma forma que um melodrama com crianças morrendo de câncer também é, utilizando-se de extremos para gerar generalizada comoção.

É lógico que isso não pode ser dito sobre qualquer filme violento. Mas o elemento gore, que vem sido muito superficialmente associado a cineastas icônicos como Quentin Tarantino, é frequentemente posto como o êxtase da narrativa. Consideremos os contos de vingança do próprio Tarantino. Há neles a violência repulsiva que justifica a violência celebrada. Vi no cinema dois filmes do diretor, Pulp Fiction e Django Livre, nos dois casos presenciei e vivi a adrenalina de uma plateia que delirava com a vitória sangrenta dos heróis e anti-heróis na tela. Tínhamos bons motivos para o delírio coletivo: uma cena de justiça sendo feita em um filme de Tarantino é necessariamente belíssima, vibrante, verdadeira pérola cinematográfica, como também era o caso nos macarrônicos filmes da infância do diretor.

Não é esse tipo de violência, porém, que se apresenta em Heli (Amat Escalante, 2013), filme mexicano que levou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes 2013. A violência em Heli é horrível, nojenta, quase insuportável. O filme se apressa em anunciar o tom da narrativa no primeiro momento, com um prólogo em flashfoward. As imagens desse primeiro choque permanecem como lembrança na tela por todo o primeiro ato do filme, é um aviso de que tudo está prestes a ficar pior.

Heli encontra pares entre as narrativas do subdesenvolvimento que tem sido trazidas ao Cinema já há várias décadas. Filmes como Maria Cheia de Graça (Joshua Marston, 2013), Ratas, Ratones, Rateros (Sebastián Cordero, 1999), 7 Caixas (Juan Carlos Maneglia, Tana Schembori, 2012), Amores Brutos (Alejandro Gonzales Iñárritu, 2000) e os brasileiros Pixote: a lei do mais fraco (Hector Babenco, 1981), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Tropa de Elite(José Padilha, 2013), embora cada um com sua particularidade, são parte de uma leitura comum da América Latina e, com a única exceção de Marston, uma leitura também latino-americana.

Como outras representações do nosso subdesenvolvimento, Heli também não confia na sua polícia. Quando não corrupta, ela é especialmente ineficaz. Ela não é aqui, como nos dois filmes da saga de Padilha, um bom ideal corrompido. A polícia como pintada por Escalante é ideologicamente podre. Cenas de tortura e um estranho assédio sexual são anunciadas por um treinamento humilhante — que ajuda a criar nos personagens uma absurda noção de masculinidade — e um evento público feito para a destruição de quantidades exorbitantes de maconha e cocaína apreendidas. É tudo parte da construção política da sociedade como observada pelo filme. É estranho e pode ser até cômico em alguns momentos (como um garoto que preenche o vazio de um palanque político e o namorado que levanta a própria namorada como expressão de macheza), mas, na maioria das vezes, é plenamente repulsivo.

Heli contrapõe a sua violência masculina ao afeto, à dor e aceitação das suas personagens femininas. As mulheres e garotas do filme nunca escondem sua feminilidade. Vemos com destaque e clareza rodas de saia, seios, anéis em formato de coração. Um garoto efeminado se recusa a participar da tortura, uma mulher lavando roupa ao fundo a repreende com o olhar. Mesmo a investida feminina, em Heli, não tem a mesma conotação da masculina, é mais delicada, sensual e erótica. Algumas personagens recusam o sexo, mas talvez apenas porque são noções distintas de afeto e de relação sexual. O casal protagonista do filme segue uma trajetória contrária àquela de Bonnie e Clyde no clássico de Arthur Penn. É apenas quando Heli conquista sua vingança que eles conseguem finalmente restabelecer sua relação sexual.

É uma associação clara e forte feita pelo final do filme. Parece até óbvio que Escalante está tentando provar alguma coisa com ele. Mas o quê? Talvez Heli precise se impôr a uma sociedade repressora para ser aceito por sua esposa. Não é uma resposta que me agrada muito e pode muito bem não estar correta (a trajetória de repulsa à violência que o filme seguia até o final me faz acreditar que não é). Alguma coisa no desfecho não desceu e me arrancou para fora do filme e dos personagens. Vale uma revisão, vou com o estômago limpo.

Andrea Vergara e Juan Eduardo Palacios em Heli