Laranja Mecânica, por Roger Ebert (1972)

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A relação da Crítica com a cinefilia pode ir além do "concordo", "não concordo". A Crítica traz individualidades ao debate sobre um filme. E poucas críticas que conheço são tão pessoais e cheias de sentimento — neste caso, raiva quanto esta. Publico-a não por representar alguma visão complementar que tenho do filme, mas porque acredito que amplie o quadro de leituras sobre ele, e o faz com muito fervor.


Malcolm McDowell em Laranja Mecânica

Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, é uma bagunça ideológica, uma fantasia de paranoia direitista mascarada como aviso orwelliano. Finge se opor à instituição policial e ao controle forçado da mente, mas tudo o que realmente faz é celebrar a canalhice de seu herói, Alex.

Eu não sei como explicar meu nojo por Alex (de quem Kubrick gosta muito, como seu estilo visual revela e como veremos em um instante). Alex é o tipo de pessoa estranha e assustadora com quem todos nos cruzamos algumas vezes em nossas vidas — normalmente quando ele e nós éramos crianças, e ele estava menos disposto a esconder seus hobbies. Ele devia ser o tipo de criança que tirava as asas de uma mosca e comia formigas só porque isso era muito nojento. Ele era a criança que sempre parecia saber mais sobre sexo que todo mundo também — principalmente as partes mais sujas.

Alex cresceu em Laranja Mecânica e agora ele é um estuprador sádico. Eu entendo que chamá-lo de estuprador sádico — de forma tão simples — é estereotipizar um pouco o pobre Alex. Mas Kubrick não nos dá muito além disso, exceto que Alex gosta muito de Beethoven. Por que ele gosta de Beethoven nunca é explicado. Mas a minha noção é que Alex gosta de Beethoven do mesmo jeito que Kubrick gosta de encher sua trilha sonora com músicas clássicas familiares — pra adicionar uma simpática, e barata, dimensão de fim de mundo.

Agora, Alex não é o anti-herói alerta de classe trabalhadora que tínhamos nos raivosos filmes britânicos do início dos anos 1960. Nenhum esforço é feito para explicar como ele funciona por dentro ou a sua sociedade. De fato, não há muito o que se explicar. Tanto Alex quanto sua sociedade são abstrações de pop-art de nariz empinado. Kubrick não criou um mundo futurista na sua imaginação — ele criou uma decoração fashionista [trendy decor, no original]. Se cairmos pelo papo de Kubrick e dissermos que Alex é violento porque “a sociedade não oferece a ele nenhuma outra alternativa”, pobrezinho, estamos apenas arrumando desculpas.

Alex é violento porque é necessário que ele seja violento para que o filme possa entreter do jeito que Kubrick pretende. Alex foi feito um estuprador sádico não pela sociedade, não pelos seus pais, não pela polícia, não pela centralização e não pelo fascismo bizarro — mas pelo produtor, roteirista e diretor deste filme, Stanley Kubrick. Diretores às vezes ficam complacentes e falam sobre suas criações na terceira pessoa, como se a sociedade tivesse realmente criado Alex. Mas isso faria da sua escrita uma espécie de fluxo cinematográfico natural. Não, eu acho que Kubrick está sendo muito modesto: Alex é todo dele.

Eu digo isso em plena consciência de que Laranja Mecânica é uma adaptação, de certa forma bem fiel, de um romance de Anthony Burgess. Ainda assim eu não coloco isso na conta de Burgess. Kubrick usou elementos visuais para alterar o ponto de vista do livro e nos direcionar a uma parceria concessiva com Alex.

O artifício de fotografia mais óbvio de Kubrick desta vez é a objetiva grande-angular. Acostumada com objetos bastante próximos da câmera, essas lentes tendem a distorcer os lados da imagem. Os objetos no centro da tela parecem normais, mas aqueles às margens tendem a esticar para cima e para fora, ficando bizarramente alongados. Kubrick usa a grande-angular quase toda vez que vai mostrar um evento a partir do ponto de vista de Alex; isso nos encoraja a ver o mundo como Alex vê, um hospício de pessoas esquisitas que o perseguem.

Sempre que Kubrick nos mostra Alex, ele ou o coloca no centro de um plano com a grande-angular (para que Alex apenas tenha dimensões humanas normais) ou usa as lentes padrões, que não distorcem. Então a impressão visual que construímos durante o filme é que Alex, e apenas Alex, é normal.

Kubrick tem alguns outros bons truques para construir Alex como um herói ao invés de um canalha. Ele gosta de filmar Alex de cima, permitindo-o olhar para nós por debaixo da sobrancelha caída. Esse também era o ângulo favorito de Kubrick nos close-ups de 2001: Uma Odisseia no Espaço, e, em ambos, o diretor põe a ênfase da luz nos olhos. Isso dá a seus personagens um olhar messiânico levemente assustador.

E aí, no final de Laranja Mecância, Kubrick faz todo o tipo de referência às cenas de quarto (e banheiro) do final de 2001. O ecoar da água enquanto Alex toma banho nos lembra indiretamente dos efeitos sonoros no quarto de 2001, então Alex se senta à mesa para um copo de vinho. Ele é filmado do mesmo ângulo que Kubrick usa em 2001 para nos mostrar Keir Dullea no jantar. E então tem até um plano por trás, mostrando Alex se virando enquanto engole o vinho.

Isso não é só uma simples declaração visual, penso eu. Kubrick usou os planos finais de 2001 para trazer seu viajante à Criança Espacial que termina o filme. A criança, você se lembrará, vira para nós seus grandes e assustadores olhos e é nossa salvadora. Meio que da mesma forma, Alex se torna uma criança de olhos abugalhados no final de Laranja Mecânica e sorri maliciosamente enquanto tem uma fantasia de estupro. Nós agora devemos celebrar que ele está curado do seu programa antiestupro e antiviolência, forçado a ele pela sociedade durante seu processo de “reabilitação”.

O que diabos Kubrick pretende aqui? Ele realmente quer que nos identifiquemos com a inclinação antissocial da vidinha psicopática de Alex? Em um mundo em que a sociedade é criminosa, é claro, um homem bom deve viver fora da lei. Mas isso não é o que Kubrick está dizendo. Ele parece de fato estar implicando algo mais simples e perigoso: que em um mundo em que a sociedade é criminosa, o cidadão pode muito bem sê-lo, também.

Bem, basta de filosofia. Nós provavelmente vamos debater Laranja Mecânica por um longo tempo — longo, cansativo e sem sentido. O establishment da crítica nova-yorkina nos garantiu isso. Eles perderam o trem em 2001, então talvez estejam querendo alcançar Kubrick neste. Ou talvez as revistas semanais só precisassem de um filme para matéria de capa na edição de Natal.

Eu não sei. Mas eles realmente propagandearam Laranja Mecânica por mais do que vale, e um monte de pessoas irá conferir ao menos pela curiosidade. Uma pena. Em adição às coisas que mencionei acima — coisas que me deixaram com muita raiva — Laranja Mecânica comete outro, talvez ainda mais imperdoável, pecado artístico. É plenamente falastrão e entediante. Você sabe que há algo de errado com um filme quando o último terço parece a última metade.