O confronto americano de Um Bonde Chamado Desejo

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A-Streetcar-Named-Desire-7 (1) Nenhuma peça teatral do século XX encontrou tanta repercussão cultural quanto Um Bonde Chamado Desejo, a obra-prima de Tennessee Williams. O conflito entre Blanche DuBois, Stanley Kowalsky e Stella ainda é aludido em comédias que brincam com o lirismo e o drama do texto e a afetação dos personagens. O grito desesperado por “Stella!” e a frase final de Blanche, “Eu sempre confiei na gentileza de estranhos”, conquistaram uma existência pop independente do contexto da peça. Debaixo dessa superfície referencial, revela-se a outra genialidade do texto de Williams: sua perspicácia social, histórica e humana. Mais importante que a excentricidade de DuBois e a brutalidade de Stanley é o confronto entre as suas maneiras, duas caricaturas da própria resistência na cidade. Já me referi a Williams como realista e estava errado. Um Bonde Chamado Desejo utiliza-se de uma alegoria que os estereótipos da nossa sociedade nos permitem. Há, representada no enfrentamento entre os protagonistas, não uma batalha entre feminino e masculino ou riqueza e pobreza, mas entre símbolos de feminilidade e masculinidade e entendimentos de classe. Blue Jasmine, a óbvia releitura de Woody Allen para a obra, falha ao trazer uma Blanche e uma Stella, mas nenhum Kowalsky. Privada de seu oposto, Blanche está fadada a um julgamento injusto. Sem a masculinidade de Stanley, não há a feminilidade de sua rival, e à DuBois de Cate Blanchett não restou nada além da loucura e da obsessão elitista. Infelizmente, nunca vi uma apresentação da peça, apenas li o texto e vi o maravilhoso Uma Rua Chamada Pecado, adaptação de Elia Kazan para o cinema. Kazan, apesar de ser um dos representantes mais próximos do realismo social na Hollywood Clássica, dirigindo a propaganda antissocialista Sindicato de Ladrões, adota uma estética quase surreal para o universo daqueles personagens. O quarteirão onde vive o casal Kowalsky parece estar sobrevoando a cidade isolado, separado de todo o resto pela fumaça das fábricas e dos cigarros, iluminado por faróis inconstantes dos carros ou do tal Bonde chamado Desejo, que trouxe Blanche do mundo terreno. O filme também é engrandecido pelas atuações de Vivian Leigh e Marlon Brando, que representam com perfeição os símbolos de seus personagens. Brando, um ícone da masculinidade no cinema, nunca teve uma macheza tão sexualizada como aqui. Ele a usa como uma força contra Blanche, assim como Blanche utiliza Belle Reeve, a fazenda perdida, contra ele, o “polaco” sem terras. A Blanche de Leigh é uma senhora da antiga sociedade em decadência. Sem Belle Reeve, ela enfrenta o rancor daqueles a quem estava acostumada a passar ordens e não ser questionada. A sua dubiedade moral é uma possibilidade para Kowalsky expô-la como uma mulher menor, e da mesma maneira ela o entende como homem. Blanche esconde o passado da Belle Reeve perdida, da morte de seu amado, de estranhos em quartos de hotel. Apesar de entendermos que sua irmã, Stella, esteve em Belle Reeve em algum momento do passado, não há clareza sobre como ela foi parar ali. Stanley, o “polaco”, precisa berrar pra se fazer entendido, sem sucesso, como americano. Naquele quarteirão, como em qualquer quarteirão de subúrbio nos EUA ou na América pós-colonial, são todos estrangeiros conduzidos até ali pelo Bonde Desejo. Confinados em um mesmo espaço, eles terão que suportar a força da sexualidade alheia. Para fugir dela, Blanche e Stanley procuram minimizá-la com insultos elitistas ou machistas. Eventualmente, os dois se levam à destruição, perdendo ambos o seu ponto de equilíbrio: Stella, mulher e pobre. Mas o texto de Williams não é tão imparcial assim. Embora perca a esposa, Stanley é bem-sucedido em levar Blanche à loucura pela culpa em uma sádica vingança de classe. Antes de deixar a peça, ela confessa que sempre confiou “na gentileza de estranhos”, talvez não visse nenhuma outra saída desde que, com Belle Reeve, perdera todo o seu poder. Diferente da masculinidade de Stanley, a feminilidade de Blanche está sempre em jogo, a sua luta foi por mantê-la, escondendo o rosto nas sombras para não revelar sua idade. Quando desmascarada como uma “não-mulher”, como uma mulher que não compreende os símbolos que a sociedade impôs a ela, Blanche enlouquece. A questão do manter-se mulher em uma sociedade machista foi muito cara a Williams. Não quero repetir aquelas bobagens que dizem sobre músico x ou y compreenderem a “alma feminina”, acho que o que Williams compreendia então era a delicadíssima posição social em que a mulher se encontrava (e ainda se encontra), jogando cuidadosamente com os seus símbolos para sobreviver.