O futuro das ruínas em "Era uma vez Brasília", por Alan Campos

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Antes da exibição do longa em competição, Era Uma Vez Brasília (Adirley Queirós, 2017), a décima edição do Janela Internacional de Cinema no Recife sabiamente acertou ao exibir o curta apocalíptico Vacancy (Matthias Muller, 1999). A obra retira quase que por completo a presença humana de suas imagens de arquivo, restando uma cidade fantasma que, enfatizada por uma narração ensaística, desloca nosso olhar em direção aos caminhos possíveis a partir das imagens do nascimento de Brasília. Caminhos que apontam para sua construção, seu ideal de futuro e seu rastro inumano legado ao tempo presente daquelas imagens. O deserto de sua gênese nos é direcionado por uma perspectiva quase alienígena de um futuro tão inexato quanto desolador. Vacancy possui uma nostalgia pelo gesto criador, por voltar às primeiras imagens de uma cidade realizada sob a promessa de um futuro. A tendência ao apagamento da figura humana povoa a cidade com assombrações. O futuro dessa Brasília não foi alcançado, é necessário um retorno, é necessário uma recuperação, é necessário que os fantasmas ressurjam no embate da narração melancólica com a sensação de terra arrasada que as imagens possuem. A terra arrasada também é presente em Era Uma Vez Brasília, tanto na cidade táctil, quanto na cidade fantasma – essa que vive apenas idealmente. Branco Sai, Preto Fica (2014) – filme anterior de Adirley Queirós – falava da insurgência, da força que vinha de baixo em direção a superfície, era um filme ebulição, partículas agitando-se de maneira violenta, o ponto de mudança. Brasília é filme em estado gasoso, dissipado, e em constante ameaça de mudança para outro estado. Mais lento e meditativo do que Branco Sai..., Brasília possui predileção pelo plano longo, pela ação inacabada, pela estagnação diante da força externa, pela suspensão temporal da fruição da narrativa – constantemente somos compelidos a observar a duração de certas atividades, ou a falta delas, sem cortes: um carro pegando fogo, um cadeirante diante do palácio do planalto, um homem escutando música, etc. Há ainda o excesso de temporalidades: o deslocar do viajante do tempo em direção a 1957 para assassinar o então presidente Juscelino Kubitschek, os áudios de Temer ao assumir posse, o discurso de Dilma ao deixar o cargo da presidência. A Brasília do filme é constantemente anacronizada, um palco para atravessamentos. Assim como Vacancy, Era Uma Vez Brasília é um filme desnorteado por caminhos que nos levam ao passado, ao presente e ao futuro, fazendo permear uma sensação de uma impossibilidade de se conhecer Brasília unilateralmente. A cidade se torna menos um espaço material e mais jorro de marcas temporais – atreladas a sensações diversas, como o lento e o angustiante – de suas diversas encarnações: a nostalgia da promessa do futuro de 50 anos atrás, a cidade que sofreu um golpe de estado, os personagens periféricos. Através do nível de elementos da ficção cientifica, Brasília emaranha suas histórias, personagens e temporalidades pelo estranhamento em contato com a cidade. Este é um filme onde o presente de seus momentos não é alcançado, um filme que anda em círculos, por ações que chegam a lugar algum, ocasionando em uma espécie de claustrofobia pelo excesso. O vagar em busca de algo coexiste com a imobilidade diante de algo (normalmente, um elemento fora do quadro, como o som dos deputados votando a favor do impeachment). Gestos que não existem relativos a uma intencionalidade clara por parte do roteiro, e sim devido a polaridade do filme em se apoiar na sensação de inquietude junto com a de aprisionamento. Um filme imerso em diversos “prestes a...”. O que coloca Era Uma Vez Brasília em destaque na cinematografia nacional é sua capacidade de nunca cair na obviedade de seus elementos, nunca recorrer ao didatismo formal ou narrativo que promove um fim definitivo. Um filme relativo à experiência diante da lentidão, mas também um ensaio sobre o choque das brasílias que existem e sobrevivem. Para o filme ensaiar sobre a cidade, é necessário ir aos rastros, suas ruínas. A câmera de Adirley registra a decomposição, o estado deteriorado da materialidade, indo à cidade através da madeira crepitando, do fogo consumindo os restos, dos dejetos abandonados. Um espaço que busca passados, que evoca ausências. Ao recuperar a própria materialidade desses elementos e acontecimentos, Adirley dimensiona seu filme para a representação de um espaço à mercê do tempo, mas ele também joga seu espectador à deriva nesse lugar, fazendo-o apreender aquela realidade por sensações. Criar a memória de um futuro, memoriar um golpe de estado, imaginar uma missão de assassinato no passado. Reanimar e desenvolver tensões a partir do concreto e do idealizado. Estar à espera de uma ruptura, de uma explosão. Pois Brasília nunca fez calar as vozes da promessa do futuro idílico – como é exposto na fala de Temer no filme –, e o que é apresentando em Era Uma Vez Brasília é o incessante deslocamento diante das ruínas. Entre um desaparecer e uma eterna promessa de renascer.