O Homem das Multidões

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Cidade a formigar, cheia de sonhos, onde
O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante
Flui o mistério em cada esquina, cada fronde,
Cada estreito canal do colosso possante.

Certa manhã, quando na rua triste e alheia,
As casas, a esgueirar-se no úmido vapor,
Simulavam dois cais de um rio em plena cheia,
E em que, cenário semelhante à alma do ator,


Uma névoa encardida enchia todo o espaço,

Eu ia, qual herói de nervos retesados,
A discutir com meu espírito ermo e lasso

Por vielas onde ecoavam carroções pesados.
Baudelaire
É perigoso dizer que um novo movimento artístico está surgindo, consolidando-se ou desaparecendo, pois qualquer bagagem que o crítico que o afirmar tenha pode não ser uma amostragem suficiente para sustentar isso como verdade. Como eu vejo, o Cinema Brasileiro está passando por uma transição temática e estilística muito curiosa em relação ao Cinema da Retomada. Este, encantado com a nova e crescente possibilidade econômica de produção de filmes, reafirmou a identidade brasileira numa busca regionalista, que favoreceria aqueles fora do eixo Rio-São Paulo — o interior destes estados já era há décadas perfeitamente visível nas telenovelas. Fala-se muito da produção cinematográfica pernambucana do fim dos anos 1990 e primeiros anos do novo século, mas vale lembrar também que um dos mais assistidos clássicos da retomada, Central do Brasil (Walter Salles, 1998), cruza o País em direção ao Nordeste e que vários filmes cariocas, com produção, atores e modos de filmagem da televisão carioca, eram rodados no Nordeste e contavam histórias do Nordeste.

O cinema autoral que tem sido feito no Brasil desde o início desta década, embora também social regional, vem quebrando a necessidade de afirmação social e regional — presente na caracterização do cenário e dos personagens e num roteiro ávido por acentuar qualquer característica que se mostre divergente da cultura de classe média difundida pela televisão do Sudeste. Defendo Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (Karin Aïnouz, Marcelo Gomes, 2009) como essa ruptura desabafada. No filme, um homem narra sua viagem pelo interior do Nordeste em uma carta de amor que provavelmente nunca será entregue. Exausto, ele se depara com a contradição de seus sentimentos pelas imagens que encontra no caminho.

Em O Homem das Multidões (Marcelo Gomes e Cao Guimarães, 2013), os personagens procuram uma forma se perder dentro da cidade filmada. O quadro, já incomumente apertado, deve achá-los no meio do mar de gente. E é tanta gente abarrotando — em um passo uniforme — a estreita imagem, que deveria ser fácil para o protagonista escapar da atenção da câmera. Não é. Nós o achamos por trás de abraços carinhosos em um casamento, no meio de uma avenida lotada e até quando ele, tentando nos despistar, desce uma escada rolante logo depois de subi-la.

O flâneurde Edgar Allan Poe em Belo Horizonte se chama Juvenal (Paulo André) e se comporta como bem se comportaria na Paris do século XIX, rejeitando a frieza da cidade moderna ao misturar-se a ela. Se a uniformidade é parte característica da cidade, também o é o flâneur. Ele é sempre o mais deslocado e silenciosamente lírico canto da cidade.

Mas se não só de flâneurs se faz uma cidade, onde estão as outras pessoas? Ora, estão recebendo uma televisão nova e se masturbando com uma máquina de lavar em O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), disputando uma eleição em A Cidade É Uma Só (Adirley Queirós, 2012), vivendo perdas insuportáveis em O Que Se Move (Caetano Gotardo, 2012), sendo abandonas em O Abismo Prateado(Karim Aïnouz, 2011) e casando-se com um homem que conheceu na internet no próprio O Homem das Multidões. A cidade no Cinema Brasileiro dos últimos anos é lugar do qual não se escapa, que persegue o sujeito — quando não perseguido por ele, como a pré-adolescente de classe média que traça uma pequena fuga para andar de ônibus na Avenida da Boa Vista em Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2013).

O diferencial de O Homem das Multidões — pois cada um desses filmes tem sua forma particular de lidar com o próprio realismo, seja por uma montagem mais brusca ou acrescentando lamentos cantados à diegese — é a profunda melancolia da câmera que observa o personagem. Antes, em Viajo porque Preciso, ela estava com o protagonista/narrador, foi trazida ao filme e imposta às imagens por ele. Aqui, Juvenal e Margo (Silvia Lourenço, espetacular) foram escolhidos pela câmera, encontrados na multidão.

Esses dias, vi Meu Tio (Jacques Tati, 1958), que traz um dos maiores flâneurs cinematográficos. O Monsieur Hulot é por demais cômico e incisivo na sua ridicularização da pós-modernidade para ser comparado a Juvenal. Mas há nos dois filmes essa fotografia distante, que prefere observar como o personagem se vira na sociedade a integrá-lo a ela. Para uma comparação da narrativa, apega-se na minha memória o razoável Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Gustavo Taretto, 2011). Se formos trazer para os dois filmes a rivalidade Brasil-Argentina, no entanto, os hermanos não teriam uma chance.