Oprimidos e opressores nos filmes de animais da Disney

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O marxismo de meus pais refletiu em algumas das minhas referências cotidianas e culturais da infância. Eu cresci ouvindo Os Saltimbancos, adaptação de Chico Buarque para o musical infantil italiano inspirado no conto Os Músicos de Bremen. As músicas de Os Saltimbancos se referem à união solidária entre movimentos sociais diversos, representados por animais, contra um opressor que os personagens chamam de “patrão” ou “barão”. O jumento representa o trabalhador do campo; o cachorro, o militar de baixa patente; a galinha, a operária das fábricas; a gata, os artistas. O homem, opressor de todos eles, é o inimigo. Além de frequentar forçosamente as plenárias sindicais e ouvir Os Saltimbancos, também me era permitido o bom e velho entretenimento imperialista. Eu via as animações da Disney incansavelmente. As que eu não tinha na minha coleção pirata, eu alugava em loop eterno nos fins de semana. Naquele momento, eu vivia o sonho da cinefilia alienada. Nos anos 1990, era fácil distinguir a Disney de seus concorrentes. Não por algum subtexto bem bolado, mas pela força característica de suas imagens. Ainda carrego o impacto que a cena do sequestro dos cãezinhos em 101 Dálmatas me causou na infância. A personagem Naná saía pela chuva de Manhattan a gritar “Os filhotes! Os filhotes!”. Revi a cena em algum momento dos últimos meses. É brilhante. Não acredito que haja nos clássicos da Disney a mesma intenção política de Os Saltimbancos. Mas, ao se contar uma história, trabalhando narrativamente um conflito, não há como impedir a leitura de entendê-la dentro de um determinado contexto social, político e histórico. Então, talvez inevitavelmente, os personagens animais da Disney clássica compartilharam com Os Saltimbancos a luta política contra o opressor comum: o homem. Separando os quatro longas-metragens protagonizados por animais até a morte de Walt Disney, temos Dumbo, Bambi, A Dama e o Vagabundo e 101 Dálmatas. Nos quatro filmes em questão, se o conflito do animal contra o homem não é essencial para o desenvolvimento dos personagens dentro da narrativa (A Dama e o Vagabundo, 101 Dálmatas, Bambi), ele gera um ponto de dramaticidade indissociável do impacto coletivo causado pelo filme (Dumbo). [caption id="attachment_1102" align="aligncenter" width="600"]bambi (Reprodução)[/caption] É certo e até óbvio que todos os filmes podem trazer, inconscientemente, imagens-símbolos individuais ou coletivas. Estas são na maioria das vezes tiradas de contexto para sua inserção da cultura popular (o que é muito interessante para a indústria que produziu o filme). Quando trazemos imagens-símbolos como a canção Baby Mine, de Dumbo, a morte da mãe de Bambi (cena só superada na cultura popular por O Rei Leão, 50 anos depois) e a vilã Cruela DeVille de volta para o seu contexto original, descobrimos que este não é muito diferente do de Bicharia, o número de abertura de Os Saltimbancos: os animais são oprimidos pelos humanos. Um ponto comum entre as narrativas (com a exceção de 101 Dálmatas) é a ausência quase completa do opressor para além da ideia que eles representam (a da opressão). O “vilão” de filmes como Dumbo, Bambi e A Dama e o Vagabundo é a uma ideia de opressão, e não há uma figura específica que a represente. Em Dumbo, a opressão se manifesta coletivamente (e é combatida também coletivamente, a partir da entrada dos corvos na narrativa). Em Bambi, a opressão é “o homem”, que nunca aparece, mas causa estragos. Neste filme, é impossível enfrentar a opressão, talvez porque o opressor tenha a vantagem da própria invisibilidade. Em Os Saltimbancos, os patrões são apenas mencionados ou combatidos nas sombras. Este, obviamente, não é o caso de Cruela DeVille. Uma das vilãs mais memoráveis da Disney, Cruela quer adotar os cachorrinhos da antiga colega Anitta para com eles fazer o seu extravagante casaco de peles. Acho que até o estranho O Caldeirão Mágico, a Disney não teve outro enredo tão sombrio quanto este. Originalmente, o filme foi traduzido no Brasil como A Guerra dos Dálmatas. A tradução é correta. 101 Dálmatas é muito mais sobre o enfrentamento à opressão que sobre a opressão em si. Assim estando mais próximo de Os Saltimbancos que dos outros filmes: o opressor existe, e ele deve ser combatido com igual violência (o desfecho de Cruela e seus capangas é uma morte violenta, sugerida em Os Saltimbancos pelo trecho cantado “Esses safados vão virar presunto”). Eu senti o ímpeto de escrever este texto depois da minha crítica para o filme Winter Sleep, publicada no site Cineplayers. A não-alienação tem um limite; há sempre algo que desconhecemos e do que não somos capazes de falar ou mesmo sentir. Mas a alienação também é limitada. A narrativa pode ter pretensões de evitar um contexto ou se despolitizar pela própria simplicidade. Mas não é sempre possível. A leitura é múltipla e depende do envolvimento de repertórios individuais e coletivos muito específicos. O que é impressionante, assustador ou, para alguns, errado de tudo isso é que de uma empresa liderada por uma figura que flerta com o fascismo surjam narrativas que tratem da importância da diversidade unida na luta contra a opressão. Lógico, as mesmas narrativas podem tratar de algo completamente diferente. [caption id="attachment_1101" align="aligncenter" width="600"]101-cruella (Reprodução)[/caption]